O preço do preso

Gilmar Mendes diz que indenização a Cony é estelionato

Autor

13 de janeiro de 2005, 18h45

O debate sobre as indenizações aos presos políticos e militantes de oposição ao regime militar recebeu uma contribuição importante. Em voto no Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes fez uma distinção entre o que é interesse público e o privilégio privado.

Para o ministro casos como os do ex-sindicalista Caetano Lavorato Alves, que recebeu pensão mensal de R$ 19 mil e indenização de R$ 2,5 milhão, e do jornalista Carlos Heitor Cony, indenizado com R$ 1,5 milhão, são exemplos de “verdadeira distorção ou patologia, que muito se aproxima de um estelionato”.

Já no caso da viúva do advogado Luiz Ignacio Maranhão Filho, desaparecido em 1974, a indenização pretendida, de cerca de R$ 500 mil, é razoável.

Em voto em Recurso Especial apresentado pela União contra a pretensão da viúva do ex-deputado do Rio Grande do Norte, Luiz Ignácio Maranhão Filho, Gilmar acompanhou o relator ministro Joaquim Barbosa e defendeu o pagamento de reparação de cerca de R$ 500 mil (em valores de 1998).

O ministro lembra que a União alegou que a reparação estabelecida na sentença “foge aos parâmetros a partir dos quais são normalmente calculadas as indenizações em casos análogos. Qual o parâmetro básico? Que salário? Como chegar, racionalmente, a tal quantum?”

Gilmar Mendes citou dois casos, citados com insistência pela imprensa, em que “a concessão de indenização avaliada em milhões de reais constitui, certamente, uma inversão absoluta entre o interesse público e o privilégio privado”: o do ex-piloto da Varig e ex-dirigente sindical José Caetano Lavorato Alves que conseguiu uma pensão de R$ 19 mil mensais e indenização retroativa de R$ 2,5 milhões e o do jornalista Carlos Heitor Cony, que obteve indenização de R$ 1,5 milhão.

Estes casos, conclui Mendes, são “exemplo de verdadeira distorção ou patologia, que muito se aproxima de um estelionato (contra os cofres públicos) pela via administrativa”.

Já o caso da viúva de Luiz Maranhão deve ser visto de forma diferente, como exposto pelo relator: “Na hipótese, deve ser levado em consideração que a vítima Luiz Maranhão era advogado, com rendimento razoável para o sustento da família, tinha 53 anos de idade ao desaparecer, restando-lhe, no mínimo, 17 anos de uma vida economicamente ativa, o sofrimento da família, a dor irreparável que os seus entes passaram, justifica uma indenização razoável”.

Luiz Ignácio Maranhão Filho, era advogado, militante do antigo Partido Comunista Brasileiro. Em 1974 foi preso por agentes do DOI-Codi e nunca mais foi visto.

A viúva de Maranhão, Odette Roseli Garcia Maranhão ajuizou ação de reparação. Em 2000 o STJ decidiu a favor da viúva que já havia conquistado na Justiça Federal do Rio Grande do Norte o direito de receber a reparação no valor de 100 milhões de cruzeiros reais, relativos ao ano de 1.994, quando o pedido foi apresentado.

A União defende a tese de que o crime prescreveu e que os valores estão acima do aceitável.

Leia o voto do ministro Gilmar Mendes

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 313.915-1

PROCED.: RIO GRANDE DO NORTE

RELATOR : MIN. JOAQUIM BARBOSA

RECTE.: UNIÃO

ADV.: ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

RECDA.: ODETE ROSELLI GARCIA MARANHÃO

ADVDOS.: DIÓGENES DA CUNHA LIMA E OUTROS

V O T O

(VISTA)

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES:

Diz o Relator, Min. Joaquim Barbosa, em seu voto:

“Consta dos autos que em 1974 a recorrida enviou cartas ao presidente Geisel (fls. 33), ao cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Evaristo Arns (fls. 34), e aos líderes do MDB na Câmara, os senhores Thales Ramalho e Laerte Vieira (fls. 29), cobrando resposta do Estado brasileiro sobre a integridade física de seu marido.

Na primeira semana de março de 2004, minha assessoria recebeu cartas dela, pedindo o julgamento deste recurso, que versa sobre seu pedido de indenização pelo desaparecimento do marido. Determinei a juntada aos autos de mais essa correspondência.

Das questões apresentadas pela União, apenas a suposta violação do art. 37, § 6º, é significativa. Isso porque as alegações de prescrição e de ausência de provas – prova diabólica, aliás, pois exige a demonstração do desaparecimento do marido da autora da ação durante regime de exceção – envolvem exame de normas infraconstitucionais ou de alegações de fato devidamente resolvidas nas instâncias inferiores, até mesmo para se possibilitar a fixação do marco inicial da contagem da prescrição, uma vez que o falecimento nunca foi confirmado pela autora. Além disso, o pedido de redução do valor de indenização, por sua vez, praticamente não é justificado, fundado apenas na má situação financeira do Estado brasileiro.

Quanto à verificação do nexo de causalidade, para verificação da correta aplicação da responsabilidade objetiva do Estado, tal como definida na Constituição, para mim basta o registro da sentença e da apelação sobre os indícios das razões políticas do desaparecimento do professor LUÍZ IGNÁCIO MARANHÃO FILHO. A esse respeito, destaco trecho da sentença (fls. 71):

‘É fato que a pessoa de LUIZ IGNÁCIO MARANHÃO FILHO, mais conhecido como LUIZ MARANHÃO, chegou a ser preso no ano de 1974, pelos órgãos de repressão do Governo de Exceção, sem que até o momento se tenha notícia do seu paradeiro, havendo forte presunção de que o mesmo veio a ser morto, como noticia com freqüência a imprensa nacional.’

Também nesse ponto seria necessário proceder-se ao reexame do conjunto probatório nos autos”.

Esta Corte tem entendido que a discussão sobre o nexo de causalidade no contexto da responsabilidade do Estado pode ser objeto de sede de recurso extraordinário (RE 220.999, Rel. Marco Aurélio, Red. P/ o Acórdão Nelson Jobim, julgado na 2ª. Turma em 9.3.99 – caso Franave).

Todavia, os elementos constantes dos autos e as características do desaparecimento da vítima não permitem afastar a responsabilidade da União na espécie.

Quanto ao possível excesso na fixação do valor da indenização, o STJ tem entendido cabível sua revisão em sede de recurso especial quando ultrapassados os limites da razoabilidade do arbitramento. (Cf. RESP 2003/60374, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, 3ª. Turma, DJ de 14.6.2004; AG 552310 (AgRg), Rel. Min. Carlos Alberto Direito, 3ª. Turma, DJ de 17.5.2004; RESP 550912 (AgRg), Rel. Min. Carlos Alberto Direito, 3ª. Turma, DJ de 3.5.2004; Ag 538045 (AgRg), Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª. Turma, DJ de 16.12.2003), entre outros.

A meu ver, verificada flagrante irrazoabilidade, poderia esta Corte também fazê-lo em sede de recurso extraordinário.

Todavia, tendo por base o RE interposto, não vejo como isso seria possível, especialmente por se tratar de condenação a pagamento em razão do desaparecimento de um profissional de nível superior, pai de família nos idos de 1974.

A indenização, fixada em CR$ 100.000.000,00 (cem milhões de cruzeiros reais em 7/1/94, correspondente a R$ 485.061,56, em 23.04.98), ainda que significativa, foi fundamentada pelo magistrado a quo nos seguintes termos:

“Na hipótese, deve ser levado em consideração que a vítima LUIZ MARANHÃO era advogado, com rendimento razoável para o sustento da família, tinha 53 anos de idade ao desaparecer, restando-lhe, no mínimo, 17 anos de uma vida economicamente ativa, o sofrimento da família, a dor irreparável que os seus entes passaram, justifica uma indenização razoável, porém nunca nos moldes sugeridos na inicial, pois a se comparar a situação brasileira com a dos Estados Unidos, uma pequena indenização naquele País pode se transformar em enriquecimento no Brasil.

Por tais considerações, JULGO PROCEDENTE o pedido para reconhecer a responsabilidade da União Federal em reparar o dano moral causado com o desaparecimento e presumível morte de LUIZ IGNÁCIO MARANHÃO FILHO, ocorrida em, data incerta, porém tendo início a sua ausência em 1974, fixando o valor da indenização em CR$ 100.000.000,00 (cem milhões de cruzeiros reais), reajustável monetariamente daqui por diante de acordo com os índices oficiais atuais e os que vierem a substituí-los mais honorários advocatícios na base de 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação devidamente atualizado.” (fls. 77)

A União limita-se a sustentar no RE:

“A sentença recorrida condenou a União Federal ao pagamento de CR$ 100.000.000,00 (cem milhões de cruzeiros reais) foge aos parâmetros a partir dos quais são normalmente calculadas as indenizações em casos análogos. Qual o parâmetro básico? Que salário? Como chegar, racionalmente, a tal quantum?

A situação do estado brasileiro está mais para a Índia do que para os Estados Unidos da América do Norte, o padrão não deve ser aquele da nação mais abastada do mundo. Não se deve esquecer que a responsabilidade do Estado funda-se no rateio entre os cidadãos, pelo risco da atividade estatal.” (fls. 165/166)

Evidente, na espécie, a ausência de elementos para infirmar a conclusão das instâncias ordinárias.

A propósito, ressalte-se que a imprensa tem-se referido, com alguma insistência, a dois casos, nos quais a concessão de indenização avaliada em milhões de reais constitui, certamente, uma inversão absoluta entre o interesse público e o privilégio privado.

No primeiro, o ex-piloto da VARIG, José Caetano Lavorato Alves, por anos presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, conseguiu obter pensão da ordem de R$ 19,0 mil mensais, além da parcela retroativa da indenização de R$ 2,54 milhões.

No segundo, o jornalista Carlos Heitor Cony obteve, igualmente, indenização de cerca de R$ 1,5 milhão.

Em ambos os casos, em nome da reparação por atos praticados nos tempos da ditadura militar, imputa-se ao Estado uma responsabilidade que se concretiza em indenizações milionárias a serem arcadas pelos cofres públicos.

Diante do absurdo aqui relatado, a indenização assegurada à recorrida não se afigura desarrazoada. É verdade que, nos dois casos aqui referidos, tem-se exemplo de verdadeira distorção ou patologia, que muito se aproxima de um estelionato (contra os cofres públicos) pela via administrativa.

Nestes termos, não conheço do recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!