Corrida de barreiras

É ilegal exigir certidão negativa para depósito de precatório

Autor

  • Kiyoshi Harada

    é jurista presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (Ibedaft) e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

8 de janeiro de 2005, 21h01

A expedição de certidão negativa de tributos insere-se no âmbito do poder-dever da Administração Tributária. O artigo 205 do Código Tributário Nacional faculta ao legislador ordinário de cada ente político exigir a certidão negativa como prova de quitação de certo tributo, sempre que exigível essa prova, nos seguintes termos:

Art. 205. A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido.

O exercício da faculdade legislativa, porém, não é absoluto. Não pode acarretar violação de direitos e garantias fundamentais, nem implicar desvio de finalidade criando embaraços à efetivação do direito do cidadão contra o Estado. Nunca se pode esquecer que a expedição de certidão negativa de tributos representa um poder-dever do Estado, em consonância com o que está prescrito no artigo 5º, XXXIV, b da CF (1) . E mais, a lei a que se refere o art. 205 do CTN, norma geral de direito tributário, editada com fundamento no artigo 146, III (2) da CF, é lei de cada ente político tributante. Não pode o legislador ordinário da União editar norma geral aplicável no âmbito das três esferas políticas, pois isso é privativo da lei complementar.

Pois bem, a Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004, que altera a tributação do mercado financeiro e de capitais e institui o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária (Reporto) introduziu matéria estranha, representada pelo artigo 19 do seguinte teor:

Art. 19. O levantamento ou a autorização para depósito em conta bancária de valores decorrentes de precatório judicial somente poderá ocorrer mediante a apresentação ao juízo de certidão negativa de tributos federais, estaduais, municipais, bem como certidão de regularidade para com a Seguridade Social, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e a Dívida Ativa da União, depois de ouvida a Fazenda Pública.

Parágrafo único. Não se aplica o disposto no caput deste artigo:

I – aos créditos de natureza alimentar, inclusive honorários advocatícios;

II – aos créditos de valor igual ou inferior ao disposto no art. 3º da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal.

Como se verifica, excetuadas as hipóteses previstas no parágrafo único, não apenas o levantamento, como também, o próprio depósito do montante da condenação judicial depende de prévia apresentação de certidão negativa de tributos e de certidão de regularidade perante o INSS e FGTS. Parece inacreditável, mas é o que se depreende da leitura do artigo 19 retrotranscrito, sub-repticiamente introduzido pelo insensível legislador ordinário mesmo sabendo ou devendo saber do resultado catastrófico dessa disposição normativa.

Não bastassem os seis ou oito anos para obtenção de decisão condenatória, com trânsito em julgado, contra a Fazenda Pública, seguidos de outros seis ou oito anos, ou até mais, para satisfação do montante da condenação judicial, agora, o legislador infraconstitucional, por meio de dispositivo ilegítimo, irrazoável e inconstitucional busca procrastinar o cumprimento da decisão exequenda, aumentando a agonia e o tormento dos credores que estão morrendo, aos milhares, na fila de precatórios judiciais.

Precatório judicial significa requisição de pagamento feito pelo Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exequenda contra a Fazenda Pública, por conta de dotação orçamentária consignada ao Poder Judiciário. É forma de execução por quantia certa contra Fazenda Pública, regulada pelo artigo 730 do CPC. Funciona como sucedâneo de penhora, em virtude do princípio da impenhorabildiade de bens públicos.

A Constituição Federal disciplinou, minudentemente, o procedimento para cumprimento de decisão judicial contra a Fazenda Pública em seu artigo 100 e parágrafos:

Art. 100 – À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim

§ 1º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente (redação dada pela EC nº 30/00).

§ 1º-A Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado (acrescentado pela EC nº 30/00).

§ 2º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito (redação dada pela EC nº 30/00).

§ 3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deva fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado (redação dada pela EC nº 30/00).

§ 4º São vedados a expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução, a fim de que seu pagamento não se faça, em parte, na forma estabelecida no § 3º deste artigo e, em parte, mediante expedição de precatório (acrescentado pela EC nº 37/02).

§ 5º A lei poderá fixa valores distintos para o fim previstos no § 3º deste artigo, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público (primitivo § 4º renumerado pela EC nº 37/02).

§ 6º O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabilidade (primitivo § 5º renumerado pela EC nº 37/02).


O caput do artigo 100 vai de encontro aos princípios do artigo 37, que regem a Administração Pública. É uma norma moralizadora determinando o pagamento mediante observância rigorosa da ordem cronológica de apresentação dos precatórios, excetuados os créditos de natureza alimentar (3) , bem como, proibindo a designação de casos e de pessoas nas dotações orçamentárias e extra-orçamentárias em atendimento ao princípio da impessoalidade.

O § 1º, em sua redação original, determinava a inclusão orçamentária da verba requisitada até 1º de julho pelo valor atualizado até essa data, para pagamento até o final do exercício seguinte. Aquela redação original ensejava a interpretação de que, atualizado o débito até 1º de julho e pago até o final do exercício seguinte, nada mais seria devido a título de correção monetária. Em boa hora veio a EC nº 30/00 promover a alteração redacional para consignar, expressamente, o pagamento pelos valores atualizados monetariamente.

O § 1º-A, acrescido pela EC nº 30/02, veio eliminar a insegurança do aplicador da lei na classificação dos créditos de natureza alimentar. Enumerou expressamente como sendo de natureza alimentar os débitos decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado.

A nova redação dada ao § 2º, pela EC nº 30/00, ao prescrever que ‘as dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal….necessária à satisfação do débito’, não deixa margem de dúvida quanto à titularidade das verbas consignadas para pagamento de precatórios. Nenhuma lei ordinária poderá autorizar o Executivo a anular parcial ou totalmente as dotações pertencentes ao Judiciário, para abertura de crédito adicional suplementar ou especial.

O § 3º, introduzido pela EC nº 30/00, veio dispensar da formalidade da expedição de precatório judicial em relação às obrigações definidas em lei como sendo de pequeno valor pelas Fazendas federal, estadual, distrital ou municipal.

O § 4º, acrescentado pela EC nº 37/02, veda a expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como o seu fracionamento para percepção direta da importância considerada de pequeno valor. A primeira vedação decorre do entendimento consolidado pelo STF que só vinha permitindo a expedição de requisição complementar em casos de erro aritmético. A segunda proibição, na verdade, desnecessária, visa aclarar o que decorre do § 3º que apenas autoriza a exclusão de precatório em se tratando de obrigações definidas como sendo de pequeno valor, resultantes de sentença judicial, ou seja, se o valor da condenação superar o limite legal estabelecido, impõe-se a inserção do precatório na ordem cronológica.

O § 5º, que resultou da renumeração do anterior § 4º pela EC nº 37/02, permite que o legislador ordinário flexibilize a definição do que sejam obrigações de pequeno valor segundo as diferentes capacidades financeiras das entidades políticas. Resultou disso que cada entidade política adotou um valor diferente.

O § 6º é resultante da renumeração do anterior § 5º pela EC nº 37/02. Define como crime de responsabilidade do Presidente do Tribunal competente o ato comissivo ou omissivo que venha retardar ou frustrar a regular liquidação do precatório. O dispositivo guarda simetria com o art. 85, VI da CF que considera como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos atentatórios à lei orçamentária. Esse preceito, pelo princípio da simetria, aplica-se aos Governadores e aos Prefeitos.

Como se vê do artigo 100 e parágrafos, sucintamente analisados, a Carta Política traçou regras claras e severas de conformidade com o princípio federativo da independência e harmonia dos Poderes e em consonância com os princípios que regem a Administração Pública. Esgotou o procedimento para pagamento de precatórios judiciais nada deixando à colaboração do legislador infraconstitucional, exceto para definição de obrigações de pequeno valor e para distinguir esses valores segundo as diferentes capacidades dos entes políticos devedores (§§ 3º e 5º), com o manifesto propósito de favorecer os credores da Fazenda, jamais para prejudicá-los. E mais, a Constituição Federal prescreveu crime de responsabilidade relativamente aos atos omissivos ou comissivos do Presidente do Tribunal competente que importem em retardar ou tentativa de frustração da liquidação regular do precatório.

Na forma da Carta Magna vigente são apenas três os requisitos para satisfação de precatório:

– requisição de pagamento pelo Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exequenda;


– inclusão no orçamento das entidades políticas de verbas necessárias ao pagamento de precatórios apresentados até 1º de julho, sob pena de crime de responsabilidade;

– pagamento atualizado até o final do exercício seguinte ao da apresentação dos precatórios, mediante utilização de verbas consignadas ao Judiciário, observada a ordem cronológica de sua apresentação e por determinação do Presidente do Tribunal competente, sob pena de crime de responsabilidade em hipóteses de retardamento ou tentativa de frustração da regular liquidação de precatório.

Diante de regras tão claras, objetivas e severas não se sabe onde e como o legislador ordinário foi buscar fundamento constitucional para procrastinar o pagamento de precatório judicial, incorrendo em autêntico ato de improbidade legislativa. Bastará que um único credor não consiga apresentar a certidão negativa, para paralisar a fila do precatório judicial em benefício da Fazenda, que vem antecipando a realização da receita tributária e postergando o pagamento da despesa decorrente de condenação judicial, como é do conhecimento público.

O artigo 19 sob exame inovou as disposições da Carta Magna introduzindo um novo requisito entre a inserção de verba requisitada na lei orçamentária anual e o pagamento, ou seja, exigindo prévia apresentação de certidão negativa de tributos como condição para o depósito do montante da condenação judicial, ou seu levantamento, caso já tenha sido depositado o valor do precatório.

Em outras palavras, esse artigo 19 interferiu diretamente na atuação do Judiciário em sua fase mais importante, desferindo um golpe fatal contra o princípio da efetividade da jurisdição, própria razão de existência do Poder Judiciário. Como se sabe, a atividade jurisdicional é exercida pelo Poder Judiciário em regime de monopólio estatal. Por isso, entre nós, o Judiciário quando decide o faz em nome do Estado Federal Brasileiro. Daí a noção de soberania do Poder Judiciário, no sentido de que nenhum outro Poder pode se sobrepor à sua decisão. A decisão do Judiciário é a decisão do próprio Estado.

Assim, o dispositivo sob comento afronta, não só, o artigo 100 e parágrafos da CF ao inovar os requisitos para satisfação do precatório judicial, como também, violenta o artigo 2º da CF ao interferir na prestação jurisdicional em sua fase final, que é a da efetivação da jurisdição, impingindo ao Judiciário um desprestígio maior como se já não bastasse o estigma da morosidade que, por si só, compromete a credibilidade de sua atuação. Agora, essa morosidade, no mínimo, será duplicada.

Finalmente, a exemplo de outras leis de natureza tributária, o dispositivo sob exame agiliza e antecipa, por vias tortuosas, a arrecadação de tributos, de um lado, suprindo e premiando a ineficiência da máquina administrativa tributária e, de outro lado, aniquilando os direitos e garantias fundamentais do contribuinte que, às vezes, se vêem obrigados a pagar um tributo indevido, para poder receber o montante da condenação judicial contra a Fazenda, obtida, a duras penas, após moroso e cansativo processo judicial.

Realmente, esse artigo 19 sob análise fere o art. 5º, XXXV da CF, segundo o qual ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. Ora, ‘n’ situações existem em que se for exigida certidão negativa como condição para o depósito do montante da condenação a que faz jus o exeqüente, este terá que abrir mão dos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, insertos nos incisos LIV e LV, do artigo 5º da CF.

Efetivamente, se o crédito tributário situar-se naquela fase de inscrição na dívida ativa, que antecede o ajuizamento da execução fiscal, o contribuinte não terá meios legais para obtenção da certidão negativa. De fato, nessa hipótese, a certidão não poderá ser expedida, porque já estará cessada a suspensão da exigibilidade do crédito tributário (artigo 151, III do CTN). O contribuinte não poderá, também, nomear bens à penhora e obter a certidão, porque a execução fiscal ainda não foi ajuizada. Seria o caso de impetrar mandado de segurança para agilizar a execução fiscal contra si? O legislador não poderia ignorar o fato de que milhares e milhares de créditos tributários prescrevem, mensalmente, por conta da inércia da Fazenda Pública que deixa de aparelhar, tempestivamente, as execuções fiscais, talvez, à espera de providências legislativas da espécie.

Mas, não é só. Na esfera da União, a Secretaria da Receita Federal instituiu, sem base legal, o procedimento denominado ‘ENVELOPAMENTO’ que consiste no seguinte:

O computador da Receita Federal expede, diariamente, milhares de ‘notificações de débito’ juntamente com os DARFs para pagamento, sob pena de inscrição na dívida ativa; essas ‘notificações’, na maioria das vezes, é resultado de discrepância entre os dados constantes na Declaração de Débitos e Créditos de Tributos Federais (DCTF) apresentada pelo contribuinte, com aqueles dados informatizados pelos servidores da Receita, especialistas em informática, mas que de direito tributário pouco ou nada entendem;


ao contribuinte não é dado o direito de defender-se contra a intimação expedida pelo computador mediante regular instauração do processo administrativo tributário, como determina a Carta Política;

ao infeliz contribuinte contemplado com a ‘intimação computadorizada’ resta-lhe tão só a alternativa de comprovar a quitação do débito apontado e se for o caso, retificar a DCTF colocando os comprovantes de pagamento com as respectivas justificativas dentro de um envelope a ser entregue no órgão fazendário competente, mediante protocolo;

os envelopes entregues por milhares de contribuintes intimados à alhures ficam dormitando na repartição pública e são abertos, aleatoriamente, sem obediência à ordem cronológica de recebimento e em pequenas quantidades mensais, ou à medida em que o contribuinte desesperado clamar pela solução de seu caso, após conseguir a façanha de obter uma senha de atendimento;

decorrido determinado prazo, independentemente, de abertura do ‘ENVOLOPE’, o ‘débito’ apontado é enviado à Procuradoria da Fazenda Nacional para inscrição na dívida ativa e cobrança judicial, porque assim estão programados os computadores da Receita, contra os quais os mais diligentes servidores públicos se mostram totalmente impotentes.

Difícil de acreditar, mas quem milita na área tributária sabe que tudo isso é verdade. Ives Gandra da Silva Martins, com habitual elegância e moderação, denomina esse procedimento de ‘Ditadura dos Computadores’ (Valor Econômico, 23-12-2004).

O Estado Democrático de Direito, construído pelo legislador constituinte, vem sendo paulatinamente desmontado pelo legislador ordinário, que só consegue enxergar os interesses da Fazenda Pública. Instituição de tributos nebulosos, de difícil classificação em espécie; elevação indireta da carga tributária pelos mecanismos de incidência do tributo sobre si próprio (tributação por dentro), de encurtamento do prazo de recolhimento, de antecipação da arrecadação mediante retenção na fonte etc., já se incorporaram na rotina legislativa do Estado.

Agora, surge um novo instrumento para acelerar a arrecadação tributária: o instrumento da coerção obrigando o credor da Fazenda, titular de precatório judicial, apresentar previamente a certidão negativa de tributos como contrapartida do recebimento de seu crédito. Na prática, e na maioria dos casos, isso representa pagamento prévio de um tributo que nem sempre é devido, e com dispensa dos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa. Esse instrumento truculento, que nem a ditadura militar ousou instituí-lo, torna arcaico e desnecessário o instituto da compensação que se opera entre dívidas líquidas e certas.

O legislador ordinário premia o órgão fazendário omisso e ineficiente, que deveria estar promovendo a fiscalização, autuando os infratores, decidindo quanto às impugnações e recursos por eles apresentados e promovendo a inscrição na dívida ativa, seguida de cobrança judicial tempestiva. Ultimamente, o legislador aliou-se ao Poder Executivo para, por meio de instrumento normativo, substituir a ação do fisco, que nada mais tem a fazer senão acompanhar, por intermédio de computadores, o fluxo das receitas cada vez mais volumosas, como fruto de terrorismo legislativo perpetrado contra indefesos contribuintes.

Só que esse procedimento legislativo não é ético, legítimo, razoável, nem constitucional. O interesse da Fazenda não pode ser protegido em detrimento dos direitos e garantias individuais assegurados na Carta Magna. Afinal, estes existem para colocar um freio no poder político do Estado. Por isso, os direitos e garantias individuais, insuprimíveis por meio de Emendas Constitucionais (art. 60, § 4º, IV da CF), não são apenas aqueles elencados no art. 5º da Carta Política, mas todos os dispositivos dispersos na Constituição Federal que represente um ‘NÃO’ contra o poder político do Estado.

Lamentavelmente, essa noção elementar de Direito Constitucional vem sendo ignorado pelo legislador ordinário, que vem outorgando descabidos privilégios à Fazenda Pública à custa de sacrifícios dos direitos e garantias individuais dos contribuintes, e o que é pior, contra os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da eficiência do serviço público, implicando autêntica inversão de valores.

A exigência de certidão negativa, no caso, atenta contra o princípio da razoabilidade, porque ela não é o meio adequado para a cobrança de tributos. Se a Fazenda Pública já dispõe de mecanismo legal para cobrança de sua dívida ativa, por meio processual específico (Lei nº 6.830/80), não é razoável que uma outra lei institua um meio coercitivo que dispense a deflagração do processo executivo fiscal, de conformidade com os princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa.


A discricionariedade do legislador, a propiciar aparente liberdade legislativa, há de encontrar limite nos princípios norteadores da ordem jurídica global. Se o legislador já encontrou um meio adequado, para cobrança de sua dívida ativa, sem impor maiores sacrifícios aos contribuintes, não será legítimo, nem constitucional eleger outros meios mais restritivos. O princípio da proporcionalidade opõe-se ao ato legislativo gravoso e desnecessário.

Por outro lado, a coação contida no art. 19 da Lei nº 11.033/04, objeto de nosso parecer, contraria o princípio da eficiência no serviço público, à medida em que estimula a ociosidade dos agentes públicos competentes, que cruzam os braços à espera de arrecadação automática. Contrasta violentamente com o inciso XXII do art. 37 da CF, inserido recentemente pela EC nº 42/03, segundo o qual, ‘as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive como o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio’.

O preceito constitucional retro transcrito, pressupõe atuação eficiente do servidor público pertencente ao quadro da administração tributária, incompatível com um regime jurídico em que sua atuação é substituída pela ação dos computadores.

Caracterizado está o inusitado abuso legislativo que solapa em bloco os direitos e garantias individuais e violenta os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da eficiência, insertos no art. 37 da CF, além de afrontar princípio da separação dos Poderes.

Dentro da escala de hierarquia de normas, sempre que houver conflito entre princípios e regras jurídicas, estas devem ceder, pelo que, o art. 19 da Lei nº 11.033/04 sob exame deve ser tido como inexistente no mundo jurídico, banido que está pelos princípios norteadores da ordem jurídica.

O instituto da certidão negativa, à toda evidência, não pode servir como instrumento de protelação do pagamento da condenação judicial pela Fazenda Pública, muito menos pode servir como meio coercitivo para percepção de tributos.

O Supremo Tribunal Federal já até editou a Súmula 323 nos seguintes termos:

É inadmissível a apreensão de mercadoria como meio coercitivo para pagamento de tributo’.

O que se depreende do enunciado dessa Súmula é a condenação do desvio de finalidade. A apreensão existe como prova material da infração. Lavrado o auto de infração impõe-se, ipso fato, a liberação da mercadoria apreendida. A apreensão não pode ser utilizada como sucedâneo da cobrança do crédito tributário, na forma da legislação própria.

Da mesma forma, a exigência de certidão negativa de tributos não pode servir de instrumento para coagir o contribuinte a solver a dívida tributária, pois esta não é a sua finalidade. Indiferente, que o desvio de finalidade esteja contida na lei ou no ato administrativo. Em ambas as hipóteses ele não se sustenta perante o ordenamento jurídico global.

Os tributos hão de ser cobrados por meios específicos previstos em lei. Nas relações jurídicas de direito público não se aplica o princípio exceptio non adimpleti contractus, previsto no art. 476 do Código Civil.

A exigência de certidão negativa de tributos só é legítima e constitucional nas hipóteses do art. 14 da Lei nº 11.033/04 sob comento, em que a fruição do benefício tributário (suspensão do IPI, do PIS/PASEP e da COFINS) fica condicionada à apresentação pelo interessado da prova de quitação de tributos, comprovada por meio de certidão negativa (§ 3º do artigo 14). A hipótese do art. 19 da mesma lei, objeto de exame, é completamente diferente. Não se trata de fruição de um benefício legal, mas de recomposição do patrimônio do particular, desfalcado pela ação do poder público, por determinação do Poder Judiciário. A lei jamais poderia impor condições outras para cumprimento de decisão judicial extravasando os limites constitucionais.

Positivamente, o artigo 19 da Lei nº 11.033/04 é manifestamente inconstitucional por afronta aos artigos 2º, 5º, incisos XXXV, LIV e LV, 37, 100 e parágrafos 1º e 2º da CF. Implica, ainda, abuso legislativo e desvio de finalidade extrapolando os limites da faculdade outorgada pelo artigo 205 do CTN ferindo o disposto no art. 146, inciso III da CF.

Notas de rodapé

(1) XXXIV – São assegurados independentemente do pagamento de taxas:

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimentos de situações de interesse pessoal.

(2) Art. 146 – Cabe à lei complementar:

…………………………………………………………………..

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente…….

(3) Deve-se entender no sentido de inserção de precatório em ordem cronológica específica. A partir da Adin nº 47 (DJ de 14-10-1994) pacificou-se a orientação no STF quanto à necessidade de expedição de precatório, mesmo para pagamento de débitos oriundos de condenação judicial de natureza alimentar (RE nº 180.849-7, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJU de 25-10-96, p. 41.041).

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Site: www.haradaadvogados.com.br

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