Público e privado

Analise jurídica da lei das parcerias público-privadas

Autor

  • Pedro C. Raposo Lopes

    é procurador regional da Fazenda Nacional (1ª Região) professor de Direito Administrativo dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e da Fundação Getúlio Vargas.

7 de janeiro de 2005, 14h41

Foi publicada, no Diário Oficial de 31 de dezembro de 2004, a tão aguardada lei que dispõe a respeito da parceria público-privada, fruto da tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 2546/2003, de proposição do presidente da República, elaborada sob o móvel de propiciar ingresso de recursos do setor privado na consecução de serviços públicos, mediante o compartilhamento de riscos.

Contribuíram para a elaboração da lei e para os debates congressuais, juristas da envergadura de Toshio Mukai, Carlos Ari Sundfeld e Vera Scarpinella, tendo sido realizada audiência pública no dia 13 de abril de 2004.

A parceria público-privada não é novidade no direito alienígena. Países como a Inglaterra e Irlanda, p.ex., vêm implementando essa forma de associação com sucesso. A Comissão Européia elaborou documento intitulado “Guidelines for Successful Public-Private Partnership”, o qual sublinha os modelos passíveis de adoção, desde aquele em que o Estado assume a maior parte dos riscos do empreendimento, figurando o parceiro privado na condição de mero executor material (“Tradicional Public Sector Procurement: Contracting”), até aquele em que é o parceiro privado quem assume todas as responsabilidades (“Build-Own-Operate: Concession”).

Nosso objetivo no presente trabalho, é, tão-somente, trazer algumas “anotações” para fomentar a discussão sobre alguns aspectos estritamente jurídicos da nova lei, correndo o risco imanente a toda empreitada apressada.

O artigo 1º da lei é repetição quase textual do artigo 1º da Lei nº 8.666/93, e, por isso, incidirá, decerto, nas mesmas críticas lançadas pela mais autorizada doutrina, inter plures, a menção aos fundos especiais, como se fossem entidades integrantes do aparelhamento administrativo.

O novo diploma legal, pretextando veicular normas gerais, desbordou de seu intento para dispor sobre pormenores procedimentais inseridos dentro na competência legislativa das demais entidade da Federação, o que poderá ser contestado, à luz do disposto no artigo 22, inciso XXVII, da Constituição da República.

O artigo 2º, a seu giro, conceitua “Parceria Público-Privada” como contrato administrativo de concessão.

Doravante, portanto, teremos quatro diferentes formas de delegação da prestação de serviços públicos a particulares, quais sejam a “concessão de serviço público”, tout court (denominada pela lei de “concessão comum”), a “concessão de serviço público precedida de obra pública”, a “permissão de serviço público” (cuja natureza ainda é objeto de acesos debates em doutrina) e a “parceria público-privada”.(1)

É preciso ressaltar, todavia, que, a nosso juízo, a parceria público-privada não aparece como tertium genus de concessão. Dependendo do objeto contratado, aproximar-se-á da “concessão de serviço público” ou da “concessão de serviço público precedida de obra pública”, apenas com a peculiaridade (de resto, de somenos importância jurídica) de haver contraprestação pecuniária ao parceiro público, de par com as tarifas cobradas do usuário.

Esclarece o artigo 2º, em seus parágrafos, as “modalidades” de parceria público-privada: concessão patrocinada, que é a concessão que envolve, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários, contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado; e concessão administrativa, que é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.

Aqui nos parece haver incorrido em erro o legislador.

É que as chamadas “concessões administrativas” nada mais são que pura prestação de serviços à Administração Pública, não se instaurando, por intermédio delas, a relação jurídica triangular ínsita às concessões.

Melhor andou o legislador quando, na Lei nº 8.666/93, dispôs aplicar-se o regime jurídico dos contratos administrativos “aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público” (artigo 62, §3º, inciso II).

O que a lei optou por chamar de “concessão administrativa” nada mais é que prestação de serviços sic et simpliciter, regida, pois, pela Lei nº 8.666/93.

É nesta ordem de idéias que o artigo 3º, caput, da novel lei nos parece de difícil aplicação prática. E mais: ao admitir a transferência de delegação do controle societário (ex vi da remissão ao artigo 27 da Lei nº 8.987/95), parece colidir com o artigo 78, inciso VI, da Lei nº 8.666/93, autorizador da rescisão unilateral do contrato administrativo com as graves conseqüências dos artigos 80 e 87. Seu parágrafo terceiro, ademais, carece, da mesma forma, de aplicação prática.


Outra dúvida surge no parágrafo terceiro do mesmo artigo 2º, quando dispõe não constituir parceria público-privada a concessão comum, assim entendida a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando não envolver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

Da leitura do dispositivo parece-nos que, se houver a referida contraprestação, a “concessão comum” será entendida como parceria público-privada.

Ora, não teria sido melhor dizer que parceria público-privada é a “concessão comum” quando houver a contraprestação pelo Poder Público? Embora não tivesse sido esta a intenção do legislador, aguardemos a melhor doutrina.

O parágrafo quarto veda a celebração deste peculiar contrato em virtude de seu valor (inciso I), de seu prazo (inciso II) e de seu objeto (inciso III).

A lei, nesse passo, adotou solução semelhante à da legislação portuguesa (Decreto-Lei nº 86, de 2003), que exclui expressamente de seu âmbito de aplicação as empreitadas de obras públicas, os arrendamentos, o fornecimento de bens ou de prestação de serviços, com prazo de duração igual ou inferior a três anos e parcerias que envolvam valores inferiores ao patamar eleito.

A previsão do inciso III é despicienda, visto que contratos que tenham por objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública não configuram mesmo concessão, razão pela qual não estariam jamais abrangidos pela lei.

É que, havendo contraprestação pecuniária, a hipótese será de “concessão patrocinada”, conforme definida no parágrafo primeiro.

Andou bem o legislador ao proscrever, no artigo 4º, a possibilidade de delegação de atividades típicas de Estado a particulares, reforçando a diretriz constitucional constante do art. 247.

Dentro no rol de cláusulas essenciais do contrato (artigo 5º), releva a previsão de prazo não inferior a cinco e não superior a trinta e cinco anos (incluída eventual prorrogação).

O parágrafo segundo do artigo 5º (inciso I) introduz o conceito de sociedade de propósito específico, que vem disciplinada no artigo 9º como a pessoa jurídica que deverá ser constituída antes da celebração do contrato, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria.

O parágrafo primeiro do artigo 9º condiciona a transferência do controle desse tipo de sociedade “à autorização expressa da Administração Pública, nos termos do edital e do contrato, observado o disposto no parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995”.

Eis a dicção do parágrafo único do art. 27 da Lei nº 8.987/95, verbis:

“Parágrafo único. Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo o pretendente deverá:

I – atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e

II – comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.”

É curioso notar que, mercê do artigo 5º, §2º da nova lei, à transferência do controle de tal sociedade para os “financiadores” com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicará o inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, ou seja, o financiador (que assumirá, na prática, a parceria) não necessitará atender a qualquer exigência de capacidade técnica ou financeira necessária à assunção do serviço (nem mesmo regularidade jurídica ou fiscal). Erro do legislador?

Esses mesmos financiadores poderão ser beneficiários dos pagamentos devidos pela Administração Pública por força do contrato administrativo e terão legitimidade para receber indenizações por extinção antecipada do contrato, bem como pagamentos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de parcerias público-privadas (artigo 5º, §2º).

O diploma legal é, todavia, lacunoso no que concerne aos “financiadores”, não esclarecendo a relação jurídica entretida entre eles e a Administração, a justificar o pagamento direto.

Interessante, outrossim, a situação que se instaura com a instituição dessas tais sociedades de propósito específico. O concessionário de serviço público (que é quem figurará no contrato de parceria) será pessoa diversa da executora do serviço (sociedade de propósito específico). Como a execução de serviço público por particulares só pode dar-se mediante permissão ou concessão, por força de ditame constitucional (art. 175), parece-nos que, na verdade, a real executora dos serviços concedidos será uma sociedade de mera participação do Estado (uma quase-estatal) que não celebrou contrato com a Administração Pública e que não participou do necessário prévio certame…


A Administração Pública jamais poderá ser titular da maior parte do capital votante de uma sociedade de propósito específico, por força de expressa vedação legal (artigo 9º, §4º), a não ser que a aquisição da maioria se dê como corolário do inadimplemento de compromissos mantidos com instituição financeira controlada pelo Poder Público (§5º).

Possibilita a lei, assim, forma de criação de empresas estatais à falta de autorização constante de lei específica, o que viola, a nosso juízo, o artigo 37, inciso XIX da Constituição da República.

Quantos às normas de licitação, exige a lei a modalidade de concorrência (artigo 10).

Exige, também, de forma salutar, a submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, mediante publicação na imprensa oficial, em jornais de grande circulação e por meio eletrônico, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação do objeto, o prazo de duração do contrato e seu valor estimado (artigo 10, inciso VI).

O parágrafo terceiro do artigo 10, ao exigir autorização legislativa específica para as concessões patrocinadas em que mais de 70% (setenta por cento) da remuneração do parceiro privado for paga pela Administração Pública, parece-nos violar o princípio da separação de Poderes (CR/88, artigo 2º), conforme já teve o Supremo Tribunal Federal oportunidade de decidir (ADIn 462/BA, relator o Min. MOREIRA ALVES).

A lei, ao dispor sobre o edital das licitações (artigo 11) previu, de forma inovadora, o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato (inciso III).

Uma inovação procedimental importante foi a previsão, no artigo 12, de que o julgamento possa ser precedido de etapa de qualificação de propostas técnicas, desclassificando-se os licitantes que não alcançarem a pontuação mínima, os quais não participarão das etapas seguintes.

O instituto se assemelha à pré-qualificação de que trata o artigo 114 da Lei nº 8.666/93, que poderia (enfim) ser utilizado com algum êxito. Na verdade, o que a nova lei diz é o que já se encontra na Lei de Licitações (artigo 30, inciso II). Apenas optou-se por chamar de “proposta técnica” o que tradicionalmente se chamava de “documentação relativa à qualificação técnica”.

O inciso II, do mesmo artigo 12, ao dispor sobre “critérios” de julgamento, em adição aos incisos I e V do artigo 15 da Lei nº 8.987/95, prevê “o menor valor da contraprestação a ser paga pela Administração”, bem como a combinação deste com o de “melhor técnica”.

Inova a lei ao prever a possibilidade de oferecimento de propostas econômicas escritas, seguidas de lances em “viva voz” (artigo 12, inciso III, alínea b), mas abre perigosa possibilidade para que os licitantes, sob o color de sanear falhas, complementar insuficiências ou ainda correções de caráter formal no curso do procedimento (artigo 12, inciso IV), possam alterar substancialmente suas propostas, sabedores do conteúdo das dos demais participantes, o que poderá afetar a igualdade que se quer no procedimento.

O artigo 13 introduz a possibilidade de inversão de fases, a exemplo do que vem sendo feito, com êxito, no procedimento do pregão.

Nos parece, contudo, que tal inversão procedimental se mostra incompatível com o tipo de “melhor técnica”, que pressupõe classificação de todas as propostas técnicas para fins de verificação de valorização mínima (a respeito, confira-se o artigo 46, §1º, da Lei nº 8.666/93). Assim, só terá aplicação nas parcerias quando os critérios utilizados forem o de “menor tarifa”, “melhor proposta em razão da combinação dos critérios de menor valor da tarifa do serviço público a ser prestado com o de melhor técnica” e “menor valor da contraprestação a ser paga pela Administração Pública” (Lei nº 8.987/85, artigo 15, incisos I e V, c.c. artigo 12, inciso II, “a”, da Lei nº 11.079/2004).

A nova lei (artigo 13, inciso IV) não prevê a homologação do certame como fase do procedimento. Da proclamação do resultado passa-se, incontinênti, para a adjudicação.

O capítulo IV da lei destina-se somente à União, e prevê a criação de órgão gestor de parcerias federais, com competência para definir os serviços prioritários para execução no regime de parceria público-privada; disciplinar os procedimentos para celebração desses contratos; autorizar a abertura da licitação e aprovar seu edital, bem como apreciar os relatórios de execução dos contratos.

Cuida-se de órgão pluripessoal integrado por membros indicados pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Minstério da Fazenda e da Casa Civil da Presidência da República.


A lei, neste ponto, ao delegar a criação de órgão público ao chefe do Executivo (decreto) incorre em vício de inconstitucionalidade material, por afronta ao artigo 84, inciso VI, alínea a. Cuida-se de matéria sujeita à reserva legal em sentido estrito.

O artigo 16 autoriza União, suas autarquias e fundações públicas a participar, no limite global de R$ 6.000.000.000,00 (seis bilhões de reais), em Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas – FGP, que terá por finalidade prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais em virtude das parcerias.

Cuida-se de “ente” jurídico de difícil enquadramento dentro nos conceitos tradicionais, sobretudo por outorgar a lei a aptidão para que seja sujeito de direitos e obrigações (§1º), bem como patrimônio separado dos cotistas, respondendo por suas obrigações com os bens e direitos integrantes de seu patrimônio, não respondendo os cotistas por qualquer obrigação do Fundo, salvo pela integralização das cotas que subscreverem (§5º).

Deverá a doutrina debruçar-se sobre a natureza jurídica do fundo (se pessoal formal ou moral).

Entrementes, para nós, tal “fundo” terá personalidade jurídica, e, assim, deverá enquadrar-se dentro num dos modelos de pessoas administrativas com criação admitida, pelas entidades mencionadas no caput.

Vê-se que o “fundo” será constituído por bens e direitos, e será manutenido à custa dos respectivos frutos civis, aproximando-o da figura da “fundação” (patrimônio afetado a um ideal), e, neste caso, “fundação pública de direito privado”.

A prevalecer esse entendimento, todavia, a sua criação dependerá de lei complementar que defina a área de sua atuação, a teor do artigo 37, inciso XIX, in fine, da Constituição da República, não bastando, para tanto, a existência da Lei nº 11.079/2004, embora atendida a exigência de “lei específica”, também constante do aludido dispositivo constitucional, principio.

Releva notar que a intenção do legislador é a de que fosse esse “fundo” criado, administrado, gerido e representado judicial e extrajudicialmente por instituição financeira controlada, direta ou indiretamente, pela União, sendo a representação desta exercida por Procurador da Fazenda Nacional (Lei nº 11.079/2004, artigo 17, §2º, c.c. artigo 10, inciso V, do Decreto-lei nº 147/1967.

A lei, ao cuidar das garantias a serem prestadas pelo “FGP” aos seus cotistas, na proporção dos valores de seus aportes (art. 18), autorizou (inciso II) o penhor de móveis ou direitos sem transferência da posse antes da execução da garantia.

O fundo permanece com a posse direta dos bens empenhados, transferindo ao credor, pela cláusula constituti, a posse indireta ou jurídica.

Faculta a lei a constituição de “patrimônio de afetação” (artigo 21, c.c. artigo 18, §1º, VI), segregando-se parcela do cabedal do fundo e afetando à garantia de uma determinada dívida.

Foram estas as observações que nos pareceram pertinentes, e que visam, menos que firmar posição, propiciar um primeiro contato com a lei e com as disposições que serão melhor tratadas pela doutrina autorizada.

Nota de rodapé

1- Deixamos de fazer menção às “autorizações de serviço público” por não admitirmos essa modalidade de delegação de serviços públicos a particulares.

Autores

  • Brave

    é procurador regional da Fazenda Nacional (1ª Região), professor de Direito Administrativo dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e da Fundação Getúlio Vargas.

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