Por baixo do pano

Oficial de Justiça é condenada por receber dinheiro de escritório

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5 de janeiro de 2005, 19h08

A oficial de Justiça Ivany Salete Ungaretti de Carazinho, no Rio Grande do Sul, foi condenada a dois anos de reclusão, revertidos em prestação de serviços à comunidade e multa de 20 salários mínimos, por prática de corrupção passiva. A decisão é do juiz Orlando Faccini Neto, da 2ª Vara Criminal da Comarca do município, que condenou também outros três réus, entre eles um funcionário do escritório M. L. Gomes Associados S/C Ltda. Ainda cabe recurso.

Ivany foi acusada de receber uma gratificação em dinheiro para cumprir um mandado de busca e apreensão ajuizado pelo Banco General Motors S/A. Segundo os autos, a oficial recebeu, em sua conta corrente, depósito de R$ 300, feito em nome do escritório. Segundo a defesa, o montante seria destinado ao reembolso de despesas dos oficiais de justiça.

A tese não foi acatada por Faccini, que entendeu que os réus tinham consciência da ilicitude do ato. Ainda segundo ele, a prática contribui “para animar sentimento de descrença em relação à probidade do serviço público, mormente na órbita do Poder Judiciário”. O juiz apontou, também, para o fato de o crime ter se dado “em sede onde o que se busca é a realização da Justiça e a aplicação da lei, não o inverso”.

Leia a íntegra da sentença

Comarca de Carazinho

Autos nº 009/2.03.0000230-2

Autora: Justiça Pública

Réu(s): Yvani Salete Ungaretti

Arlindo Silva Martins

Leandro Kasper

João Antônio Belizário Leme.

Juiz Prolator: Orlando Faccini Neto

Data: 21 de dezembro de 2004.

Vistos etc.

O representante do Ministério Público em atuação nesta comarca, em conjunto com Promotores de Justiça da Promotoria de Justiça Especializada Criminal de Porto Alegre, ofereceu denúncia em face de Yvani Salete Ungaretti, Arlindo da Silva Martins, Leandro Kasper e João Antônio Belizário Leme, aduzindo, em síntese, que:

a) no dia 27 de novembro de 1999, nesta cidade, nas dependências do Foro local, o acusado Arlindo da Silva Martins, na condição de funcionário do escritório de advocacia M.L. GOMES ADVOGADOS ASSOCIADOS S/C LTDA., em comunhão de esforços e conjugação de vontades com os acusados Leandro Kasper e João Antônio Belizário Leme, em razão de agir sob a orientação e determinação destes, prometeu para a ré Yvani Salete Ungaretti, oficial de Justiça, a entrega de uma gratificação em dinheiro, vantagem indevida, com o propósito de determiná-la a cumprir, naquela ocasião, em razão de já se achar na comarca, o mandado de busca e apreensão n° 10314, expedido nos autos da ação de busca e apreensão n° 33648, ajuizada por Banco General Motors S/A contra Luiz Prompt de Andrade, distribuída para a segunda vara cível local.

Narra, ainda, a denúncia, que no dia 05 de outubro de 1999, nesta cidade, a ré YVANI SALETE UNGARETTI recebeu, na conta corrente mantida junto ao Banrisul, de n°xx.xxx.xxx-xx, agência 0872, após haver cumprido diligência com citação e apreensão do veículo, na mesma data da distribuição da inicial, vantagem indevida, consubstanciada na importância de R$ 300,00 (trezentos reais), depositada por meio do cheque n° 028015, emitido por M.L. GOMES ASSOCIADOS S/C LTDA. e sacado contra o Banco Bradesco.

Assim agindo, teriam incorrido os réus Arlindo da Silva Martins, José Antonio Belizário Leme e Leandro Kasper nas sanções do artigo 333, caput, em combinação com o artigo 29, caput, ambos do Código Penal. A ré Yvani Salete Ungaretti teria incorrido nas sanções do artigo 317, caput, do Código Penal.

A denúncia fez-se acompanhar de documentos, destacando-se termos de declarações realizados pelo Ministério Público (fls. 14/8 e 37/42), cópia de cártula (fl. 23/4), termos de declarações tomados pela Polícia Civil (fls. 26/36), cópia do procedimento administrativo n. 02/99 (fls. 55/68), autos de busca e apreensão (fls. 73/80, 86), laudo de constatação e apreensão de objetos (fls. 89/96), circular informativa (fls. 97/103), termo de declarações de José Antônio Rodrigues da Rocha (fls. 150/5) e cópia dos autos de processo (fls. 157/186).

Nos termos do artigo 514 do Código de Processo Penal, os réus apresentaram resposta à acusação (fls. 200/9 e 218/258).

O Ministério Público se manifestou (fls. 261/6).

A denúncia foi recebida em 08/07/2002 (fl. 268).

Depois de citados (fls. 341, 349, 386 e 405), os acusados foram interrogados (fls. 342/3, 387, 407 e 423/7) e ofertaram defesas prévias (fls. 344/5, 388/9, 409/410 e 431).

Em instrução, foram ouvidas dezesseis testemunhas (fls. 473/6, 490, 499, 513, 522/3, 560/1, 568, 577, 629/30, 637/8 e 654/6).

No prazo do artigo 499 do Código de Processo Penal, o Ministério Público pleiteou diligências (fl. 673), deferidas ( fl. 675 – verso ).

Proferiu-se decisão às fls. 675/7, indeferindo-se a unificação de processos.


Foi acostada a conclusão do procedimento administrativo instaurado pelo Tribunal de Justiça (fls. 689/698).

Os acusados Arlindo, João e Leandro requereram diligências (fls. 703/5) no prazo do artigo 499 do Código de Processo Penal e juntaram documentos (fls. 706/782), sendo aquelas deferidas (fls. 1592).

Vieram os documentos de fls. 783/1586, 1619/1649 e 1653/9.

A ré Yvani não se manifestou no prazo do artigo 499 (fl. 1588).

Certificaram-se os antecedentes (fls. 187/190, 199, 283/290, 296/304, 469/471, 481/4, 540/3, 581 592/599).

Em alegações finais, o autor (fls. 1674/1710) requereu a condenação dos réus João Antônio Belizário Leme e Arlindo da Silva Martins, pelo crime descrito no artigo 333, caput, do Código Penal, bem como a condenação da acusada Ivany Salete Ungaretti, nas sanções do artigo 317 (corrupção passiva) do Código Penal. Postulou a absolvição do réu Leandro Kasper, com base no artigo 386, inciso VI (insuficiência probatória), do Código de Processo Penal.

A defesa de João Antônio Leme (fls. 1724/1762), por seu turno, requereu preliminarmente: A) A nulidade do procedimento investigativo (fls. 1727/8): por considerar ser ofensivo à Constituição Federal o fato de o Ministério Público realizar diretamente a investigação probatória. B) Reconhecimento de ofensa ao princípio do Juiz natural por inobservância da regra da prevenção (fls. 1729/1730): Alega que o primeiro ato judicial em relação ao Expediente Administrativo n° 02/99, foi realizado pela Magistrada da 1a Vara Criminal do Foro Regional de Alto Petrópolis, Porto Alegre (fls. 48/54).

No mérito, alegou: A) Atipicidade da Conduta Imputada (fls. 1730/1): Afirmou que o Ministério Público não comprovou: 1) Ter havido oferecimento de promessa de vantagem; 2) ter sido esta vantagem ilícita; 3) Ter ocorrido concurso de vontades com a finalidade de realização do tipo penal. B) Dos valores e procedimento de depósito e da não configuração do crime de corrupção: Publicidade e Legalidade do depósito: vantagem devida e atipicidade subjetiva da conduta (fls. 1732/8 e 1745/8): Com relação ao depósito realizado em 05 de outubro de 1999 no valor de R$ 300,00 na conta corrente da co-ré (fls. 23/4), argüiu lisura do procedimento, cuja legitimidade advém de analogia à normativa publicada pelo Poder Judiciário do Paraná, que estabelece os valores para depósito de custas judiciais variam de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) a R$ 300,00 (trezentos reais), conforme a Instrução n. 09/99, da Corregedoria-Geral da Justiça (fls. 721/6). Referiu que tal valor é tido como referencial no país, por todos os escritórios que realizam este trabalho.

Desta forma o depósito, conforme narrou, seria destinado ao reembolso de despesas efetuadas pelos oficiais de justiça não existindo nenhuma forma de gratificação. C) Inexistência de ajuste prévio dos depósitos (atipicidade da conduta imputada, fls. (1738/45)): Falta de sustentação probatória na fase de instrução acerca da promessa de vantagem no posterior. Indicou que o fato de os dados dos oficiais estarem nos cadastros é justificado pela razão de as contas dos oficiais de justiça serem públicas. D) Bilateralidade Necessária (fls. 1748/50): Discorreu que no caso em concreto há bilateralidade necessário ou indissolúvel das condutas, sendo indispensável para a configuração do tipo o conluio entre quem pratica os verbos do tipo prometer (artigo 333 do Código Penal) e receber (artigo 317 do Código Penal). E) Efeito da absolvição da co-ré na esfera penal (unidade do ilícito, fls. 1752/6): Afirmou que em sendo o ilícito uno, apesar da independência (processual) das esferas, quando se está a tratar de idêntico objeto (material) de discussão, os efeitos devem repercutir na órbita penal, sob pena de admitir-se a pluralidade de ilicitudes, quando a ilicitude já foi apreciada em outro processo (extrapenal). F) Natureza de urgência da decisão judicial e da ausência de prejuízo a terceiro: crime impossível (fls. 1756/8): Afirmou que havia notório caráter emergencial na medida tomada pela oficial de justiça (cumprir mandado de busca e apreensão).

Na hipótese de reconhecimento do ajuste prévio dos réus, considerou ser este um caso de crime impossível (artigo 17 do Código Penal), por ser a presteza uma qualidade intrínseca da medida e uma obrigação do funcionário público, sendo o meio absolutamente inapropriado. G) Da fragilidade da prova (testemunhal e documental) acusatória e da omissão (ou erro material) de dados probatórios relevantes pelo agente ministerial (fls. 1758/60): Sustentou que a única prova testemunhal apontada pelo Ministério Público foi produzida em fase inquisitorial, desmentida na fase judicial contraditória. Quanto aos documentos utilizados (livros carga de registro de mandados de 1999, 2000, 2001 e cópias de mandados cumpridos pela co-ré) salienta que houve erro material na avaliação da prova. Afirma que diferentemente do que sustentou o acusador, no período pesquisado, a Oficial de Justiça cumpriu 07 (sete) mandados no mesmo dia de recebimento.


A defesa de Arlindo Silva Martins (fls. 1763/76) aderiu explicitamente às preliminares de nulidade levantadas por ocasião da defesa do co-réu João Antônio Belizário Leme. Reiterou as teses de mérito em relação a: atipicidade objetiva da conduta (licitude dos depósitos e ausência de promessa e/ou bilateralidade necessária e unicidade de ilicitude) ou, alternativamente, o reconhecimento da inexistência de prova suficiente da tipicidade subjetiva da conduta (inexistência de dolo) ou crime impossível.

A defesa de Leandro Kasper (fls. 1777/89) aderiu explicitamente às preliminares de nulidade levantadas por ocasião da defesa do co-réu João Antônio Belizário Leme. No mérito, definiu como atípica a conduta narrada na denúncia e indicou inexistirem provas de orientação do co-réu Arlindo da Silva Martins.

A defesa de Ivany Salete Ungaretti (fls. 1797/1803) requereu a absolvição por não haver tipicidade na conduta da acusada, bem como serem insuficientes os elementos de prova coligidos.

É o relatório.

Decido.

De início, importa mencionar que a decisão que recebeu a denúncia relegou ao olvido temas invocados pelas defesas dos acusados, temas esses que, entretanto, numa fase ou noutra do feito foram repisados, mormente agora, ao ensejo das alegações finais, quando aduzidos à guisa de preliminar.

Algo, todavia, não foi enfrentado. Trata-se da argumentação encampada pelo Ministério Público, no sentido de obstar a suspensão do processo aos acusados, máxime à denunciada Ivany.

Não obstante circunstâncias inerentes aos fatos narrados na denúncia tenham sido introduzidas como fundamento tendente a inviabilizar o benefício legal, dever-se-ia partir, à época, para a remessa do feito ao I. Procurador-Geral de Justiça, no que se estaria a homenagear recente súmula editada pelo Supremo Tribunal Federal. Houve, todavia, silêncio, do qual se presume anuência com a manifestação do Ministério Público, sem que, no ponto, qualquer dos réus tenha afirmado sua irresignação, que, inclusive, constituiria fundamento para impetração de habeas.

A questão, destarte, está superada. É que, sabe-se, o que está vedado é a ausência de proposta sem argumentação que a justifique. Aqui, ainda que os fundamentos trazidos pelo autor não me pareçam os mais consentâneos com as hipóteses de vedação legal, o certo é que houve justificativa do Ministério Público, a qual, penso, somente poderia ter sido afastada com a remessa dos autos ao chefe da instituição.

Sustentam os acusados a nulidade do procedimento investigativo, porquanto realizado pelo Ministério Público.

A atividade, por assim dizer, dirigente do Ministério Público ante o inquérito policial não pode usurpar a atribuição da autoridade policial, que surge no nível constitucional.

Vale dizer, não obstante seja franqueada ao Ministério Público a requisição ou requerimento de diligências a serem efetuadas na fase policial, bem como a fiscalização, no nível do controle externo, da polícia judiciária, tem-se que não lhe é dada a possibilidade de afastar de investigação a autoridade policial, chamando para si todo o complexo de atos daí decorrentes.

Em parecer transcrito nos autos do Recurso Extraordinário nº 233.072-4, relatado pelo I. Ministro Néri da Silveira, o conceituado Juarez Tavares, Procurador da República no Estado do Rio de Janeiro, assim se manifestou, in verbis :

“ cumpre-nos salientar que a ação penal desfechada contra o paciente, lastreada em inquérito penal realizado pelo próprio órgão do Ministério Público, constituiu, realmente, fato inusitado e estranho, face a falta de atribuição do Parquet quanto ao colhimento de provas com a finalidade de instaurar ação penal, eis que cabe ao mesmo, tão somente, realizar diligências que devem ficar afetas a quem tenha a titularidade de instaurar esse tipo de procedimento, isto é, a polícia civil, e, nesse passo, mister ressaltar que é necessário que as funções fiquem bem delimitadas. Cada poder, cada órgão ou membro de Poder com suas atribuições e competências bem definidas, sob pena de se descumprir regra, também constitucional, do devido processo legal. Isso porque, quando se define, estabelecem-se limites. (…)”.

Em voto-vista, prolatado nesse mesmo Recurso Extraordinário, deixou consignado o Ministro Marco Aurélio :

“ Indaga-se : a abertura de inquérito, sua condução, o ato de colher elementos dentro desse inquérito, isso pode ser tido como inerente à finalidade do Ministério Público? A resposta nos vem da própria Constituição Federal. No inciso VI, há uma referência à possibilidade de o Ministério Público – diretamente e não via judiciário, como normalmente ocorre, inclusive, aqui, nesta Corte, quanto aos inquéritos situados na respectiva competência – expedir notificações nos procedimentos administrativos. Mas em que procedimentos administrativos? No procedimento administrativo penal, no inquérito policial? E, nesse caso, seria no inquérito do Ministério Público? Não. Naqueles casos em que se tenha a competência do próprio Ministério Público. Expedir notificações, está no preceito, nos procedimentos administrativos de sua competência.


Há mais, Senhor Presidente, a revelar que o Ministério Público não pode, e isso lhe foi negado pelo constituinte de 1988 – como eu disse – capitanear, ele próprio, à margem do crivo do Judiciário, o inquérito.

(…)

O Ministério Público não pode fazer investigação porque ele será parte na ação penal a ser intentada pelo Estado e também, não pode instaurar inquérito no respectivo âmbito.

A Constituição Federal encerra um grande todo. E, se formos adiante, se formos à parte que versa sobre segurança pública, veremos, no artigo 144, parágrafo 4º, a existência de um preceito a revelar que “ às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas (…) as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Incumbem as tarefas ‘supra’ às polícias civis e não ao Ministério Público”.

Esse alvitre, qual seja, o de que, em nosso atual sistema tem-se como inviabilizada a realização de procedimento investigatório na órbita do Ministério Público não deixa escapar duas ordens de considerações, ainda que laterais. A primeira é que, de lege ferenda, se me afigura em tudo conveniente deferir-se tal prerrogativa aos integrantes do Parquet, inclusive com a possibilidade de esses selecionarem, sim, quais os casos pontuais e específicos nos quais atuarão, mediante critérios legais que, por evidente, merecem detalhamento mais bem acabado do que as normas administrativas que, em cada Estado, as Procuradorias de Justiça têm ditado a respeito. A segunda consideração é a de que não se pode confundir instauração de procedimento investigatório com a mera realização de alguns atos de investigação.

Sucede, porém, que, na espécie – ou, em diversos casos análogos ao presente – já se fechou questão a respeito do tema. Não há como, a não ser por intolerável e descabida vaidade pessoal, pretender-se, já agora, ir, neste aspecto, contra o que já foi decidido.

Explica-se : nos autos do Habeas Corpus 70004532479, versando hipótese idêntica ao presente caso, decidiu-se, em voto lavrado pelo Desembargador Vladimir Giacomuzzi, a legitimidade de o Ministério Público realizar-se atos de investigação, neste que foi alcunhado de o “caso dos oficiais de Justiça”.

Transcrevo o voto :

“ As teses defensivas, inobstante bem deduzidas, não merecem acolhida nesta sede.

Com efeito, está assentado em várias decisões dos Tribunais Superiores que o Ministério Público pode, sim, tomar a iniciativa de, originariamente, promover diligências ou proceder a investigações que lhe forneçam elementos de convicção capazes de embasar a formalização de uma acusação criminal.

Ainda recentemente assim decidiu esta Câmara Criminal. Houve recurso da decisão, tendo o Colendo STJ mantido o acórdão local em decisão assim ementada:

– “PROCESSUAL PENAL. INQUÉRITO POLICIAL. DISPENSABILIDADE. PROPOSIÇÃO DE AÇÃO PENAL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. POSSIBILIDADE. DENÚNCIA. DESPACHO DE RECEBIMENTO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. INÉPCIA. INEXISTÊNCIA. CRIME EM TESE. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE.

Esta Corte tem entendimento pacificado no sentido da dispensabilidade do inquérito policial para propositura de ação penal pública, podendo o Parquet realizar atos investigatórios para fins de eventual oferecimento de denúncia, principalmente quando os envolvidos são autoridades policiais, submetidos ao controle externo do órgão ministerial. (…)”. (RHC n.º 11670-RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ 04-02-02).

Outras decisões existem no mesmo sentido, como salientado no parecer do douto Procurador de Justiça:

“A 6.ª Turma do STJ já decidiu, por unanimidade, que “”para a propositura de ação penal pública, o Ministério Público pode efetuar diligências, colher depoimentos e investigar fatos, para o fim de poder oferecer denúncia pelo verdadeiramente ocorrido”” (RHC 11.637/SC, rel. Min. Vicente Leal, DJU 18.02.2002, p. 499)”.

“O Pleno do STF, nesse sentido, já decidiu que “”a ordem jurídica confere explicitamente poderes amplos de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8.º, incisos II e IV, e § 2.º, da Lei Complementar n.º 75/1993”” (MS 21.729/DF, rel. Min. Marco Aurélio, DJU 19/10/2001, p.33).”

“ O Supremo Tribunal Federal, através de sua 1.ª Turma, assim decidiu, quando do julgamento do HC 75.769-3/MG, rel. Min. Otávio Galotti, DJU 28-11-97, p. 62220. No corpo do voto do Ministro-relator, assentou-se que “”o empenho pelo órgão do Ministério Público demonstrado na fase investigatória, não o inibe de promover também a ação penal””.

Não se pode, portanto, aceitar a increpação de que a denúncia contra os pacientes teria sido apresentada com base em prova ilícita.


É inegável que o Ministério Público recebeu do próprio Poder Constituinte significativa ampliação de suas principais atribuições, particularmente no campo pré-processual, sabendo-se que a polícia judiciária não detém, com exclusividade e exclusão de qualquer outro poder ou instituição, a atribuição investigativa. Os precedentes judiciais invocados na inicial são decisões isoladas e distantes da nova sistemática procedimental instituída em prol do interesse da nação em 1988, data venia.

Pelo que está bem descrito na denúncia, o escritório de Advocacia M.L. Gomes Associados S/C Ltda., tendo recebido a incumbência de cobrar débitos de adquirentes de veículos em todo país, com a busca, apreensão e reintegração de posse dos bens não pagos, inclusive, montou um esquema de atuação constituído de vários executores, com diversas fases de atuação, tudo minudentemente explicitado por via de instruções escritas, repassadas aos vários operadores e aos ora pacientes.

Uma destas operações consistia, exatamente, na prática da conduta objeto da incriminação sob exame, a qual, em tese e uma vez comprovada em juízo, constitui, sim, o crime pelo qual estão acusados os pacientes.

Sustentam os ilustres impetrantes que o crime de corrupção ativa não resulta caracterizado quando, como no caso, não teria havido “promessa de pagamento de vantagem indevida” ao servidor.

O procedimento consistira, apenas, no reembolso de despesas havidas nas diligências realizadas ou na complementação de custas devidas ao Oficial de Justiça.

Todavia não é o que sustenta a denúncia, nesta parte forrada em declarações dos envolvidos, em cópia de documentos e outros indicativos.

Forte indício de procedimento ilícito é o comprovado depósito de dinheiro na conta bancária do servidor também denunciado, em valor unilateralmente estabelecido pelo ofertante, e convenientemente não revelado nos registros dos autos do processo cível, o cumprimento pronto e expedito do mandado judicial por parte do meirinho, devidamente “assessorado” por preposto do referido escritório de advocacia identificado no expediente como “localizador” do bem a ser recuperado.

Acolher a tese da atipicidade da conduta dos pacientes, nesta fase do processo e nesta sede, é desconhecer a realidade forense, lamentavelmente tumultuada por várias deficiências, nenhuma delas, no entanto, de tamanha magnitude, qual a que teria sido montada e executada pelos pacientes.

Também inaceitável, nesta sede, a tese defensiva segundo a qual o acusado Leandro Kasper teria apenas assinado a inicial cível, na condição de Advogado do Credor.

A denúncia, com apoio no que foi recolhido na fase pré-processual, atribui ao referido paciente participação diversa da simples subscrição da inicial e relevante, salientando-se que antes de advogar, dito acusado fora estagiário do escritório paulista, sendo-lhe, na ocasião, atribuído outras tarefas na cadeia de procedimentos que desembocam na prática dos crimes objeto da denúncia e que teriam se repetido no caso em julgamento.

De outra parte, nenhuma irregularidade diviso no concernente à competência.

Em São Paulo teriam sido perpetrados, no máximo, atos preparatórios à prática dos crimes atribuídos aos acusados.

Nada do que foi exaustiva e minudentemente planejado, em São Paulo, poderia ter se tornado realidade em Vacaria, em Novo Hamburgo, em Porto Alegre, em Santiago e assim por diante. Nenhum crime foi perpetrado em São Paulo pelos pacientes.

Quem adquire a arma em São Paulo com a intenção de matar em Porto Alegre e aqui pratica o homicídio deve ser processado em Porto Alegre e não em São Paulo. A competência é, no caso, com acerto, estabelecida pela regra do art. 70 do CPP.

O fato de ter sido levantado o véu que encobria os reiterados procedimentos em tese criminosos em Porto Alegre, não previne a competência do Foro Regional do Alto Petrópolis.

A prevenção estabelece a competência somente quando ocorrente competência concorrente. Duas ou mais varas da mesma comarca igual e simultaneamente competentes, por exemplo em razão de crimes praticados no mesmo lugar. Não é esta a hipótese dos autos.

A conexão probatória, também invoca na inicial, não é regra inderrogável de fixação da competência.

Ela cede o passo diante do princípio geral da conveniência da cisão processual indicada para evitar incontrolável tumulto processual ou a impunidade, como haveria de acontecer, por certo, nos casos que envolvem os pacientes, em número de mais de cinco centenas, segundo noticiado.

É o que preconiza, expressamente, o art. 80 do CPP.

O argumento de que a multiplicidade de ações aforadas em diversas comarcas, dificulta o exercício da prerrogativa da ampla defesa não pode ser acolhido para o fim de beneficiar alguns acusados – os ora pacientes – em detrimento dos acusados de corrupção ativa e em desrespeito à regra universal da competência pelo lugar da infração.


Cumpre lembrar que na hipótese de eventual condenação dos pacientes em mais de uma comarca, sempre será possível unificar a execução, quando comprovada a continuidade delitiva (CPP, art. 82, última parte).

Concernentemente à invocação da não-aplicação da regra do art. 514 do CPP em favor dos pacientes, o que determinaria a nulidade dos atos processuais que se seguiram ao oferecimento da denúncia, penso que o argumento não procede, data venia.

A regra não se aplica ao co-réu que não é funcionário público (RTJ 66/63), nem ao acusado a quem não se atribui a prática de crime de responsabilidade dos servidores públicos definidos nos artigos 312 a 326 do CP (RTJ/RS 149/188 e 150/253), como no caso dos autos.

São os fundamentos pelos quais não concedo a presente ordem de habeas corpus, revogando a liminar anteriormente por mim concedida”.

È de relevo, ainda, anotar-se que os réus – salvante a acusada Ivany, visto que em razão de outro processo – impetraram Habeas Corpus perante o Supremo Tribunal Federal, aduzindo as mesmas razões que ora se está a analisar. No julgamento do HC 83463-RS, de que foi relator o Ministro Carlos Veloso, consta :

“ Tenho sustentado que não cabe ao Ministério Público realizar diretamente investigações penais, mas requisitá-las à autoridade policial competente. A ele incumbe promover ação penal pública, na forma da lei e bem assim o inquérito civil e ação civil pública, não lhe cabendo fazer as vezes da Polícia Federal ou da Polícia Civil. De outra parte, tenho entendido também, conforme jurisprudência firmada na Corte, que a instauração de inquérito policial não é imprescindível à propositura da ação penal pública, podendo o Ministério Público valer-se de outros elementos de prova para firmar sua convicção.

Certo é que, na hipótese, não estamos diante de instauração de inquérito no âmbito do Ministério Público. Aqui, conforme acentuou o parquet, não houve inquérito policial, porque desnecessário. É que o Ministério Público possuía farto material já registrado em autos processuais que evidenciava a materialidade do delito e a autoria indiciária – provas obtidas por meio de quebra de sigilo bancário e buscas e apreensões deferidas em expediente administrativo que tramitava perante o Juízo da 1ª Vara Criminal do Foro Regional de Alto Petrópolis, depoimento colhido nos autos de produção antecipada de prova testemunhal requerida pelo Ministério Público, depoimentos colhidos pela autoridade policial.

É certo que o Ministério Público colheu em seu gabinete alguns depoimentos. Entretanto, não vejo impedimento para que o Ministério Público efetue a colheita de determinados depoimentos, quando, tendo conhecimento fático do indício de autoria e da materialidade do crime, teve notícia diretamente de algum fato que merecia ser elucidado. De qualquer sorte, ainda que assim não se entenda, a denúncia está fundada em provas outras que justificam o procedimento penal ”.

Registre-se, sem que isso signifique esteja eu a me comprometer com a tese defendida, que o Ministro Nelson Jobim, citado em arestos trazidos pelos defensores, no caso específico do habeas acima gizado, fez consignar, ao acompanhar o relator :

“ Uma coisa é examinarmos o problema durante as tentativas investigatórias do Ministério Público em que podemos examinar a ilicitude; outra coisa – mesmo que isso acontecesse – é examinarmos um habeas corpus em cima da demonstração de existência de indícios fortíssimos da prática de ilícitos, porque senão estaríamos colocando a forma na frente do fundo; melhor, estaríamos destruindo o mundo, ou seja, aquilo que aconteceu, sob o argumento de que a forma pela qual se investigou o mundo não podia ser feita. Ou seja, o mundo não desaparece independente da forma.

Observo mais, confirmado da tribuna que, se essas ilicitudes de investigatória se deram, qual a razão pela qual não se reagiu durante o fluxo do próprio inquérito, afirmado inquérito, enquanto naquele momento eventualmente poderíamos paralisar ? Não podemos efetivamente nos furtar à demonstração de existência de ilícitos, seja pela forma que foi investigada – e aí V.Exa. ter dito que inclusive por cartas ou outros documentos pode o Ministério Público, independente de um inquérito policial fazer acompanhar ”.

Neste mesmo julgamento afastou-se a tese de ofensa ao princípio do juiz natural, afirmando-se que :

“ No caso, como bem concluiu o acórdão do TJ/RS, a reunião dos processos acarretaria incontrolável tumulto processual, eis que, além do enorme número de ações, que certamente encontram-se em fases distintas, são diversos os réus acusados do crime de corrupção passiva ”.

A matéria, cumpre dizer, já havia sido apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, ficando assentado, no julgamento do Habeas Corpus 13810, relator o Ministro Felix Fischer, o que segue :


“ A irresignação do recorrente não merece acolhida.

Quanto à alegação de competência do Foro Regional de Alto Petrópolis, a prevenção, consoante disposto no art. 83 do CPP, estabelece a competência somentequando dois ou mais juízes igualmente competentes, por exemplo, em razão de crimes praticados na mesma localidade, um deles tiver antecedido o outro na prática de algum ato do processo, o que não ocorreu no presente caso.

Outrossim, é sabido que a conexão de crimes ocorre quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas por um vínculo, em nexo, um liame que aconselha a junção dos processos, propiciando, assim, ao julgador perfeita visão do quadro probatório, de molde a poder entregar a prestação jurisdicional com firmeza e justiça. Assim, havendo conexão ou continência, a regra é a reunião no mesmo processo.

Entretanto, é facultado ao magistrado separar os processos, cabendo a ele avaliar a conveniência da separação nas hipóteses em que ´as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo e lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação´.

In casu, não se mostra viável a reunião dos processos ”.

De modo que afasto as preliminares argüidas pelos acusados.

Outro tema abordado pelos réus é o da eficácia eventual da decisão proferida na seara administrativa, inibindo, por conseguinte, a prolação de sentença de procedência na espécie.

A respeito desse assunto fiz publicar, na revista da Ajuris de número 92, texto que, falando em tese, procurou enfrentar o problema. Cito-o, em seus aspectos relevantes para a hipótese vertente. In verbis :

“Notas sobre a ilicitude na perspectiva da comunicabilidade das instâncias :

Orlando Faccini Neto

Juiz de Direito/Rio Grande do Sul-Brasil

1.A Questão Terminológica :

As normas penais incriminadoras representam a medida exata da significação atribuída pelo Estado a determinados comportamentos humanos. O crime, assim entendido, é antes de tudo um fato, ao qual corresponde determinada valoração de onde se extrai a norma. Essa construção, trivial porquanto simplificada, já se apercebeu o leitor decorrer da formulação tridimensional do Direito, o qual se revela resultante da interação dinâmica e dialética de três elementos : fato, valor e norma ( Miguel Reale, in Lições Preliminares de Direito, Ed. Saraiva, p. 65 ).

Se o crime é um fato de repercussão no mundo jurídico, e o é, pode-se sustentar sem peias que se trata de um fato jurídico. Aliás, a sua previsão legal já o denota, sem que se queira afirmar que de tal efeméride decorra sua consonância aos ditames da ordem jurídica.

Na classificação dos fatos jurídicos, elaborada pelos civilistas, resulta insofismável que o crime é um ato ilícito, isto é, trata-se de “um ato humano que não se acomoda com a lei, provocando um resultado que se não afaz à vocação do ordenamento jurídico” (Silvio Rodrigues, in Direito Civil, vol. 01 -, Ed. Saraiva, p. 300).

Embora com outro perfil classificatório, mais robusto como é cediço, não discrepa da assertiva o magistério de Pontes de Miranda, para quem : “os atos ilícitos stricto sensu, a que chamamos, de ordinário, apenas atos ilícitos, são os delitos, delitos de direito penal e delitos de direito privado, ou de algum ramo do direito público sem ser o penal” (in Tratado de Direito Privado, Tomo 02, Ed. Bookseller, 2ª ed., p. 242).

Não obstante, ao conceituarmos o delito à luz de seus elementos estruturais, excluídas as eternas divergências entre os que inserem e os que não inserem a culpabilidade no conceito analítico de crime, deparamo-nos, sempre, com o elemento antijuridicidade.

Com efeito, para alguns, “define-se, assim, o crime, como ação ou omissão típica, antijurídica e culpável” (Heleno Cláudio Fragoso, in Lições de Direito Penal – vol. 01 -, Ed. Forense, p. 149); para outros : “crime é um fato típico e antijurídico” (Damásio E. de Jesus, in Direito Penal, vol. 01, Ed. Saraiva, p. 133).

Surge, então, uma contradição : constatou-se inicialmente ser o crime um fato jurídico; logo abaixo, foram citados conceitos que o afirmam um fato (típico) e antijurídico. Seria, destarte, o delito, um fato jurídico e antijurídico?

No ponto, de relevo para o que ulteriormente se verá, a solução está com Francisco de Assis Toledo, o qual ensina : “a inclusão do delito no gênero dos fatos jurídicos não pode ser impugnada diante da constatação óbvia de que o crime é uma criação do direito positivo” (in Princípios Básicos de Direito Penal, Ed. Saraiva, p. 160).

E prossegue o mestre : “Nessa linha de raciocínio, o certo será, pois, dizer-se que o delito é um fato jurídico, classificado, em uma das ramificações deste, entre os denominados atos ilícitos” (op. e loc. cit).

Afasta-se, então, o elemento antijuridicidade, para fazer surgir a ilicitude. Para além do alcance da precisão terminológica – inexcedível se se quer classificar determinado ramo do conhecimento como ciência – almeja-se adequação aos termos da lei e de conseguinte o afastamento de eventuais confusões no plano teórico.

Deixemos, pois, como já apontara o citado Francisco de Assis Toledo, o delito como ato ilícito, “no único lugar que lhe cabe em uma visão sistemática do direito” (op. e loc. cit.).

Ressalte-se, como já afirmado, que o Código Penal alberga corretamente o conceito, tanto ao elencar, no artigo 23, as excludentes da ilicitude, como ao disciplinar – artigo 21 -, o erro sobre a ilicitude do fato.

1.Ilicitude Penal e Extra-Penal.

A ilicitude é uma só para todo o direito.

Como dizia Nelson Hungria : “o legislador é um oportunista, cabendo-lhe apenas, inspirado pelas exigências do meio social, assegurar, numa dada época, a ordem jurídica mediante sanções adequadas” (in Comentários ao Código Penal, vol. 01, Tomo 2º, Ed. Forense, p. 27).

Ou seja, nos mais variados ramos jurídicos vislumbra-se a presença da ilicitude, de maneira que “o mesmo suporte fático pode ficar sob a incidência de duas ou mais regras jurídicas, donde, com o mesmo ato, ter o agente de sofrer pena criminal, indenizar e sofrer perda do pátrio poder, ou de cargo público ou de outro direito” (Pontes de Miranda, op. e loc. cit ).

Todavia, não somente em decorrência da maior gravidade que enseja, mas também por lógica sistêmica, a ilicitude penal, para suceder, exige um pressuposto inarredável. Trata-se da presença de um prévio modelo descritivo de conduta proibida, que se caracterizará, nesta perspectiva, pela eleição de certos fatos, pelo legislador, aos quais corresponderá a sanção criminal.

Em termos sintéticos, a ilicitude penal depende de uma condição primordial que é a anterior previsão normativa do fato em um tipo penal.

Para a ilicitude extrapenal, não jungida ao princípio da legalidade e anterioridade, revela-se despicienda a existência prévia de um tipo que, quanto possível, traga os elementos tendentes à sua configuração. Não há, em tal hipótese e para que advenham as conseqüências ínsitas à prática de um ilícito civil, a exigência de um modelo legal abrangente dos elementos sem os quais a ocorrência de um fato não produziria efeitos.

De tal arte, como leciona Francisco de Assis Toledo: “poderíamos representar graficamente esta distinção através de dois círculos concêntricos : o menor, o do injusto penal, mais concentrado de exigências; o maior, o do injusto extrapenal ( civil, administrativo etc ), com as exigências mais reduzidas para sua configuração” (op. cit., p. 165).

1.Uma explicação necessária :

De notar-se, entretanto, que a par da unidade ontológica do conceito de ilicitude, a conseqüência a ser extraída em cada uma das instâncias de apuração, e mesmo a existência de tais consectários, está a depender, no que respeita ao dever de reparar civilmente, da existência de dano.

A asserção acima se justifica, pois, como assevera Gaetano Foschini, a lesão penal e o dano civil integram dois suportes fáticos “che hanno identica situazione precettiva e diverse situazione dispositive” (in Sistema del diritto processuale penale, v.1, nº 174, p. 154, apud Araken de Assis, in Eficácia Civil da Sentença Penal, 2ª ed., Ed. RT, p. 27).

Sabe-se, em tal enfoque, que a divergência existente entre a redação do artigo 159 do antigo Código Civil e a alvitrada naquele em recente vigência nenhuma significação de ordem prática ensejará. Com efeito, a norma revogada dispunha, a pressupor imposição do dever de indenizar, a violação de direito ou a causação de prejuízo. Já o artigo 186 da legislação atual acoima de ato ilícito, cujo consectário será o nascedouro de uma obrigação indenizatória, aquele em que há violação de direito e causação de prejuízo.

Todavia, nem à época em que vigorava o artigo 159 do falecido Código Civil admitia-se imposição da obrigação de indenizar àquele que praticasse ato ilícito, sem que houvesse dano, ou seja, nos termos da lei, causação de prejuízo. Quer dizer, a substituição de conjunção alternativa por aditiva, deveras, mostra-se ínócua.

De modo que, na lúcida exposição de Sergio Cavalieiri Filho : “Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Sem dano pode haver responsabilidade penal, mas não há responsabilidade civil” (in Programa de Responsabilidade Civil, 2ª ed., Ed. Malheiros, p. 70).

Igualmente, Fernando da Costa Tourinho Filho assevera, ao cuidar do disposto no artigo 91, I, do Código Penal, que : “é evidente que a sentença condenatória só terá tal efeito se a infração produzir dano” (in Processo Penal, vol. 02, Ed. Saraiva, 18ª ed., p. 22).

Resvala-se, de conseqüência, em sutileza reveladora quiçá de certa impropriedade do artigo 186 do Código Civil vigente. Os atos ilícitos penais que não produzam dano, lesão, a exemplo da tentativa branca de homicídio, infrações de mera conduta e de perigo abstrato, se bem que dotadas de ilicitude que se espraia à órbita civil – ou extrapenal, como se queira – apenas não ensejam a obrigação de indenizar, visto faltar-lhes aquele requisito.

Afirmar-se, pois, que certo fato ilícito penal, pela simples circunstância de não ocasionar dano indenizável, desfigura-se como ilícito civil, tanto mais diante de um ordenamento que ainda não se afastou totalmente do paradigma liberal individualista, equivale a erro de percepção, até porque, em regra, infrações administrativas – como as de trânsito, ambientais ou tributárias – não dão azo a indenizações – ao menos enquanto não se aperfeiçoa o sistema de tutela de interesses difusos e coletivos – e nem por isso fazem arrostar a ilicitude extrapenal lhes inerente.

Em realidade, se há de reconhecer que “o juiz, no processo-crime, atento a questões outras, nenhum cuidado dedica à danosidade extrapenal, integrante da ‘responsabilidade’ considerada, nem há correlação necessária entre delito penal e dano civil ” (Araken de Assis, op. cit., p. 161 – grifos meus), embora – e aqui adota-se escólio divergente do autor citado -, haja imbricação entre o delito penal e a conseqüente revelação de ilícito extrapenal.

4. Consectários.

Acentua José Frederico Marques que “a ilicitude penal pressupõe sempre uma ilicitude extrapenal” (in Elementos de Direito Processual Penal, vol. 03, Ed. Bookseller, 1997, p. 99).

Retomando-se, então, a idéia lançada por Francisco de Assis Toledo, poder-se-ia configurar axiomas que, se não estão de todo isentos de críticas, ao menos permitem o desenvolvimento profícuo do tema.

São eles :

A)Todo ilícito penal é um ilícito extrapenal : o fato que está presente no círculo menor necessariamente faz parte do círculo maior.

B)Nem todo ilícito extrapenal é um ilícito penal : o cediço exemplo da hipótese é o dano culposo, não erigido pelo legislador à categoria de fato típico, sem deixar, contudo, de configurar ilícito civil.

C)Todo lícito extrapenal não poderá ser um ilícito penal.

A ordem jurídica não admite decisões conflitantes entre si. Por conta disso, nada obstante o Código Civil preceitue que a responsabilidade civil independe da criminal, não raras vezes observamos que a decisão proferida numa instância produzirá eficácia noutra.

Amiúde tal asserção é entendida apenas no que concerne aos efeitos da sentença penal no âmbito civil, mormente quando se tem em vista a obrigação do réu reparar o dano em decorrência de contra si haver uma sentença criminal transitada em julgado (artigos 91, I, do Código Penal, 63 do Código de Processo Penal e 1525 do Código Civil).

Tais dispositivos confirmam que configurado o ilícito penal ter-se-á necessariamente um ilícito extrapenal, no caso jungido ao direito civil, de modo a tornar írrita ação de conhecimento para ensejar o dever de indenizar. Liquida-se a sentença penal e se procede à execução do julgado.

Corrobora-se, outrossim, a idéia de que o crime julgado em sentença imutável e que imporá a obrigação indenizatória é aquele do qual decorreu dano, tanto que tal é a expressão utilizada no artigo 91, I, do Código Penal, o que não sucederia, por exemplo, em uma tentativa branca de homicídio, a qual, nem por isso, deixa de configurar ilícito civil, de maneira que, por exemplo, consubstancia suporte fático da incapacidade para suceder por indignidade, a qual a doutrina classifica como sanção de ordem civil – neste sentido, Wasington de Barros Monteiro, in Curso de Direito Civil, 6º volume, Ed. Saraiva, p. 58.

No que concerne ao estabelecido no primeiro postulado, de que todo crime revela-se, outrossim, um ilícito extrapenal, bem como que, para tal asserto dispensa-se a ocorrência de dano, o qual se exige apenas para a imposição do dever de indenizar, farta é a doutrina, embora fragmentada entre os comentadores do Direito Civil, Penal e Processual em geral, dada a pluralidade de enfoques que a matéria faz despontar.

Dois sistemas, em resumo, buscam tratar da matéria no direito comparado. O primeiro, denominado da separação, obsta a apreciação de matéria diversa da penal no juízo criminal, exigindo que a vítima do dano eventualmente ocorrido valha-se de outra seara forense, em geral manejando ação que se não influenciará pelo decidido naquele outro feito. No outro grupo, oportuniza-se a decisão em conjunto da demanda penal e do pleito indenizatório, agregando-se à Justiça Criminal a pretensão privada da vítima.

A dissecação dos sistemas, visto que o direito pátrio, ainda que com alguns temperamentos, adotou o da separação, divorcia-se do escopo deste texto e de resto já foi realizada, com profundidade, por Araken de Assis,op. cit., p. 43/61.

Do ponto da eficácia da sentença criminal na órbita civil, as disposições legais e a doutrina existente tornam desnecessária maior incursão naquele postulado inicial. Num ponto, porém, o tema merecerá análise, ainda que superficial : o da possibilidade de um mesmo Juízo julgar a ação penal e a ação civil – seja ela indenizatória ou, como se verá, de outro conteúdo – decorrentes do mesmo fato.

5. Demandas penal e civil e a questão do conhecimento prévio do magistrado acerca da causa petendi :

(…)

6. Acerca do terceiro postulado :

Consoante se viu, até o momento deixou-se de lado digressão maior acerca dos efeitos da sentença criminal noutras esferas jurídicas, sob o fundamento de que o tema já mereceu amplo destaque em nível doutrinário, sendo alvo, inclusive, de monografia cujo autor foi o consagrado Araken de Assis, sem contar que no plano legal dispositivos esparsos regulam a espécie.

De modo que, encaminhando-se para o desfecho, não pretende o texto abordar o angustiante tema dos efeitos que eventual sentença penal de improcedência haverá de produzir na órbita da indenizatória civil e nem mesmo a natureza do título que a condenação criminal imutável coloca em favor do lesado.

Constata-se, apenas, que o teor dos dispositivos legais que regulam o tema, no mais das vezes e em face da cediça lerdeza dos órgãos estatais, deixa a vítima de valer-se da possibilidade de aguardar o término do processo criminal, para obter título executivo, com o que se dificultaria a ocorrência de decisões contraditórias, ingressando, isto sim, com ação reparatória, que pode, verdadeiramente, encontrar o seu final antes mesmo do início do processo crime.

Não há, porém, previsão normativa acerca da influência que decisões prolatadas em outras searas, máxime nas ações de indenização lastreadas no mesmo fato, terão no âmbito criminal.

Aqui retumba de modo inequívoco o estabelecido naquele terceiro postulado, ou seja, não ser admissível que um lícito extrapenal configure um ilícito criminal.

No mais das vezes, os julgados, referindo tratar-se de diversas instâncias de julgamento, olvidam a decisão precedente, que apreciou, embora com outro enfoque, o mesmo fato, tornando livre de peias o curso do processo criminal, nada obstante na esfera civil o fato tenha recebido decisão imutável.

Não surpreende, nesta perspectiva, que de maneira francamente equivocada tenha Rui Stoco afirmado o seguinte : “a sentença cível nenhuma influência tem na instância criminal, porque esta funciona em órbita consideravelmente mais estreita” (in Tratado de Responsabilidade Civil, 5ª ed., Ed. RT., p. 180).

Trivial que seja, o grau de requisitos a consubstanciar um ilícito criminal é deveras mais robusto do que os necessários à completude de um ilícito civil, mormente porque aquele se vê sempre e sempre subordinado a uma precedente previsão normativa que o descreva em todos os seus elementos, consagrando um tipo penal. Afora isso, a própria natureza dos consectários de cada qual faz concluir ser mais difícil, por mais exigente, a ocorrência de um ilícito criminal do que um civil.

Entretanto, excluída a idéia de tipicidade, e volvendo ao que interessa ao presente, tem-se que, como apreendeu Sergio Cavalieri Filho, “O ato ilícito é um só, comum às esferas penal e civil; o que varia são as conseqüências a serem impostas ao infrator” (in op. cit., p. 405). E, valendo-se de escólio alvitrado por Bentham, explica o autor que “as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição. Todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas sobre um mesmo plano, sobre um só mapa-múndi, razão pela qual não há falar-se de um ilícito civil ontologicamente distinto de um ilícito penal” (op. e loc. cit – o grifo não está no original).

Não discrepa do sobredito voto do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Vicente Cernicchiaro, proferido no RHC 7682/SC, segundo o qual : “No direito não há contradição lógica : o que é ilícito em uma área, será necessariamente ilícito em outra. A ilicitude é uma só. Eventual contradição pode ser fática no plano de experiência jurídica”.

Daí que, nas hipóteses em que o fato gerador dos processos criminal e civil é um só, idêntico, a boa realização da Justiça impõe que a decisão seja também uniforme.

Socorre-nos mais uma vez o doutrinador do Rio de Janeiro : “A ação penal e a indenizatória constituem, em última instância, um duplo processo de responsabilização pelo mesmo fato danoso, não sendo justificáveis decisões conflitantes” (Sergio Cavalieri Filho, op. cit., p. 403).

Ora, pelas razões expostas, se certo fato, erigido à condição de causa de pedir de um processo civil, for acoimado de lícito nesta seara, fadar-se-á ao insucesso o processo criminal decorrente do mesmo fato que não estiver instaurado – tendo-se como certa a ausência de justa causa – ou, iniciado que esteja, não tenha alcançado o seu momento derradeiro.

Quer dizer, proclamada a inexistência de um fato ilícito civil, ter-se-á irremovível obstáculo ao reconhecimento posterior de um ilícito criminal, porquanto aquilo que é permitido – admitido ou não valorado como contrário ao direito – no campo civil, não pode estar concomitantemente vedado na esfera penal, mais concentrada de exigências quanto à ilicitude.

Ao contrário do que se possa supor, a casuística – seara na qual não se ingressará em minudências – concernente à hipótese ventilada é vasta. Não raras vezes, decisões tomadas fora do âmbito criminal antecedem mesmo o início do processo penal e, olvidá-las, seria impor inequívoca contradição ao sistema.

Dentre os variados exemplos que se poderia mencionar, calha, de início, que se vislumbre a pendenga no que respeita aos acidentes de trânsito.

Correntes na vida cotidiana, em que o tráfego de veículos tornou-se ao mesmo tempo uma necessidade básica e um transtorno inequívoco, mormente nas grandes cidades, os acidentes de trânsito dão azo, quase sempre, a ações indenizatórias, em que o lesado busca reparação e à persecução criminal, em que se haverá de apurar eventual ilícito, de regra culposo.

Certo é que, por diversos motivos, dentre os quais já se destacou a insuportável delonga de um processo criminal, os lesados de uma efeméride de tal jaez ingressam, de logo, com o feito reparatório, que atinge sua conclusão antes da instauração ou na pendência do processo criminal baseado no mesmo fato.

O escopo de barrar decisões conflitantes decorre do artigo 110 do Código de Processo Civil, o qual, entretanto, encerra mera faculdade de o Juízo civil sobrestar o andamento do processo até o pronunciamento – rectius decisão imutável – proferido pela Justiça criminal, sendo que, caso ainda não instaurado o processo penal, ter-se-á, para tal, o prazo de trinta dias, decorridos os quais será retomado o andamento do feito civil.

Não obstante certa corrente doutrinária sustente que a indeterminação quanto ao prazo de suspensão do processo civil, prevista no artigo 110 antes mencionado, faz, por analogia, incidir o disposto no artigo 265, parágrafo 5º do Código de Processo Civil, tornando o interregno de um ano como o teto de sobrestamento, é de se considerar, na esteira do apregoado por Helio Tornaghi, que, a bem da coerência sistêmica e ausente o preceito legal, a suspensão operar-se-á até a conclusão do feito criminal ( in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 01, Ed RT, 1976, p. 355 ).

Sucede, porém, que, seja por se tratar, de lega lata, a suspensão da demanda civil de mera faculdade, seja porque passados trinta dias sem a deflagração da persecução penal em Juízo, retomar-se-á o processo civil, tem-se como tranqüila a hipótese, diga-se não-remota, de conclusão da ação indenizatória antes da criminal, especialmente para aqueles que ao artigo 110 do Código de Processo Civil admitem, por analogia, a incidência do parágrafo 5º, do artigo 265 da mesma legislação.

Em tal caso, e a depender do fundamento de eventual sentença civil de improcedência, ter-se-á inviabilizada a instância penal. Ou seja, a decisão civil que reconhecer a licitude do fato produzirá eficácia na órbita criminal.

O Tribunal de Alçada Criminal, em caso recente, já se manifestou sobre o tema. Cita-se :

“Não tendo sido reconhecido no cível nem sequer a culpa aquiliana da ré, seria fazer grande violência ao direito pretender apurar, no juízo criminal, a culpabilidade de seu representante” (TACRIM-SP – HC nº 349.210/2, 15ª Câmara Criminal, Rel. Juiz Carlos Biasotti).

Coaduna-se perfeitamente à tese exposta decisão desta estirpe, na medida em que sendo lícito o fato do ponto de vista extrapenal, uma vez que reconhecida a ausência de culpa, revelar-se-ia verdadeira teratologia em sede de processo criminal a afirmação de ilicitude, pois, como já dito, o ilícito criminal depende de maiores requisitos que o ilícito civil. Este é um minus em relação àquele e sua inexistência faz desaparecer a justa causa para a ação penal.

Não haverá de ser diverso o entendimento quando a hipótese versar sobre ações de improbidade administrativa e criminal, ambas embasadas no mesmo fato.

Sabe-se que “os atos de improbidade estão definidos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8429/92. Muitos deles podem corresponder a crimes definidos na legislação penal e a infrações administrativas definidas nos Estatutos dos Servidores Públicos. Nesse caso, nada impede a instauração de processo nas três instâncias, administrativa, civil e criminal. A primeira vai apurar o ilícito administrativo segundo as normas estabelecidas no Estatuto funcional; a segunda vai apurar a improbidade administrativa e aplicar as sanções previstas na Lei nº 8429/92; e a terceira vai apurar o ilícito penal segundo as normas do Código de Processo Penal” (Maria Sylvia Zanella di Pietro, in Direito Administrativo, Ed. Atlas, 13ª ed., p. 666).

No ponto, então, retoma-se o alvitre de que a eficácia da decisão civil, caso apure inexistir o fato acoimado de ímprobo ou o valore como lícito, constituir-se-á em intransponível obstáculo à inauguração de processo criminal, determinando a rejeição de eventual denúncia, por falta de justa causa ou mesmo o trancamento da ação penal eventualmente iniciada, por intermédio de habeas corpus.

Não se pode, porém, noutro enfoque, pretender-se vincular o Juízo criminal à decisão tomada na senda administrativa, na qual se analisará a conduta à luz do Estatuto funcional, dado que o exercício anômalo de função jurisdicional por órgãos administrativos representa exceção ao princípio constitucional de tripartição dos poderes, a ser interpretada, destarte, restritivamente, de maneira que, na hipótese – e também naqueles casos em que em nível administrativo são analisadas questões tributárias previstas em tipos penais –, correrá eventual ação criminal livre de qualquer peia.

Ademais, decisões administrativas não se revestem do manto da coisa julgada, de modo que, consoante Hely Lopes Meirelles : “ a denominada coisa julgada administrativa (…) na verdade é apenas uma preclusão de efeitos internos ” ( in Direito Administrativo Brasileiro, 23ª ed., Ed. Malheiros, p. 557 ), razão pela qual “ essa imodificabilidade da decisão da Administração Pública só encontra consistência na esfera administrativa. Perante o Poder Judiciário qualquer decisão administrativa pode ser modificada ” ( Diógenes Gasparini, in Direito Administrativo, 4ª ed., Ed. Saraiva, p. 540 ).

7. Conclusões :

De tudo quanto foi exposto, e nada obstante a irradiação do tema para diversas áreas do Direito torne árido o caminho, o qual, reconheça-se, ver-se-ia melhor percorrido em obra de maior vulto, ainda assim, algumas conclusões, não isentas de crítica, podem ser lançadas :

O Código Penal e a necessidade de sistematização impõem que o crime seja tratado como um fato típico e ilícito, afastando-se a expressão antijuridicidade;

Há unidade ontológica de ilicitude, de modo que o ilícito penal, mais robusto, revela, de conseqüência, um ilícito extrapenal, ainda que não ocorra dano indenizável.

Nada impede, antes aconselha, que processos criminal e civil, versando sobre uma mesma base fática, sejam processados num mesmo Juízo.

Todo fato reconhecido como lícito ou não valorado como ilícito na seara extrapenal, pelo Poder Judiciário, não pode merecer a adjetivação de ilícito criminal, inviabilizando a persecução penal por ausência de justa causa. A sentença civil, pois, produz eficácia no Juízo Criminal.

Decisões administrativas não têm essa eficácia, por não configurarem coisa julgada e em virtude do princípio da separação de poderes”.

Dentre as conclusões a que se chegou no texto citado, uma delas se mostra relevante à análise do caso vertente. Cuida-se de tese segundo a qual a decisão de índole administrativa, tal qual a exarada no concernente à ré Ivany, pela Corregedoria-Geral de Justiça, não constituem em impedimento à solução diversa na esfera penal. É que, como se viu, o princípio da separação dos poderes e a indefectibilidade da atividade jurisdicional revelam, aliados à inexistência de coisa julgada na órbita administrativa, possível soluções divergentes nessas esferas, ou melhor, fazem permitida a possibilidade de a decisão judicial, ulterior ao processo administrativo, ser alcançada livre de qualquer peia.

Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça :

“É irrelevante a absolvição de acusado de crime de corrupção passiva na esfera administrativa, pois o Judiciário tem independência absoluta para a apreciação do fato” (RHC – Rel. Edson Vidigal – RT 737/568).

Com essas considerações, passa-se à análise do mérito.

Não há como cogitar-se, na espécie, de incidência do princípio da insignificância, afirmado pelos acusados. É que o bem jurídico concernente aos fatos narrados na denúncia, qual seja a administração pública, não se afaz à questões de ordem meramente patrimonial para se revelar lesado, ou seja, em tema de corrupção ativa ou passiva, pouco importa o valor que se estabelece a revelar tenha o bem jurídico sofrido violação.

Ademais, a tese de aplicação do princípio da insignificância merece não poucas ressalvas.

Não se nega que, de lege ferenda, muitas condutas devam ser descriminalizadas ao nível do juízo de tipicidade objetiva, bem como que para alguns crimes se deva tornar a ação penal condicionada à manifestação de vontade do ofendido, com curto prazo decadencial.

Porém, assim como Afrânio Silva Jardim, “não acreditamos que esta situação possa ser resolvida ou, pelo menos mitigada através das normas processuais penais. Somos que não se deva romper com o princípio da legalidade da atuação dos órgãos públicos, ainda que isto tivesse, na espécie, algum efeito prático. Neste campo, a questão da segurança jurídica é básica, como temos procurado demonstrar” (in Ação Penal Pública – Princípio da Obrigatoriedade, Ed. Forense, 3ª ed., p. 59).

Vale dizer: a ação penal pública em nosso sistema pauta-se pela legalidade, atendendo ao princípio da obrigatoriedade, de modo que atuar o princípio da insignificância é algo que não se coaduna a nosso direito processual, razão pela qual apenas em situações deveras extremadas – não ocorrente na espécie em apreço – e com uma fundamentação no nível da política criminal é que se poderá fazê-lo.

Prossegue, nesta esteira, o autor citado : “dentro desta ótica julgamos que o moderno Código Penal de Cuba tenha chegado perto de uma das soluções possíveis. No art. 8º, após fornecer o conceito de delito, dispõe a legislação cubana de 1978 : ‘no se considera delito la acción u omisión que, aún que reuniendo los elementos que lo constituyien carece de pligrosidad social por la escasa entidad de sus consecuencias y lãs condiciones personales de su autor” (op. e loc. cit.).

Como é sabido, nossa legislação não tem dispositivo semelhante.

A acusação é parcialmente procedente.

A materialidade dos fatos narrados na denúncia se extrai da documentação coligida quando da propositura da ação, bem como do comprovante de ingresso da quantia versada na inicial, em conta corrente da acusada Ivany.

No que concerne à autoria, de pronto se há de referir que nada propende à condenação do réu Leandro Kasper. O próprio autor, em suas alegações finais, sustentou, no ponto, a improcedência. In verbis:

“no que diz respeito a Leandro Kasper, não se vislumbra conduta típica pelo só fato de assinar a inicial, não tendo havido demonstração de que tivesse orientado o co-réu Arlindo. Ressalte-se que, conforme se depreende, ele trabalhava no departamento jurídico, sendo que não era responsável pelo setor de apreensões. Em razão disso, embora pudesse ter conhecimento da prática, não pode ser considerado partícipe dela, até porque não tinha nenhum poder de decisão nas deliberações da empresa” (fls. 1709/1710).

A situação é diversa para os demais acusados.

Os réus negaram a imputação lhes formulada.

Em seu interrogatório, o acusado Leandro Kasper afirmou (fls. 342/3):

“(…) Que trabalhava no departamento jurídico onde eram produzidas as peças processuais. Na época não distribuía as ações e tampouco acompanhava as diligências nas referidas comarcas. Havia no escritório três setores bem distintos (…) Que o interrogando não tinha nenhuma atuação nos setores de cobrança e apreensões. Que José Antônio tinha uma equipe de itinerantes que saíam para as comarcas para distribuírem as ações e acompanharem as diligências. Que não conhece a acusada Yvani Salete Ungaretti. Que o co-réu Arlindo trabalhava no escritório e era itinerante (…) Que existiu no manual de procedimento do escritório uma tabela de reembolso de despesas dos Oficiais de Justiça em cuja tabela estava fixado o valor máximo do reembolso. (…) Não é verdade que o interrogando tenha orientado o acusado Arlindo acerca do procedimento quanto a distribuição do feito na comarca e contato com o Oficial de Justiça”.

Arlindo da Silva Martins, a seu turno, disse (fl. 387 e verso):

“(…) Que recebia petições do escritório de José Antônio, de Porto Alegre, e fazia os ajuizamentos das ações e pagamentos das custas; Que nunca pagou para oficiais de justiça e não sabe quem fazia os depósitos em contas de Oficiais de Justiça; Que não prometia pagamentos de valores para Oficiais de Justiça cumprirem mandados (…) Que não tinha informações sobre contas bancárias dos Oficiais de Justiça; que o depoente era quem preenchia as fichas de acompanhamento dos processos e nessa ficha não eram anotados os números das contas bancárias”.

João Antônio Belizário Leme (fl. 407), sócio do escritório, asseverou (fl. 407):

“(…) era gerente administrativo do escritório M.L. Gomes Advogados Associados; que dos co-réus conhece apenas Leandro (…) que não havia uma tabela de gratificação para oficiais de justiça no escritório, mas sim uma circular, mencionada às fls. 08/9 da denúncia, que dizia respeito a reembolso das despesas dos oficiais até o valor de trezentos reais, que até o valor de trezentos reais não era necessário a comprovação de despesa; que valores superiores a trezentos reais poderiam ser pagos desde que comprovadas as despesas e desde que o escritório autorizasse; que nega que tenha prometido alguma vantagem ao oficial de justiça Ivani para que cumprisse mandado de busca e apreensão na ação mencionada a fls. 10; que nunca esteve em Carazinho e não conhece a oficial de justiça”.

Ivani Ungaretti, oficial de justiça, referiu (fls. 423/7):

“(…) não sei do problema em si, não estou sabendo se tem procedência com relação a algum colega eu também não sei. Mas esse depósito eu achei estranho e nem me dei conta que houve na época (…) J- Como é que a senhora fazia o controle, fazia pelo contracheque? D- Naquela época, era uma conta que desaguava tudo, o meu salário, os depósitos das conduções normais pro interior, os devidos, as pensões alimentícias de meu filho, então era uma conta só, e eu nunca me preocupei de cuidar. (…) J- A senhora teve algum contato com essa empresa M.L. Gomes, Empresa de Advogados e Associados? D- Não, contato assim não, que eu recebo os mandados. J- A senhora em alguma oportunidade foi procurada por eles, num mandado de busca e apreensão? D- Com certeza fui, porque no plantão a gente receber oferta de uma gratificação, que eu sempre recuso, eu tenho por hábito de sempre recusar (…) J- É comum então receber oferta de gratificação? D- É comum, é meio que de todos assim, eu acho que é uma gentileza derrepente. (…) D- Esse tipo de busca e apreensão de medida cautelar, quando vem a parte buscar o bem é feito pelo plantão, e tem que ser feito imediatamente”.

Sucede, entretanto, que com sagacidade o representante do Ministério Público elaborou, ainda que por amostragem, o quadro de fls. 1706/7, o qual demonstra não passar de patranha as alegações da co-ré Ivani. Com efeito, analisando dezoito mandados de busca e apreensão a serem cumpridos pela ré, nos anos de 1999, 2000 e 2001, viu-se que, surpreendentemente, apenas um – o versado nestes autos – foi cumprido pela acusada no mesmo dia em que expedido.

Tem-se, aqui, elemento probatório de inequívoca eloqüência, a revelar que, por assim dizer, o estado de ânimo da acusada, no desincumbir-se de suas atribuições, se mostrava afetado pelo proveito patrimonial que, deveras, ulteriormente lhe foi assegurado via depósito bancário.

Cito trecho das alegações finais do Ministério Público, a esse respeito:

“Em análise aos quadros acima, observa-se o cumprimento de mandados de busca e apreensão durante os anos de 1999, 2000, 2001, além de um em 1998. Em uma simples olhadela, verifica-se que somente em um deles (acima negritado) o cumprimento se deu no mesmo dia em que a oficiala-ré o recebeu. O mandado é, justamente, aquele em que houve o depósito em sua conta corrente.

Ora, em todos os demais (17), embora também exigissem o cumprimento imediato, pois todos eram de busca e apreensão, tal não ocorreu. Tal elemento é prova insofismável de que, primeiro, ela tinha plena ciência do dinheiro que receberia e, segundo, que a gratificação era para que cumprisse, de forma ágil e rapidamente, o mandado de busca e apreensão, como de fato o fez ” (fl. 1707).

Nem se olvide que a entrega da vantagem, na particularidade do caso concreto, em que por diversas outras ocasiões deparar-se-ia a ré com mandados de busca oriundos de ações patrocinadas pelo escritório mencionado na denúncia, teria o condão de criar a expectativa de, novamente, lograr proveito patrimonial, atuando, inclusive, de modo a que procedesse com preferência discrepante da ordem legal no cumprimento desses mandados.

Pretenderam os réus, é certo, infirmar a constatação lançada pelo Ministério Público, apontando, inclusive, erro material de avaliação da prova ( fl. 1759 ). O erro, contudo, é da defesa. Em negrito, o autor esclareceu, à fl. 1707, que estava a falar apenas dos mandados de busca e apreensão, cujo cumprimento estava afeto à acusada Ivani. Já a defesa, olvidando essa admoestação feita às expressas, relacionou os mandados de nº 8279, 9060, 10313, 10314, 13173, 13973 e 15150, sem se aperceber que o primeiro e o segundo cuidam de separação de corpos, o terceiro e o quarto nada tem que ver com veículos, o quinto, novamente, trata de separação de corpos, o sexto versa guarda de crianças e o sétimo, aí sim, é um mandado de busca e apreensão de veículo, porém, emitido em 23 de abril de 2001 ( fl. 812 ) e cumprido pela acusada só no dia seguinte.

A defesa, assim, só fez confirmar o que asseverado pelo autor.

Cabe analisar a prova testemunhal produzida.

As testemunhas ouvidas às fls. 473/6 abonaram a conduta do co-réu Arlindo.

Waldomiro Vanelli Pinheiro, arrolado pela co-ré, afirmou (fl. 490):

“(…) A acusada referiu ao depoente que nenhum dos representantes do escritório M.L. Gomes fez contato com ela a respeito do depósito do valor, nem antes e nem depois do cumprimento do mandado” (Abonou a conduta de Ivany).

Declarou Orlando Castilho Filho, atual gerente da M.L. Gomes Advogados (fls. 499/500):

“(…) que a empresa não tem por uso pagar propina a oficiais de justiça para cumprimento de mandado existindo sim quantia em limite estabelecido que é fornecido como despesas; que desde que está na empresa sabe que é praxe ser Oficial de Justiça acompanhado de um representante da mesma para as providências necessárias como por exemplo recebimento de veículos apreendidos (…) que os reembolsos feitos a oficiais de justiça acontece depois que eles comprovam as despesas tidas como as diligências, fazendo o reembolso direto ao Oficial de Justiça e não através de Juízo”.

Essa assertiva, de resto em muito repetida nas alegações finais dos réus, merece reflexão. Deveras, se afirma que era comportamento corriqueiro do escritório a realização de depostos, tendentes ao ressarcimento de despesas de oficiais de Justiça na comarca, por qual motivo não se trouxe demonstração de que assim se procedeu, nessa comarca, com outros meirinhos…

Elange de Fátima Ávila Tempas (fl. 655), oficial de justiça atuante nessa comarca, disse, com efeito :

“(…) Quando se tem custas de condução de mandado essas são recebidas diretamente para o cartório. Esse recolhimento é feito por uma guia e pago no Banco. Na própria guia consta o número da conta do oficial, de forma que o dinheiro caia em sua conta (…) Todo mandado de busca e apreensão tem prioridade de cumprimento. Se a parte vem junto o mandado é cumprido no mesmo dia, a menos que o veículo não seja localizado. PELA DEFESA de Ivany: quando o oficial está de plantão fica no fórum para cumprir as urgências e não cumpre os mandados normais. Se o mandado de busca é carregado para o oficial de plantão ele o cumpre. (…) Comigo nunca ocorreu em um mandado haver necessidade de complementação de custas. PELO MP: Devo ter cumprido do escritório M.L. Gomes. Que eu tenha conhecimento não recebi nenhum benefício deles (…) Quando há necessidade de complementação é feita via cartório”.

Fernando José Veiga dos Santos, que trabalhou em filial do escritório de Recife de janeiro de 2000 a junho de 2002, falou que:

“(…) existiu uma circular que se referia apenas à reembolso de despesas realizadas pelo Oficial de Justiça na diligência. Que estas despesas tais como chave, guincho, combustível, eram comprovadas e o Oficial de Justiça era reembolsado do valor. Que a utilização de um valor máximo e um valor mínimo para os reembolsos ocorria para não existir excessos. Que o Oficial de Justiça entrava em contato previamente com o escritório informando a da necessidade para a realização da diligência e posteriormente era reembolsado. Que este valor não era pago a título de pagamento por agilização de cumprimento da diligência e posteriormente era reembolsado. Que os reembolsos eram pagos eventualmente. Que não eram pagos em todas as diligências. Este fato ocorria mais quando as diligências eram em zonas rurais. Que o escritório é a nível nacional. Que todos os reembolsos eram feitos pela matriz em São Paulo. (…) Que os recibos de comprovação de despesa eram recebidos nas filiais e enviados para a matriz, departamento financeiro (…) Que qualquer Oficial de Justiça que em diligência, efetuasse despesas, devidamente comprovadas e solicitasse o reembolso seria atendido. Que o escritório não entrava em contato com o Oficial de Justiça, para informar o procedimento do escritório, antes de ser realizada a diligência”.

Não obstante as assertivas dessa testemunha, há de se impor relevo ao fato de que, se realmente tal verba se destinava ao custeio de despesas, torna-se, quando menos, estranhável que o réu Arlindo estivesse a acompanhar as diligências de busca e apreensão, como se extrai da prova produzida. Sua presença, destarte, seria írrita.

Ademais, segundo o documento de fl. 674, o mandado de busca e apreensão a que se refere a denúncia, houve de ser cumprido em localidade que não se situa há mais de um quilômetro do foro, nada indicando, calha dizer, fosse justificável o reembolso de despesa por parte do oficial.

É bom, ainda, que saíamos da generalidade. Essas tais despesas, quais seriam ? Incumbiria, penso, à defesa, demonstrar, no caso concreto, e sem generalizações que se convolem em sofismas, como as ventiladas pela testemunha sobredita, quais as despesas que, no caso concreto, na hipótese vertente, estariam a justificar o depósito de trezentos reais na conta corrente da acusada Ivani.

Nesta perspectiva, é de ser gizado que :

“De um modo geral o onus probandi é repartido, também no processo penal, segundo a regra de que incumbe a cada uma das partes alegar e provar os fatos que são a base da norma que lhes é favorável” (José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, vol 2, Ed. Bookseller, 1997, p. 268).

Assim também é írrita ao fim pretendido pelos réus a assertiva de Rogério Rodrigues, que trabalha na parte administrativa do escritório em São Paulo (fl. 567):

“(…) não se tratava de pagamento de propina aos oficiais de justiça mas sim, reembolso de despesas efetuadas pelos Oficiais de Justiça”.

Outro funcionário, Wagner Tirolli disse (fl. 568):

“(…) Que pelo que eu tenho conhecimento o pagamento aos oficiais de justiça era decorrente de reembolso de despesas ocorridas por ocasião de cumprimento de mandados de busca e apreensão”.

Ana Paula Colucci Brunharo, que trabalha no escritório M.L. Gomes Advogados Associados em Campo Grande (MS) informou:

“(…) Pelo que sabe M.L. Gomes Advogados Associados paga as diligências normais, quando por acaso o Oficial de Justiça tem despesas extraordinárias, como por exemplo tem que ir várias vezes em determinado local para fazer busca e apreensão de um veículo, quando tem que chamar chaveiro para proceder arrombamento, necessidade de guinchos para puxar os carros, essas despesas os oficiais de justiça cobram no final da diligência, normalmente como prestação de contas”.

Vanessa Medrado, estagiária do escritório em São Paulo de 1990 a 1994 e que atua como advogada lá desde 2001 apontou (fls. 637/8):

“(…) tomou conhecimento quando retornou, de que havia um procedimento que era seguido por todas as filiais, de reembolso de despesas comprovadas, efetuadas pelos oficiais de justiça, em caso de busca e apreensão e reintegração de veículos (…)”.

Vê-se que, com base em tais generalizações, pretende-se fazer crível a afirmação já encampada à fl. 246, de que há contratempos na atuação do oficial de Justiça que demandam gastos não cobertos pela verba que lhe é destinada. Sucede, entretanto, que, de duas, uma : ou o escritório realizava o reembolso em todos os casos, e aí deveria demonstrar que nessa comarca outros serventuários também receberam valores, e isso a defesa não fez; ou a verba era paga em casos em que, concretamente, houve despesas excepcionais. Nessa hipótese, deveriam ter demonstrado qual a situação excepcional verificada na espécie, a justificar o reembolso. Nem uma coisa nem outra, contudo, se fez.

A circular de fls. 97/103 não confere, pois, roupagem de licitude ao depósito efetuado.

Tem-se, outrossim, que segundo o depoimento de Nelson Mohr, advogado atuante nessa Comarca, não seria usual o método utilizado pelos acusados para o reembolso de despesas (fl. 654):

“(…) Houve época em que o pagamento era feito com o contra-recibo do oficial. Noutra época o pagamento era feito em cartório. Mais recentemente o pagamento é feito em guias. Acredito que seja cerca de 10 anos que o pagamento era feito mediante contra-recibo”.

Evandro Luis Capitâneo explicou (fl. 656):

“É uma guia de depósito a usada para o pagamento das custas de condução, que vão direto para a conta do Oficial de Justiça (…) A guia é juntada ao processo”.

De notar-se que os documentos de fls. 415 revelam, induvidosamente, o ingresso da quantia apontada na denúncia em conta corrente pertencente à acusada Ivani.

À época do depósito, ainda, estava com saldo negativo em sua conta corrente, de modo a fazer inverossímil a tese de que sequer se deu conta de sua existência, máxime quando, observada aludida documentação, vê-se que o valor referido supera o que costumeiramente ingressava em sua conta.

Em juízo, José Antonio Rodrigues da Rocha, que já foi funcionário da M.L. Gomes Advogados, aduziu (fl. 629):

“(…) Verificou posteriormente que vários itens foram inseridos em seu depoimento de maneira diferente do que falou (…) Não usou a palavra “gratificação”, quando prestou depoimento na Delegacia de Polícia. Sempre usou a expressão reembolso de despesas. AS REPERGUNTAS DO PROMOTOR DE JUSTIÇA: tinha um primeiro contato com o Oficial de Justiça antes da diligência, com a finalidade de verificar o horário para cumprimento da diligência. Alguns Oficiais de Justiça ofereciam resistência para o cumprimento da diligência. O escritório tinha uma tabela com valores determinados para pagamento de reembolso dos oficiais de justiça (…) Após a criação de valores fixos

foi expedida uma circular informativa para todas as filiais do escritório. Os oficiais tinham conhecimento a respeito da tabela. Muitas vezes os oficiais realizavam diligências e entravam em contato com o depoente indagando como proceder em relação ao reembolso de despesas (…) Aludidos pagamentos eram efetuados extrajudicialmente. Não constavam nos autos. Na delegacia, sentiu-se pressionado pelo Promotor de Justiça. (…) Inúmeros oficiais se recusaram a receber qualquer valor, mesmo gastando nas diligências (…) Esclarece que se sentiu pressionado pelo Promotor de Justiça Dr. Mauro Lucio Rockenbach porque ele gritava, batia na mesa e disse que somente pararia de fazer a investigação quando “saísse no Fantástico”. Ele disse também que o depoente seria considerado e preso, mas se delatasse os fatos seria apenas testemunha”.

O depoimento dessa testemunha discrepa, a mais não poder, do que disse quando ouvido pela autoridade policial (fls. 33/6). Com efeito, nessa ocasião informou que:

“a partir do momento em que era distribuída a ação os ´itinerantes´ buscavam saber para qual oficial de justiça coube o mandado e procurava com ele contatar para o fim de se apresentar e indicar o paradeiro do veículo. (…) lembra que os itinerantes tinham mais contato com alguns oficiais que eram mais abertos, que se empenhavam mais na execução das diligências, razão pela qual, por sugestão destes, os quais não se recorda especificamente quem, passaram a lançar endereços fictícios de forma a que os mandados lhes fosse distribuído. (….)”.

A testemunha, à época, indicou o motivo pelo qual, provavelmente, retrocedeu de suas declarações em juízo :

“Doutor, eu tenho medo; eu moro com minha mulher, minha filha, junto com meu sogro e sogra e conheço essa gente; eles fazem mesmo; o próprio João Leme é poderoso, influente e não tem medo de nada” (fl. 34).

Advertida de que poderia inserir-se em programa de proteção à testemunha, revelou o proceder do escritório de advocacia, bom como o modo pelo qual sucediam os pagamentos (fls. 35/6).

Posteriormente, já incluído em programa PROTEGE, da Secretaria de Segurança Pública do Estado, prestou depoimento junto ao Ministério Público, no qual afirmou que o pagamento era efetuado :

“com o propósito de que fossem agilizados os cumprimentos dos mandados judiciais de seus interesses, atividade essa praticada por diversos escritórios de Porto Alegre, especialmente por aquele conhecido por M.L. Gomes Advogados Associados S/C LTDA (…)” ( fl. 37 ).

O relato foi confirmado em produção antecipada de prova testemunhal, o qual se transcreve em parte, ressaltando que a referida testemunha, como já havia referido nos depoimentos anteriores, mencionou estar com temor em razão dos fatos que declinou:

“que o depoente exercia suas funções no escritório sediado em Porto alegre, RS; que por inúmeras vezes o próprio depoente, quando da feitura de uma busca e apreensão de bem por oficial de justiça, solicitava o número da conta bancária do servidor para onde era feita a remessa do numerário relativo à ‘gratificação’; que havia ainda a figura de funcionários itinerantes, que acompanhavam a diligência feita pelos oficiais de justiça, passando-lhe auxílio de formas variadas, tais como condução, aporte material, dentre outros; que não raro, tais funcionários itinerantes, eles próprios, encarregavam-se da entrega da ‘gratificação’ diretamente ao servidor; que a tabela de ‘gratificações’ contemplava várias formas de remuneração do servidor, ou seja, mesmo que a diligência não fosse cumprida com sucesso, ainda assim, o servidor percebia certa quantia em dinheiro; que a tabela era inteiramente abrangente e vislumbrava as inúmeras situações passíveis de serem experimentadas, no plano processual. (…) ‘a coisa funcionava assim, a base do escritório ia até o Foro e, valendo-se de uma ação de busca e apreensão já ajuizada, procurava o oficial de justiça e expunha a maneira como poderia ser feito o pagamento. A gente logo via quem ia aderir’; que no estado do Rio Grande do Sul, normalmente, os pagamentos eram feitos via depósito bancário; (…) que o itinerante se fazia presente no ato para facilitar a diligência, oportunizando condução, aparelho telefônico dentre outros; esclarece o depoente que o itinerante, além de localizar veículos, também localizava os devedores, com o que, oportunizava a sua prisão; que as diligências levadas a efeito, sempre eram acompanhadas de um itinerante, que os oficiais de justiça, somente procediam à diligência, após lhes ser fornecidos a totalidade dos dados e localização de bens ou pessoas pretendidas buscar ou prender (…)”. Confirmou, ainda, os depoimentos anteriores, bem como que, antes de assinar, os leu (fls. 150-5).

É de clareza evidente que a reconsideração da testemunha, de certo modo, enfraquece o que anteriormente dissera, a ponto de, acaso apenas isso houvesse nos autos, não ser suficiente à condenação.

Entretanto, o juízo de procedência, como se viu, decorre do conjunto carreado aos autos, ao qual bem se pode agregar os depoimentos de José Antonio, na fase pré-processual, mormente porque não parece, deveras, crível, o comportamento que atribui a membro do Ministério Público que acompanhou sua oitiva. Agregue-se que, seja lá o nome que se dê – reembolso ou gratificação – o certo é que se afigura espúrio o depósito de valores na conta pessoal de oficial de Justiça, sem comprovação alguma de despesa excepcional que o justificasse e com o claríssimo desiderato de, por assim dizer, já preparar terreno para, na próxima ação, no próximo mandado, ter-se meirinho que dê preferência ao cumprimento de mandado pelo qual receberá quantia em pecúnia. Nem se diga que, consoante já demonstrado, a forma dos depósitos discrepa daquela usualmente adotada no serviço forense, a revelar, também sob esse prisma, a sua ilegalidade.

A tese de que a hipótese dos autos estaria a exigir bilateralidade entre as condutas consagra sofisma. É que ambos verbos imputados na denúncia se fazem presentes. No tangente à promessa de vantagem, da qual se extrai o crime de corrupção ativa, tem-se a descrição sob a forma de participação, com induvidosa descrição de conduta do acusado João Antonio Belizário Leme a configurá-lo como quem detinha o domínio final do fato.

Ou seja :

“a norma do concurso de pessoas, unindo-se a uma norma incriminadora forma a figura típica do concurso de pessoas de um determinado tipo de crime, colorindo de tipicidade a ação por si só atípica, permitindo a subsunção indireta no tipo penal” (Miguel Reale Junior, in Instituiçoes de Direito Penal, vol. 01, 1ª ed., Ed. Forense, p. 322).

Noutros termos, ao denunciar, indicou o I. Promotor de Justiça, que o acusado João Antonio Belizário Leme atuou na condição de orientador e dirigente do fato narrado. Não é preciso dizer que : “dá-se a co-autoria quando várias pessoas realizam as características do tipo”, e essa difere da participação, pois, aqui : “o sujeito, não praticando atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização ” ( Damásio de Jesus, in Direito Penal, 1º volume, Ed. Saraiva, p. 356/7 ).

No plano do direito material, como se sabe, de uns tempos a esta parte tem-se desenvolvido a análise da autoria do delito à luz da teoria do domínio do fato. Sua idéia básica “pode ser assim enunciada : o autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica; o partícipe não domina a realização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou a paralisação da ação típica” (Juarez Cirino dos Santos, in A Moderna Teoria do Fato Punível, 2ª ed., Ed. Freitas Bastos, p. 279).

É certo que há séria controvérsia, sobre se aquele que tem o domínio final do fato se insere, em nosso sistema, na condição de autor ou de partícipe.

Fernando Capez, por exemplo, sustenta que o “autor intelectual não é autor, mas partícipe, porque não realiza a conduta principal descrita no tipo. Teríamos assim apenas duas formas de autoria : a direta e imediata, quando o próprio autor, por si mesmo, pratica o verbo do tipo (ele, pessoalmente, mata subtrai, apropria-se etc), e a autoria mediata ou indireta, quando se serve de alguém sem condições de avaliar o que está fazendo, para em seu nome realizar o crime” (in Curso de Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed., Ed. Saraiva, p. 291).

Já Enrique Cury Urzúa assevera inserir-se no conceito de autoria o autor intelectual, que é “quem, sem executar diretamente a conduta típica, possui, não obstante, o domínio dela, porque a planificou e organizou a sua realização” (in Derecho Penal, Parte General, vol II, p. 245, apud. Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial – Alberto Silva Franco e outros, 7ª ed., Ed. RT, p. 484).

De um modo ou de outro, todavia, o que se observa é que a circunstância de não se ter afirmado que a promessa de vantagem partiu do réu João Antonio Belizário Leme, nem por isso, elide sua responsabilidade.

É que aquele que domina finalmente o fato não realiza, necessariamente, o verbo núcleo do tipo penal. Essa, aliás, a exata descrição de sua atuação na efeméride, que recolho da denúncia :

“O denunciado João Antonio Belizário Leme, na condição de sócio-proprietário do escritório concorreu para a prática delituosa, ao instituir a gratificação para agilização no cumprimento dos mandados judiciais e orientar a seus funcionários a maneira como deveriam proceder quando do contato com os servidores da justiça, quer quanto ao montante estabelecido, quer quanto a forma de pagamento e, principalmente, por haver emitido e assinado o cheque em favor do oficial de justiça” (fl. 08).

Acresça-se que o mesmo Nelson Hungria citado nas alegações finais (na parte em que cuida da corrupção ativa), traz, anteriormente, na mesma obra, lição que esclarece, de vez por todas, a que realmente corresponde a afirmada bilateralidade. In verbis:

“Modernamente, na disciplina jurídico legal de tal crime, apresentam-se dois sistemas : ou se enfeixam a corrução ativa e a passiva numa unidade complexa ( crime bilateral ou de concurso necessário ), condicionando-se o respectivo summatum opus à convergência ou acordo de vontades entre o intraneus (corrompido) e o extraneus (corrutor); ou se incriminam separadamente as duas espécies, de tal modo que a consumação de qualquer delas não fica, irrestritamente, na dependência de consumação da outra (ou seja, do encontro de vontades). Este último critério é o que foi adotado pelo nosso Código, onde figura a corrução passiva (art. 317) entre os crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, e a corrução ativa ( art. 333 ) entre os crimes praticados por particular contra a administração em geral.

No direito anterior era indeclinável a correspondência entre a corrução ativa e a passiva, para que se considerassem consumadas: se uma delas deixasse de existir, a outra somente seria reconhecível como tentativa. Presentemente, para que se consumem, respectivamente, a corrução passiva e a ativa, basta que o intraneus solicite ou o extraneus ofereça a vantagem indevida, ainda que a solicitação, num caso, ou a oferta, noutro, seja recusada” (in Comentários ao Código Penal, vol. IX., 1958, p. 365/6).

Cogitar-se de atipicidade na espécie é írrito. Em casos absolutamente equivalentes, decidiram, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, não haver respaldo à tese, no que revelada – à época falava-se em tese – a subsunção entre os fatos descritos e as normas penais incriminadoras respectivas. De inequívoca eloqüência revelou-se, nesta parte, o voto do Desembargador Vladimir Giacomuzzi que, às expressas, no HC 700005078373 – 4ª Câmara Criminal – TJRS, fez consignar :

“Constitui crime previsto no artigo 333 do CP, oferecer a oficial de Justiça determinada importância em dinheiro, ainda que a título de reembolso de despesas realizadas ou de complementação de custas devidas, para que o meirinho cumpra incontinenti mandado judicial de busca e apreensão ou de reintegração de posse de veículo, vindo o servidor a receber, posteriormente, a quantia prometida e estabelecida unilateralmente pelo ofertante, mediante depósito direto em sua conta bancária, sem que tal fato conste de registro no processo cível”.

É preciso amesquinhada craveira na análise da tese de atipicidade, porquanto, pelo fato de no escritório de advocacia ventilado na denúncia ter-se, praticamente, institucionalizado mecanismo espúrio de captação de vontade de servidores públicos, não se pode afastar a tipicidade dessa conduta.

Bem característico de nosso momento atual se revela o feito vertente. A ninguém é dado escusar-se acerca do conhecimento do crescimento do nível de corrupção no serviço público brasileiro. Quando, entretanto, se constata – vejamos bem – que quantia de dinheiro ingressou na conta de um oficial de justiça; que esse oficial de justiça cumpriu um, e apenas um dos mandados de busca e apreensão lhe carreados, no dia de emissão, e esse mandado é justamente aquele sobre o qual versa depósito em sua conta; no dia do cumprimento desse mandado, comprova-se que teve o oficial de justiça contato com pessoa chamada de itinerante, profissão que até então não se conhecia; vê-se donde e de quem emanou o cheque depositado; nenhum dos envolvidos traz a mínima demonstração de despesa excepcional a justificar tal depósito, até porque a diligência foi cumprida a menos de um quilômetro do foro; quando uma testemunha relata o fato, não perante marginais ou delinqüentes, mas, sim, perante uma autoridade policial e um promotor de Justiça e, nessa ocasião, revela medo e, depois, se retrata; quando o valor depositado na conta do servidor discrepa daqueles que normalmente ingressavam em sua conta; enfim, quando tudo revela a ocorrência dos crimes de corrupção, não se pode fechar os olhos e com argumentos simplistas meramente deixar-se tudo como está.

Infrações penais desse jaez não são apuráveis facilmente, os réus, na maior parte dos casos, de antemão adotam meios tendentes a, acaso descoberto o delito, obnubilar sua apuração. Deve-se, pois, analisar com a serenidade a prova produzida. Sem preconceitos e sem tendências persecutórias, mas, também, sem ingenuidades.

Para a condenação do réu Arlindo, nada mais há que se exigir além do que apurado nos autos, acrescido do veemente indício de que manteve contato com a acusada Ivany, no dia de cumprimento do mandado de busca, tanto que foi nomeado depositário judicial do bem. O dinheiro ingressou, posteriormente, na conta da ré Ivany e nada, nenhuma despesa excepcional, nenhum motivo que não fosse mera generalização desprovida de eficácia no caso concreto, se trouxe a justificá-lo. Ao cumprimento do mandado, ademais, deu-se preferência discrepante daquela com a qual, normalmente, atuava a acusada oficial de Justiça.

Ora, tal conjunto permite afirmar, livre de qualquer peia, que houve, nessa ocasião, de parte do acusado Arlindo, a promessa de vantagem ilícita à acusada Ivany.

Esperar-se que essa conversa houvesse sido gravada ou filmada, para, só daí, franquear-se juízo de procedência, seria praticamente tornar letra morta os artigos que cuidam dos crimes de corrupção.

Aliás, esses, os crimes de corrupção, são, mesmo, de difícil apuração, tanto que, de regra, as prisões sucedem no momento em que se exaurem – recebimento ou entrega do valor – como geralmente dão notícia os meios de comunicação. E, nesse caso, não se fala em prisão em flagrante, numa falha evidentíssima do sistema penal, que, de certo modo, torna deveras difícil a apuração de bens que violam determinados bens jurídicos. Cria-se como que uma rede de proteção, por razões que, agora, não vêm ao caso estudar.

Como se sabe :

“o direito é ideológico na medida em que oculta o sentido das relações estruturais estabelecidas entre os sujeitos, com a finalidade de reproduzir os mecanismos de hegemonia social” (BARROSO, 2004, p. 279; WARAT, 1984, P. 17).

Assim, num certo sentido, a ampliação ou redução dos níveis de tutela penal a certos bens jurídicos não deixa de refletir os interesses, ainda que limitados num dado tempo histórico, das classes dominantes.

Em suas notáveis alegações finais, fez adequada valoração da prova produzida o representante do Ministério Público, mormente no trecho que, acolhendo como razão de decidir, permito-me citar. In verbis :

“A tese dos acusados vinculados ao escritório nominado de que os depósitos correspondiam a despesas dos oficiais de justiça e de que, como tal, não há qualquer ilicitude, não se sustenta, por várias razões.

Em primeiro lugar, como é notório, não existe forma de reembolso de despesas fora dos autos. Ou seja, todas as despesas dos oficiais, quando existentes, são pagas dentro dos autos, com base no art. 19 do CPC.

Nesse sentido, foi categórica a testemunha Elange de Fátima Ávila, que é oficial de justiça e foi arrolada pela acusada Ivany: “Quando se tem custas de condução do mandado estas são recolhidas diretamente para o Cartório. Esse recolhimento é feito por uma guia e pago no banco. Na própria guia consta o número da conta do oficial, de forma que o dinheiro caia em sua conta. (…) quando há necessidade de complementação é feita via cartório (fl. 655).

Igualmente, as testemunhas Nelson Mohr e Evandro Luiz Capitâneo, também arrolados por Ivany, confirmam que as despesas dos oficiais são recolhidos mediante guias e acostadas ao processo correspondente (fl. 654 e 656).

Em segundo lugar, se o pagamento fosse a tal título, porque somente alguns oficiais receberam? Será que os demais não tinham despesas? Se o pagamento mínimo se dava sem comprovação das despesas, por que os demais oficiais que também cumpriram mandados de interesse do indigitado escritório nada receberam?

Nos cadastros do escritório de advocacia, entretanto, embora havendo outros oficiais de justiça na Comarca de Carazinho, somente dois deles tinham seus dados registrados, entre os quais estava os da acusada.

A testemunha Elange, oficiala de justiça na Comarca, em seu depoimento, disse “devo ter cumprido do escritório ML Gomes. Que eu tenha conhecimento não recebi nenhum benefício deles. Não tive depositado por este escritório em minha conta.” ( fl. 655).

A oficiala Margarete Regina Petry Beppler cumpriu o mandado de busca e apreensão, em ação patrocinada pelo escritório referido, de n.º 33.648 (fls. 819-20), consoante se depreende do auto de busca e apreensão e depósito, cujo bem também foi entregue ao co-réu Arlindo da Silva Martins (fl. 821). Tal oficiala, porém, não recebeu qualquer valor. Por que ela não foi reembolsada?

A mesma oficiala cumpriu outro mandado (fl. 837v), cuja ação também foi patrocinada pelo escritório referido (fl. 828). Nada recebeu outra vez. Como que ela, novamente, não foi reembolsada?

O oficial Paulo Noschang também cumpriu mandado de busca e apreensão (fls. 832- 833), em ação movida pelo escritório demandado (fl. 834). Igualmente não foi reembolsado. Cadê o reembolso deste oficial?

Portanto, insiste-se, se o pagamento era automático, como referiu o réu Belizário Leme quando depôs no Ministério Público, bastando alimentar os dados no computador, com repasses de até R$ 300,00, sem necessidade de comprovação de despesas, como disse ele em juízo, como outros oficiais que cumpriram mandados não foram reembolsados com os depósitos?

Os acusados estão com a palavra!

Em terceiro lugar, a fantasiosa alegação de reembolso de despesas resta descaracterizada pelo fato de serem pagos valores uniformes, levando em conta o tipo de apreensão, se de veículo ou se de moto. Ora, somente por isso, não se poderia aferir o montante das despesas realizadas por ocasião da apreensão. Um singelo exemplo arremata o assunto: se para a apreensão de um veículo, o oficial fizesse uma única diligência, certamente gastaria menos se tivesse que fazer cinco para a apreensão de uma moto. Entretanto, o valor recebido pelo veículo ainda assim seria maior, o que revela que o pagamento nada tinha com eventuais despesas efetuadas pelos oficias.

Em quarto lugar, está no fato de que, quando das apreensões, sempre havia um funcionário do escritório acompanhando o oficial de justiça (itinerante), como admitem os acusados. Entretanto, se este funcionário estava presente na apreensão, como ocorreu no caso descrito na denúncia, evidentemente que ele deveria suportar o pagamento de eventuais despesas existentes, de guincho, de táxi, p. ex., não havendo necessidade de desembolso pelos oficiais.

Por fim, o que descarta por completo a alegação de que o valor pago era para reembolso, as mirabolantes dificuldades para cumprimento dos mandados, levantadas pelos demandados, ficaram somente no plano teórico, até porque nos dois casos registrados em Carazinho, o cumprimento do mandado se deu sem qualquer delonga e no mesmo dia da expedição, com o acompanhamento do itinerante, o que descarta a realização de despesas por parte dos oficias.

De fato, no caso em apreço, o mandado de apreensão do veículo e citação foi cumprido no mesmo dia da determinação (fls. 175-6). E mais, os endereços constantes no mandado, seja a Marcílio Dias, seja a Av. Flores da Cunha, são ambos no centro da cidade de Carazinho, os quais se localizam a não mais do que 01 Km do Fórum. A acusada, ao ser ouvida no Ministério Público, foi categórica: “que no referido feito, considerando-se o endereço da diligência, na Rua Marcílio Dias n.º 769-B, nesta Cidade, não havia despesa de condução a ser reembolsada”. A certidão da fl. 674 informa que a distância do Fórum até o endereço na Flores da Cunha dista 900m.

Ora, que despesas teve a oficiala-ré para tal diligência? Os demandados fariam um obséquio se comprovassem o alegado, até porque, neste aspecto, a eles cabe o ônus da prova. Se não necessitava de comprovação até o limite de R$ 300,00, porque os outros oficias que também cumpriram mandados não receberam?

Por todos estes argumentos, resta patente que o pagamento efetuado nada tinha com reembolso de despesas, e não provinha da generosidade do escritório com os pobres e coitadinhos oficiais de justiças. Pura falácia!

(…)

A negativa da ciência por parte da denunciada é a coisa mais natural do mundo. A inexistência de testemunha é a regra em delitos do gênero, uma vez que a promessa/oferta não foi anunciada no rádio ou no átrio do Fórum com megafone, visando à adesão dos oficiais de justiça de Carazinho. Pelo contrário, ela era feita às escondidas, de forma clandestina, reservadamente, tanto que o co-réu Arlindo, como referiu no Ministério Público, recebeu instruções para a abordagem dos oficias. Ora, sabiam todos que a conduta era ilícita e por isso o sigilo. Exigir-se em casos da espécie, como prova, a confissão dos culpados, a testemunha ocular, a gravação da conversa onde se oferece e se aceita a propina, é advogar, data venia, a impunidade.

É não trilhar a advertência precisa de C.J.A. Mittermaier, in Tratado da Prova em Matéria Criminal, Ed. Bookseller, 3ª. Ed., 1996, p. 315, ao discorrer sobre o valor da prova circunstancial:

“Na maior parte dos casos falecem os meios, que, segundo o pensar comum, produzem o que se chama a prova natural; ou, se o entenderem melhor, não existem na causa a inspeção do juiz, a confissão, as testemunhas do fato. Porém o espírito investigador do magistrado deve saber achar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio apoiado pela experiência, nos processos que aplicar ao exame dos fatos e circunstâncias, que se encadeiam e fazem o cotejo do delito.

Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a providência parece ter colocado em torno ao crime para fazer brotar a luz da sombra em que o agente se esforça por sepultar o fato principal; são como um fanal que aclara o espírito do juiz, e o dirige para vestígios certos, que basta seguir para atingir a verdade”.

E complementa mais adiante (fl. 319);

“A administração da prova pela impossibilidade do contrário, a pintura surpreendente e dramática dos incidentes, que estabelecem a probabilidade das alegações produzidas, tudo tem aí uma importância capital; e, como o juiz nesse sistema não tem de modo algum por missão direta provocar a confissão, como freqüentemente falta quem deponha sobre o crime mesmo, segue-se que, de ordinário, é a prova circunstancial que decide qualquer processo.”

Portanto, embora Ivany e Arlindo não tenham confessado e não tenha havido testemunha presencial da promessa, há elementos suficientes que demonstram a oferta e a ciência inequívoca por parte da servidora, ambos de forma prévia ao cumprimento do mandado. Enumeram-se, resumidamente: primeiro: a existência dos dados da servidora nos registros do escritório; segundo: a existência de manual no escritório dando conta do procedimento e dos valores a serem pagos a oficiais de justiça pelo cumprimento de mandados; terceiro: o depósito em conta corrente da denuncia, em valor equivalente ao previsto no manual do escritório: quarto: o valor depositado era totalmente diverso do que costumeiramente ingressava na conta da ré, sendo que sua conta estava com saldo negativo; quinto: a inexistência de qualquer despesa para o cumprimento do mandado; sexto: embora outros oficiais tenham cumprido mandados em ações patrocinadas pelo escritório, somente a denunciada foi agraciada com o depósito, nem os demais tinha seus dados nos arquivos do escritório; sétimo: a denunciada cumpriu o mandado pelo qual recebeu o valor depositado no mesmo dia, em conformidade com o desejo do escritório, que era agilizar o cumprimento, diferentemente do que fazia com os demais mandados.

À citação de trecho do voto proferido pelo atual Presidente do E. Tribunal de Justiça, à fl. 1774, deve-se opor o óbice de que, data venia, Sua Excelência não levou em conta ser totalmente dispensável a “prova inequívoca do recebimento antecipado ”, visto que, em jurisprudência, é unânime a tese de tratarem-se ambas formas de corrupção de crimes formais.

Cita-se :

“Tipifica o crime do artigo 317 do CP solicitar ou receber, para si ou para outrem, vantagem indevida. Sendo crime formal, basta a simples solicitação para ficar configurado” (TJPR – AC – Rel. Luiz Perrotti – RT 465/341).

“A corrupção ativa perfecciona-se com o oferecimento de vantagem. Trata-se de crime formal que se consuma com o simples oferecimento, ainda que não aceito, ou a promessa de futura vantagem” (TJSP – EI – Rel. Cavalcanti Silva – RT 414/76).

Ou seja, o recebimento da vantagem de ordem pecuniária, em si, consubstancia exaurimento do crime, que já se consumara anteriormente.

A tese de crime impossível, por derradeiro, não tem qualquer amparo, na medida em que mera leitura do artigo 17 do Código Penal revela tratar-se o crime impossível de hipóteses em que não sucedeu a consumação. Com efeito, dispõe aludido artigo que “não se pune a tentativa quando (…)”; ocorre que se está, na espécie, diante de crime que se consumou – houve, inclusive, como apontado, exaurimento – de maneira que se não aplica o dispositivo legal em referência.

Diante do exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado na denúncia e o faço para a) absolver o acusado Leandro Kasper da conduta lhe imputada na denúncia, forte no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal e b) condenar a acusada Ivany Salete Ungaretti como incursa no artigo 317 do Código Penal e os réus João Antonio Belizário Leme e Arlindo da Silva Martins, como incursos nas sanções do artigo 333, “caput”, do Código Penal, c.c. artigo 29 da mesma legislação.

Passo a dosar as penas.

Os acusados atuaram com culpabilidade, porque lhes era exigível comportamento diverso e tinham consciência da ilicitude de seus comportamentos. Não ostentam antecedentes hábeis à agravação da pena (aqueles registrados quanto aos acusados João Antonio e Arlindo versam casos análogos ao presente, ainda sem julgamento).

As condutas sociais dos acusados foram abonadas por testemunhas e não há elementos para aferição das personalidades. Os motivos são equivalentes aos de crimes do mesmo jaez. As conseqüências são deletérias, porquanto contribuem para animar sentimento de descrença em relação à probidade do serviço público, mormente na órbita do Poder Judiciário e as circunstâncias trazem induvidosa peculiaridade, que é de o crime ter-se realizado em sede onde o que se busca é a realização da Justiça e a aplicação da lei, não o inverso. Não há vítima definível, para cuidar-se de eventual relevância de seu comportamento.

Assim fixo a pena-base de cada qual dos réus em 02 anos de reclusão e multa.

Presente a agravante consistente na promoção, direção e organização dos fatos, no que concerne ao réu João Antonio Belizário Leme, agravo-lhe em 06 meses a pena privativa de liberdade aplicada.

À mingua de outras causas de modificação, torno definitivas as penas privativas de liberdade em 02 anos de reclusão para os réus Ivany Salete Ungaretti e Arlindo da Silva Martins e em 02 anos e 06 meses de reclusão para o acusado João Antonio Belizário Leme.

Fixo-lhes o regime inicial aberto, para cumprimento da pena privativa de liberdade, tendo em conta a análise do artigo 59 do Código Penal e a quantidade de reprimenda aplicada.

Estabeleço a pena pecuniária em 50 dias-multa, à vista da análise das diretrizes do artigo 59 do Código Penal, calculados cada qual na base de um quarto do salário mínimo nacional vigente à época dos fatos para os réus Arlindo e Ivany e na base de meio salário mínimo nacional vigente à época para o réu João Antonio Belizário Leme. A pena pecuniária segue o critério bifásico de fixação, razão por que não se aplica a agravante apontada; o valor de cada dia-multa adstringe-se à evidenciada situação econômica dos réus, que trabalham, com rendimentos certos mensalmente, sendo que João Antonio ocupava cargo de destaque em grande escritório de advocacia.

Presentes os requisitos legais, substituo-lhes as penas privativas de liberdade por prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, essa no valor de vinte salários mínimos nacionais para os acusados Arlindo e Ivany e de cinqüenta salários mínimos nacionais para o réu João Antonio. A destinação da prestação de serviços e da prestação pecuniária será estabelecida na fase de execução das penas.

Na fixação do valor da prestação pecuniária observa-se a conjugação das circunstâncias judiciais enumeradas no artigo 59 do Código Penal com a potencialidade econômica dos réus, no que se adota alvitre encampado por José Antonio Paganella Boschi, em seu Das Penas e seus critérios de aplicação, p. 410, sem se olvidar os fins de prevenção e repressão de infrações do mesmo jaez, colimados pelo artigo 59 do Código Penal.

Não há motivo para decretação da prisão preventiva, razão por que os acusados poderão recorrer em liberdade dessa decisão.

Envie-se cópia da presente à Vara Cível onde se processa a Ação Civil Pública versando o mesmo fato.

Transitada em julgado, proceda-se às anotações de estilo, preencham-se os BIEs, comunique-se o TRE, lancem-se os nomes dos réus no rol de culpados e formem-se os PECs.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se.

Carazinho, 21 de dezembro de 2004.

Orlando Faccini Neto

Juiz de Direito.

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