Quando 20 = 40

Os absurdos que definem a jornada de trabalho do advogado

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11 de janeiro de 2005, 15h11

O Direito estabelece regramentos para delimitar a jornada de trabalho máxima que pode ser contratada com o empregado em troca do salário normal. Num primeiro grande patamar, está a jornada geral fixada na Constituição Federal, numa grade de oito horas diárias, limitada a quarenta e quatro semanais. A partir daí, a legislação infraconstitucional estipula diversos limites para algumas profissões que o Legislador, por um motivo ou por outro, entendeu que deva ser referenciada a uma jornada especial, menos severa do que aquela proclamada como base do sistema.

Ao ser editado o Estatuto do Advogado através da Lei 8906/94, os advogados vislumbraram uma miragem que dançava como nuvem mágica naquele diploma legal, nas linhas do artigo 20: “a jornada de trabalho do advogado empregado, no exercício da profissão, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais…”. Parecia que fosse algo sério, já que tinha todo o jeito de ser uma lei, votada pelo Congresso, com número de lei, etc., tudo fazendo crer que seria para valer. No entanto, o leitor logo se decepcionava ao prosseguir na leitura do dispositivo e encontrar uma das maiores “pérolas” do absurdo legislativo brasileiro: “…salvo acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva”.

Evidente que nenhum sindicato de advogados, desde a vigência da lei, teve a disposição de assinar acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho aumentando a jornada de trabalho de seus representados. Então, o problema ficou residindo na misteriosa “dedicação exclusiva”. Porque se pode dizer que é um disparate estabelecer tal restrição para o advogado contratado pela lei trabalhista? Muito simples. A lei trabalhista não contém nenhum instituto com este nome e perfil.

A jurisprudência já tem salientado este detalhe: “O mencionado art. 20 exclui da jornada especial a hipótese de dedicação exclusiva sem dar-lhe o conceito legal ou qualquer outra forma de disciplinamento. Resulta disso que a natureza e abrangência do termo é objeto de análise interpretativa” (Proc. TST – 794878 ANO: 2001 REGIÃO: 03 Relator Juiz Convocado Samuel Correia Leite Ac. publicado in DJU 21/11/2003). Então, como se vê de tal pressuposto, foi preciso, de certo modo, inventar um significado para tal expressão no âmbito do território celetizado.

Para lástima dos advogados, no deslinde desta tarefa, os tribunais esbarraram num fatídico artefato para decifrar o enigma. O Estatuto atribuiu ao Conselho Federal, ou seja, aos próprios advogados, o poder-competência para regular a lei, em seu artigo 78: “Cabe ao Conselho Federal da OAB, por deliberação de dois terços, pelo menos, das delegações, editar o regulamento geral deste estatuto, no prazo de seis meses, contados da publicação desta lei”.

Incompreensivelmente, o Conselho Federal editou este Regulamento, contendo em seu artigo 12 uma enormidade ainda mais catastrófica: “Considera-se dedicação exclusiva a jornada de trabalho do advogado empregado que não ultrapasse quarenta horas semanais, prestada à empregadora”.

Na verdade, isto conduz a um sofisma delirante, pois, é como se a lei rezasse que a jornada de trabalho é de vinte horas semanais, a não ser que seja de quarenta. O Conselho Federal, com tal redação, liquidou de imediato com a jornada de trabalho concedida ao advogado no Estatuto. Na falta de uma definição legal para esta expressão cabalística (“dedicação exclusiva”), os tribunais correram a esposar aquela fixada no artigo 12 do Regulamento Geral. Afinal, os próprios advogados, através do Conselho Federal da OAB, estavam renunciando ao direito fixado na lei.

A jurisprudência adotou este entendimento de modo bastante decidido, como se vê, por exemplo, na seguinte ementa: “ADVOGADO. ESTATUTO DA OAB E REGULAMENTO GERAL DO ESTATUTO DA ADVOCACIA E DA OAB. LEI Nº 8906/94. JORNADA DE TRABALHO. DEDICAÇÃO EXCLUSIVA. 1. O artigo 20, “caput”, da Lei nº 8906/94 estabelece a jornada de trabalho do advogado empregado em duração máxima de 4 (horas) diárias ou 40 (quarenta) semanais, desde que não esteja pactuado de forma diversa em acordo ou convenção coletiva de trabalho ou seja demonstrado o labor em jornada de dedicação exclusiva. O conceito de dedicação exclusiva encontra-se definido no Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, artigo 12 e parágrafo 1º, que dispõem considerar-se dedicação exclusiva a jornada de trabalho do advogado empregado não superior a quarenta horas semanais, prevalecendo tal carga horária se estipulada em contrato individual de trabalho, quando da admissão do Autor, desde que não haja alteração posterior fixada em convenção ou acordo coletivo de trabalho. Sendo incontroverso o labor em jornada de trabalho fixada em 40 (quarenta) horas semanais, configurada está a hipótese de “dedicação exclusiva”, de acordo com os termos do artigo 12 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, sendo indevido, pois, o pedido de percepção de horas extras lastreado no não-cumprimento dos termos do artigo 20 do Estatuto da OAB. 2. Recurso de revista conhecido e provido “ TST RR – 361.933/97 3ª Turma – DJ de 24.11.00 – Relator Ministro Francisco Fausto).

Esta decidida adesão àquela redação absurda, data máxima venia concessa, constituía um grave equívoco jurídico. A lei permitia o excesso à jornada nela fixada, em caso de dedicação exclusiva, sendo que, o Regulamento não poderia definir tal fenômeno como sendo, simplesmente, o excesso à jornada fixada na lei.

A jurisprudência, evidentemente, não ficou cega a esta evidência e outras ementas vislumbraram o problema com mais clareza, como na seguinte hipótese: “Advogado. Dedicação exclusiva. Jornada de trabalho. A Lei nº 8.906, de 1994, em seu artigo 20 assim dispõe: “A jornada de trabalho do advogado empregado, no exercício da profissão, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais, salvo acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva”. Este o comando legal. O artigo 12 do Regulamento Geral definiu a dedicação exclusiva como aquela que não ultrapassar quarenta horas semanais. O regulamento excedeu o primado da lei. De fato, deduz-se da redação adotada, por absurdo, que somente na hipótese de a jornada não ultrapassar quarenta horas semanais, ficará caracterizada a dedicação exclusiva” (TRT 2ª Região (Acórdão: 20010487225 Turma: 08 Data Julg.: 13/08/2001 Data Pub.: 28/08/2001 Processo 20000329490 Relator: JOSE CARLOS DA SILVA AROUCA).

Num raciocínio singelo, este julgado mostra a falha em aplicar aquela nefasta redação do artigo 12 do Regimento, eis que, o mesmo “excedeu o primado da lei”. O Regulamento não poderia regulamentar a questão definindo dedicação exclusiva de uma forma que tornasse inviável a aplicação da norma que é objeto de regulamentação. Com efeito, como já vimos, estabelecer que a jornada do advogado é de vinte horas a não ser que seja de quarenta, implica em estabelecer que a jornada de trabalho especial é de quarenta horas semanais, dobrando o limite fixado na norma que se devia, apenas, regulamentar.

Noutras ementas, apontava-se o caminho para a solução do problema: uma vez que a lei não define dedicação exclusiva, somente se pode considerar caracterizada tal condição se tiver sido objeto de disposição contratual. É muito simples e lógico: “A Lei 8.906/94 criou uma nova referência para a jornada de trabalho do advogado, fazendo-a ordinária até o número de 4. Para que os autores estivessem situados na exceção do art. 20 da Lei 8.906/94, era mister a existência de disposição legal ou pelo menos contratual a respeito” (TRT 2ª Região ACÓRDÃO Nº: 20020390356 PROCESSO TRT/SP Nº: 01638200290202003Rel. Juiz Rafael Pugliese).

Tudo isto vem à baila, outra vez, porque em fins de 2004, o site do TRT da 2ª Região, divulgou mais um acórdão endossando a tese de esposar a famigerada redação originária do artigo 12 do Regulamento Geral da Advocacia: “Advogado. Jornada. Regime de dedicação exclusiva. O art. 12, caput, do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, considera dedicação exclusiva a jornada de trabalho do advogado empregado que não ultrapasse quarenta horas semanais, prestada à mesma empresa empregadora. Compreende-se, portanto, que havendo estipulação contratual quanto à jornada de quarenta e quatro horas semanais, a presunção natural relaciona-se com a dedicação exclusiva, competindo ao laborista robustamente demonstrar o contrário” (PROCESSO TRT/SP Nº: 00781200220202000 ACÓRDÃO Nº: 20040692498 Relatora Juíza Sonia Aparecida Gindro).

Veja-se que a tal redação do malsinado artigo 12 deixou uma imagem residual da qual a jurisprudência não consegue se libertar, apesar de já haver sido revogada. Com efeito, tamanho absurdo, foi sendo objeto de contínuo repúdio pela classe dos advogados e, após anos de questionamentos formulados a partir do Sindicato dos Advogados de São Paulo, mais tarde, endossados pela Seccional de São Paulo da OAB, a redação foi modificada em 12.12.2000, quando foi publicada no DJU nova resolução do Conselho Federal da OAB, neste sentido: “para os fins do art. 20 da Lei 8.906/94, considera-se dedicação exclusiva o regime de trabalho que for expressamente previsto em contrato individual de trabalho“.

Apesar da revogação daquela trágica redação, o Judiciário ainda remanesce a proferir julgados reiterando continuamente a invocação da redação originária, sem que se perceba que a mesma foi modificada. A nova redação não chega a ser perfeita mas, deixa bastante claro que, na ausência de uma definição legal daquela restrição, somente se pode considerar como caracterizada a dedicação exclusiva se houver contratação expressa neste sentido.

A tal redação perversa do Regulamento Geral foi refeita há mais de quatro anos mas, a modificação continua a passar despercebida. Fica a impressão, data máxima venia concessa, que por detrás de tanta reticência, viceja uma subjacente resistência ideológica ao reconhecimento da nova jornada concedida pela ordem jurídica aos advogados assalariados.

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