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Reforma do Judiciário tem aplicação imediata, diz ministro.

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17 de fevereiro de 2005, 10h05

A Emenda Constitucional 45, que tratou do núcleo da reforma do Judiciário, tem aplicação imediata em relação à competência originária para julgamento de ação de homologação de sentença estrangeira. O entendimento é do ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, que deslocou do STF para o Superior Tribunal de Justiça a homologação de uma sentença dos Estados Unidos.

Segundo o ministro, “não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que os preceitos constitucionais aplicam-se imediatamente, projetando-se, desde o início de sua vigência”.

Celso de Mello assinalou que “a reforma constitucional em questão suprimiu, ao Supremo Tribunal Federal, a sua antiga competência originária em tema de concessão de ‘exequatur’ e de homologação de sentenças estrangeiras”.

Para ele, a modificação “reveste-se de aplicabilidade imediata, alcançando, desde logo, todos os pedidos de concessão de ‘exequatur’ de cartas rogatórias e de homologação de sentenças estrangeiras”.

Leia a decisão

Homologação de Sentença Estrangeira – Incompetência Superveniente do STF – EC 45/2004 (Transcrições)

SEC 5778/Estados Unidos da América*

RELATOR: MINISTRO CELSO DE MELLO

EMENTA: HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA E CONCESSÃO DE “EXEQUATUR” ÀS CARTAS ROGATÓRIAS PASSIVAS. EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO NORMATIVO DESSE TEMA NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO (IMPÉRIO/REPÚBLICA). LIMITES AO PODER DE DELIBAÇÃO DO TRIBUNAL DO FORO. SISTEMA DE CONTENCIOSIDADE LIMITADA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. PROMULGAÇÃO DA EC 45/2004. INCIDÊNCIA IMEDIATA DA NOVA REGRA DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL. SUPERVENIENTE CESSAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ATRIBUIÇÃO JURISDICIONAL AGORA DEFERIDA AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (CF, ART. 105, I, “I”). INAPLICABILIDADE, AO CASO, DO POSTULADO DA “PERPETUATIO JURISDICTIONIS” (CPC, ART. 87, “IN FINE”). REMESSA IMEDIATA DOS AUTOS AO E. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

DECISÃO: Trata-se de ação de homologação de sentença estrangeira que foi ajuizada, originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, em momento anterior ao da promulgação da EC 45/2004, que atribuiu, ao E. Superior Tribunal de Justiça, competência para processar e julgar “a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias” (CF, art. 105, I, “i”).

Cabe relembrar, a título de registro histórico, que, durante o Império, por efeito de mera lei ordinária (Lei nº 2.615, de 1875), e, também, do Decreto nº 6.982, de 1878, elaborado pelo Conselheiro LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA, a atribuição para homologar sentenças estrangeiras cíveis ou comerciais inseria-se na esfera de competência dos Juízes e Tribunais nacionais que fossem competentes para julgar a causa, se esta houvesse sido ajuizada em território brasileiro.

Com a proclamação da República, e ante a omissão da Constituição Federal de 1891, que nada dispôs a respeito, foi editada, pelo Congresso Nacional, a Lei nº 221, de 1894, que outorgou, ao Supremo Tribunal Federal, competência, para, em instância de mera delibação, homologar, ou não, as sentenças estrangeiras que fossem submetidas à sua apreciação.

Daí o registro feito por AGUSTINHO FERNANDES DIAS DA SILVA, que, em obra monográfica destinada à análise do tema (“Direito Processual Internacional”, p. 26/27, item n. 21, 1971, Rio de Janeiro), deixou consignada a seguinte observação:

“A Constituição de 1891 omitiu a homologação das sentenças estrangeiras, que a jurisprudência, porém, estabeleceu estar implícita na competência do Supremo Tribunal Federal. Essa omissão foi sanada pela Constituição de 1934 (…),tornando firme, do ponto de vista constitucional, a competência da Corte Suprema para homologar as sentenças estrangeiras, conforme dispunha a Lei n. 221, de 1894.” (grifei)

A Lei Fundamental de 1988 – observando uma tradição de nosso constitucionalismo republicano, que foi inaugurada pela Constituição de 1934 (art. 76, I, g) e mantida, até a promulgação da EC 45/2004, pelos ordenamentos constitucionais subseqüentes – atribuiu, ao Supremo Tribunal Federal, competência originária para homologar a sentença estrangeira que não se revelasse ofensiva à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes (CF, art. 102, I, h; RISTF, art. 216).

O Supremo Tribunal Federal, no exercício dessa competência, dispunha de poderes limitados, pois não lhe cabia rejulgar o litígio decidido em outro país, considerado o sistema de delibação consagrado pelo ordenamento positivo brasileiro, incompatível – segundo o magistério de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“Temas de Direito Processual – Quinta Série”, p. 154/155, 1994, Saraiva) – com a revisão de fundo do ato sentencial estrangeiro.

Esse entendimento, apoiado em autorizado magistério doutrinário (HERMES MARCELO HUCK, “Sentença estrangeira e Lex Mercatoria”, p. 45, 1994, Saraiva; YUSSEF SAID CAHALI, “Dos Alimentos”, p. 860, 2ª ed., 1993, RT, v.g.), sempre prevaleceu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

SENTENÇA ESTRANGEIRA – HOMOLOGAÇÃO – SISTEMA DE DELIBAÇÃO – LIMITES DO JUÍZO DELIBATÓRIO – PRESSUPOSTOS DE HOMOLOGABILIDADE (…).

– As sentenças proferidas por tribunais estrangeiros somente terão eficácia no Brasil depois de homologadas pelo Supremo Tribunal Federal.

O processo de homologação de sentença estrangeira reveste-se de caráter constitutivo e faz instaurar uma situação de contenciosidade limitada. A ação de homologação destina-se, a partir da verificação de determinados requisitos fixados pelo ordenamento positivo nacional, a propiciar o reconhecimento de decisões estrangeiras pelo Estado brasileiro, com o objetivo de viabilizar a produção dos efeitos jurídicos que são inerentes a esses atos de conteúdo sentencial.

O sistema de controle limitado, que foi instituído pelo direito brasileiro em tema de homologação de sentença estrangeira, não permite que o Supremo Tribunal Federal, atuando como Tribunal do foro, proceda, no que se refere ao ato sentencial formado no Exterior, ao exame da matéria de fundo ou à apreciação de questões pertinentes ao ‘meritum causae’, ressalvada, tão-somente, para efeito do juízo de delibação que lhe compete, a análise dos aspectos concernentes à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes.

Não se discute, no processo de homologação, a relação de direito material subjacente à sentença estrangeira homologanda.(…).”

(RTJ 175/521-522, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Cumpre assinalar, de outro lado, que essa mesma orientação jurisprudencial, pertinente à homologação de sentenças estrangeiras, também foi consagrada, por esta Suprema Corte, em tema de comissões rogatórias passivas:

“CARTA ROGATÓRIA PASSIVA. IMPUGNAÇÃO. SISTEMA DE CONTENCIOSIDADE LIMITADA. IMPOSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO DO MÉRITO DA CAUSA PERANTE O STF. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL CONCORRENTE DA JUSTIÇA BRASILEIRA. EFETIVAÇÃO, NO BRASIL, DA CITAÇÃO DE PESSOA AQUI DOMICILIADA. EXEQUATUR CONCEDIDO.

……………………………………………….

MÉRITO DA CAUSA –IMPOSSIBILIDADE DE SUA DISCUSSÃO NO PROCEDIMENTO ROGATÓRIO – SISTEMA DE CONTENCIOSIDADE LIMITADA.

Em tema de comissões rogatórias passivas – tanto quanto em sede de homologação de sentenças estrangeiras -, o ordenamento normativo brasileiroinstituiu o sistema de contenciosidade limitada, somente admitindo impugnação contrária à concessão do exequatur, quando fundada em pontos específicos, como a falta de autenticidade dos documentos, a inobservância de formalidades legais ou a ocorrência de desrespeito à ordem pública, aos bons costumes e à soberania nacional.

Torna-se inviável, portanto, no âmbito de cartas rogatórias passivas, pretender discutir, perante o Tribunal do foro (o Supremo Tribunal Federal, no caso), o fundo da controvérsia jurídica que originou, no juízo rogante, a instauração do pertinente processo, exceto se essa questão traduzir situação caracterizadora de ofensa à soberania nacional ou de desrespeito à ordem pública brasileira. Precedentes. (…).”

(CR 8.346/Estados Unidos da América, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 26/04/1999)

Ocorre, no entanto, como precedentemente salientado, que o Congresso Nacional, ao promulgar a EC 45/2004, modificou a regra de competência anteriormente inscrita no art. 102, I, “h” da Carta Política, deslocando, para a esfera de atribuições jurisdicionais originárias do Superior Tribunal de Justiça, o poder para apreciar as ações de homologação de sentenças estrangeiras, de um lado, e para conceder “exequatur” às cartas (ou comissões) rogatórias passivas, de outro.

Com efeito, em virtude da superveniência da referida EC 45/2004, acresceu-se, ao inciso I do art. 105 da Constituição da República, a alínea “i” , cujo conteúdo normativo assim dispõe:

“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I – processar e julgar, originariamente:

……………………………………………

i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias;” (grifei)

Vê-se, desse modo, que a reforma constitucional em questão suprimiu, ao Supremo Tribunal Federal, a sua antiga competência originária em tema de concessão de “exequatur” e de homologação de sentenças estrangeiras.

Note-se que tal modificação reveste-se de aplicabilidade imediata, alcançando, desde logo, todos os pedidos de concessão de “exequatur” de cartas rogatórias e de homologação de sentenças estrangeiras, ainda em curso de processamento no Supremo Tribunal Federal, quando da promulgação da EC 45/2004.

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que os preceitos constitucionais aplicam-se imediatamente, projetando-se, desde o início de sua vigência, com eficácia “ex nunc” (RTJ 155/582-583, Rel. Min. CELSO DE MELLO), salvo disposição em sentido contrário neles fundada (RTJ 169/271, 272, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Impende referir, no ponto, porque inteiramente aplicável ao caso ora em exame, o magistério de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo VI/392-393, 2ª ed./2ª tir., 1974, RT):

“As Constituições têm incidência imediata, ou desde o momento em que ela mesma fixou como aquele em que começaria de incidir. Para as Constituições, o passado só importa naquilo que ela aponta ou menciona. Fora daí, não.

……………………………………………….

(…)As Constituições (…) incidem imediatamente (…). As regras jurídicas de jurisdição e competência que estão insertas na Constituição (…) têm incidência imediata.

(…)Em matéria de competência, a entidade estatal que deixou de ser competente viola a Constituição se exerce qualquer poder, que se atribuiu a outra entidade (…).”(grifei)

Isso significa, portanto, considerado, no tema, o “princípio da imediata incidência das regras jurídicas constitucionais” (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo VI/385, item n. 2, 2ª ed./2ª tir., 1974, RT), que, a partir de 31/12/2004 (data da publicação da EC 45/2004), cessou, de pleno direito, a competência originária do Supremo Tribunal Federal, tanto para conceder/denegar “exequatur” às comissões rogatórias passivas, quanto para homologar sentenças estrangeiras.

É certo que a presente ação de homologação de sentença estrangeira foi ajuizada em momento no qual o Supremo Tribunal Federal ainda detinha competência originária para processar e julgar pedidos de homologação de atos sentenciais formados no exterior.

Não obstante presente esse contexto, revela-se inaplicável, ao caso, seja em face da supremacia da norma constitucional, seja, ainda, em virtude do que dispõe o art. 87, “in fine”, do Código de Processo Civil, o postulado da “perpetuatio jurisdictionis”, eis que, alterada a competência em razão da matéria, que tem caráter absoluto (como sucede na espécie), torna-se excepcionalmente relevante a modificação do estado de direito superveniente à propositura da ação.

Tal entendimento é ressaltado pelo magistério da doutrina (ARRUDA ALVIM, “Manual de Direito Processual Civil”, vol. I, p. 407, 8ª ed., 2003, RT; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Instituições de Direito Processual Civil”, vol. I, p. 428, 1ª ed., 2000, Millennium; MOACYR AMARAL SANTOS, “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, vol. I, p. 261, 14ª ed., 1990, Saraiva), valendo transcrever, a tal propósito, a expressiva lição de HUMBERTO THEODORO JUNIOR (“Curso de Direito Processual Civil”, vol. I, p. 151, 39ª ed., 2003, Forense):

“Com relação a essas alterações jurídicas, cumpre distinguir entre a competência absoluta e a relativa. Se a competência já firmada for territorial ou em razão do valor, em nada serão afetadas as causas pendentes. Mas, se for suprimido o órgão judiciário perante o qual corria o feito, ou se a alteração legislativa referir-se a competência absoluta (ratione materiae ou de hierarquia), já então os feitos pendentes serão imediatamente alcançados: os autos, em tal caso, terão de ser encaminhados ao outro órgão que se tornou competente para a causa. O mesmo deve ser observado quando se tratar de competência funcional.” (grifei)

Cumpre acentuar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também perfilha igual orientação:

“Competência.

1) O princípio da ‘perpetuatio jurisdictionis’ (…) sofre as derrogações oriundas da incompetência superveniente, sendo exemplo desta a matéria relativa à competência absoluta, em razão da matéria.

2) Recurso extraordinário conhecido e provido.”

(RTJ 71/726, Rel. Min. RAPHAEL DE BARROS MONTEIRO – grifei)

Esse entendimento também é compartilhado pelo E. Superior Tribunal de Justiça:

“- Tratando-se de competência funcional, absoluta, abre-se exceção ao princípio da ‘perpetuatio jurisdictionis’. Precedente da Quarta Turma.”

(REsp 150.902/PR, Rel. Min. BARROS MONTEIRO – grifei)

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, reconheço a cessação da competência originária do Supremo Tribunal Federal para apreciar a presente ação de homologação de sentença estrangeira e determino, por tal motivo, a imediata remessa destes autos ao E. Superior Tribunal de Justiça, em face do que dispõe o art. 105, I, “i”, da Constituição Federal, na redação dada pela EC 45/2004.

Publique-se.

Brasília, 10 de fevereiro de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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