Litigância de má-fé

Trabalhador é multado por contestar acordo reconhecido pela Justiça

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13 de fevereiro de 2005, 11h16

Agem de má-fé e devem ser multados o trabalhador e seu advogado que recorrem à Justiça do Trabalho contra acordo firmado em comissão de conciliação prévia, já reconhecido como válido perante o próprio Judiciário trabalhista. Este é o entendimento de 9ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP).

A Estrela Azul Serviços de Vigilância, Segurança e Transportes de Valores e um ex-empregado firmaram acordo na Comissão de Conciliação Prévia do Tribunal de Arbitragem do Estado de São Paulo, quitando todas as verbas devidas pela rescisão do contrato de trabalho.

Por entender que a empresa não cumpriu o acordo, o segurança ingressou com processo na 57ª Vara do Trabalho de São Paulo e obteve sentença favorável condenando a Estrela Azul à multa por atraso no pagamento de parcelas.

Ainda assim, o ex-empregado entrou com nova ação, distribuída à 3ª Vara do Trabalho de São Paulo, dessa vez, pedindo a anulação do acordo. O segurança alegou que o termo firmado na comissão era inválido, pediu sua anulação e que Justiça determinasse o pagamento de verbas que não teriam sido quitadas no termo assinado.

A 3ª Vara do Trabalho extinguiu o novo processo sem julgar o mérito. Inconformado, o segurança recorreu ao TRT-SP.

Para a juíza Jane Granzoto Torres de Silva, relatora do recurso, ao apresentar a primeira ação trabalhista na 57ª Vara da Capital, cobrando a multa pelo atraso do acordo formulado, o reclamante reconheceu a validade do pacto.

A relatora ressaltou que “tem razão o recorrente quando aponta diversas irregularidades nos acordos incorretamente efetuados perante alguns tribunais arbitrais ou comissões de conciliação prévia. Entretanto, tal situação não se assemelha à vertente nos presentes autos, onde cabalmente demonstrado o reconhecimento judicial pelo reclamante, do acordo por ele firmado com a ré”.

“Vale ressaltar que, a tendência do Direito do Trabalho mundial é a solução das pendências laborais pelas próprias partes, sem a interferência Estatal. Ademais, princípio básico que informa o Direito Obreiro é o conciliatório, quer judicial, quer extrajudicial, já que a parte, detentora de seu direito, deve ter a liberdade de transacioná-lo, como a mais pura expressão do Estado Democrático de Direito. Pensar o contrário seria desvirtuar toda e qualquer forma de contrato feito entre as partes, em total afronta às posições privadas da sociedade”, destacou a juíza Jane.

Concluindo, a relatora decidiu que a conduta do autor deve ser enquadrada como litigância de má-fé (incisos I e III, do art. 17, do Código de Processo Civil) devendo ele e seu advogado arcar, solidariamente, com multa de 1% do valor da causa.

Os juízes da 9ª Turma acompanharam o voto da juíza relatora por unanimidade.

RO 01862.2002.003.02.00-8

Leia o voto da relatora

PROCESSO Nº 01862200200302008 (20030937870)

RECURSO ORDINÁRIO

RECORRENTE: ITAMAR CARVALHO DE ALMEIDA

RECORRIDOS: ESTRELA AZUL SERVIÇOS DE VIGILÂNCIA SEGURANÇA E TRANSPORTES DE VALORES LTDA e BANCO DO ESTADO DE SÃO PAULO S/A – BANESPA

ORIGEM: 3a VARA DO TRABALHO/SÃO PAULO

Ementa: Acordo formulado perante a Comissão de Conciliação Prévia. Validade. Tendo o autor apresentado reclamatória anterior, na qual postulou a multa pelo inadimplemento do acordo formulado perante a comissão de conciliação prévia, inclusive saindo vencedor na demanda, reconheceu a validade do pacto firmado, mediante admissão da licitude do ato, por meio de decisão judicial. Não se trata de negar validade ao contido no artigo 5o, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal, mas sim, de assegurar o pleno acesso ao Poder Judiciário, até mesmo para reconhecer a validade do pacto formalizado entre as partes perante a comissão de conciliação prévia e referendado pelo próprio Judiciário Trabalhista.

Inconformado com a r. decisão de fls. 205/206, cujo relatório adoto e que declarou extinto o processo sem julgamento do mérito, recorre ordinariamente o reclamante às fls. 213/246, sustentando a invalidade do acordo firmado perante a comissão de conciliação prévia, pretendendo a nulidade do r. julgado de origem, com a conseqüente baixa dos autos à MM. Vara de Origem para julgamento do mérito da questão.

Contra-razões apresentadas às fls. 248/253 e 254/264.

Fl. 265, parecer da D. Procuradoria Regional.

É o relatório.

VOTO

Conheço do recurso ordinário interposto, por presentes os pressupostos de admissibilidade, devendo ser ressaltada a concessão da justiça gratuita ao reclamante (fl. 206).

Restou indiscutível nos autos terem as partes entabulado acordo perante a Comissão de Conciliação Prévia, estabelecida junto ao Tribunal de Arbitragem do Estado de São Paulo, órgão esse instituído em razão do disposto em norma coletiva e em atenção ao contido nos artigo 625-A a 625-H, da CLT, pactuando, assim, todas as verbas decorrentes do contrato de trabalho, outorgando plena quitação relativa a todas as obrigações contratuais que incumbiam à ré. Dessa forma, firmou o reclamante com a reclamada verdadeiro ato jurídico e, como tal, o mesmo somente merece invalidação pelo Poder Judiciário em caso de vício no consentimento, de possuir objeto ilícito e, ainda, forma não prescrita ou defesa em lei, o que não verifico tenha ocorrido in casu.


Os ataques feitos pelo recorrente ao acordo formalizado, os quais já vêm apontados desde a exordial, se mostram totalmente despropositados. Como bem salientou a MM. Vara de Origem, o autor apresentou reclamatória anterior perante a 57a Vara do Trabalho da Capital, na qual postulou diferenças de FGTS e da multa de 40%, assim como a multa pelo inadimplemento do acordo formulado, ou seja, reconheceu a validade do pacto firmado, inclusive saindo vencedor na demanda, mediante admissão da licitude do ato, por meio da r. decisão proferida por aquele Juízo.

Tem razão o recorrente quando aponta diversas irregularidades nos acordos incorretamente efetuados perante alguns tribunais arbitrais ou comissões de conciliação prévia. Entretanto, tal situação não se assemelha à vertente nos presentes autos, onde cabalmente demonstrado o reconhecimento judicial pelo reclamante, do acordo por ele firmado com a ré.

Não bastassem os argumentos acima, oportunamente já expostos pela MM. Vara de Origem, não demonstrado nos autos qualquer vício a macular o âmago do acordo firmado, o mesmo se torna válido. E isso porque, de modo a proporcionar o equilíbrio entre as partes na relação jurídica trabalhista, de natureza conceitual e originariamente privada, o Direito do Trabalho conta com a intervenção Estatal limitando a autonomia da vontade das partes. Nesse passo, as normas jurídicas trabalhistas podem ser encontradas em duas ordens: as normas de ordem privada e as normas de ordem pública, tratadas por EGON FELIX GOTTSCHALK como jus dispositivum e jus cogens.

Normas de ordem privada, são aquelas que estabelecem a liberdade de estipulação das partes, a autonomia dos atores sociais envolvidos na relação trabalhista. Normas de ordem pública, são aquelas que se colocam de maneira absoluta, imperativa e coativa frente à vontade das partes, porquanto visam resguardar o interesse da sociedade, em detrimento do interesse individual de cada um de seus atores.

A ordem jurídica tem por finalidade a disciplina da conduta humana e, a intensidade desse poder é que vai distinguir o jus cogens do jus dispositivum, determinando de modo soberano no primeiro caso e facultando a regulamentação livre das relações jurídicas no segundo, condicionando a validade daquela ao não uso desta.

É certo que o Direito do Trabalho pressupõe a prevalência das normas de ordem pública. Contudo, não é menos certo que as normas de ordem privada não podem ser totalmente afastadas, de modo a impedir por completo a livre manifestação da vontade das partes.

Nesse sentido, bem enfatiza ARNALDO SUSSEKIND : “O Estado moderno, que regula a ordem econômica e social de maneira a que sejam respeitados os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho como condição da dignidade humana, inclui nos próprios textos constitucionais os preceitos mínimos de proteção ao trabalho, sublinhando, com essa atitude, a preponderância dos preceitos de ordem pública atinentes ao Direito do Trabalho. Nas relações de trabalho, ao lado do conteúdo contratual, que é livremente preenchido pelo ajuste expresso ou tácito entre as partes interessadas, prevalece, assim, o conteúdo institucional ditado pelas normas jurídicas de caráter imperativo (leis, convenções coletivas, sentenças normativas etc.) cuja aplicação independente da vontade dos contratantes e ocorre ainda que em sentido diverso se manifestem eles”.

Diante das disparidades entre as partes na relação jurídica trabalhista, é o caráter imperativo do Direito do Trabalho que vai garantir a efetiva concretização das normas de ordem privada, a efetiva manifestação de vontade das partes e, como colocado com extrema acuidade por EGON FELIX GOTTSCHALK “não essa vontade “liberdade formal”, como a proclamou um individualismo mal compreendido e sim a “liberdade real” que consiste na igualdade econômica entre os fatores Capital e Trabalho”.

A relevância surge com referência ao não cumprimento das normas cogentes, não apenas no que diz respeito às sanções, mas também quanto à validade dos atos praticados de forma diversa daquela estabelecida no ordenamento jurídico, frente à irrenunciabilidade – aqui inseridas a irrrenunciabilidade propriamente dita, a intransacionabilidade e a inderrogabilidade – do jus cogens.

O Direito do Trabalho procura limitar duplamente a vontade privada, quer para tutelar a integridade física ou moral da pessoa humana no exercício de sua força de trabalho, bem como contra a exploração de sua inferioridade econômica, limites esses baseados na responsabilidade social inerente à conduta humana, não como manifestação individual isolada de vontade, mas como expressão de coletividade, relembrando as lições de EGON FELIX GOTTSCHALK.

No mesmo contexto, prossegue o autor: “Ambas as limitações encerram direito cogente. Entretanto, de acordo com o seu fim, os efeitos jurídicos da sua inobservância são bem diferentes”.


A primeira classe das normas jurídicas trabalhistas de ordem pública acima mencionada, qual seja, aquelas que visam a integridade física do trabalhador e, portanto, são inerentes à tutela conferida pelo Estado à pessoa humana do empregado, por certo são inafastáveis por quaisquer convenções das partes. Dentre essas, estão inseridas as regras concernentes à medicina e segurança do trabalho, aos patamares básicos fixados para jornada de trabalho, inclusive os repousos e à percepção de remuneração mínima. Aplica-se aqui, de forma incondicional a regra da irrenunciabilidade.

Entretanto, com referência à segunda classe, aquelas normas que têm a finalidade precípua de limitar o poder econômico, não vislumbro óbice para que as partes fixem condições contratuais de forma diversa do contido na norma jurídica, ainda que cogente.

Ao tratar do tema, afirma EGON FELIX GOTTSCHALK: “As normas que colimam, primordialmente, eliminar a prepotência econômica ou hierárquica da vontade do empregador – desigualdade de fato, presumida durante a constância da relação de subordinação, oriunda do contrato individual de trabalho – não obstam uma manifestação contrária da vontade das partes contratantes, se esta vontade se forma e declara em circunstância e por atos, inequívocos da liberdade e equivalência de ambas as vontades concorrentes”.

Adverte ARNALDO SUSSEKIND, que as normas de ordem pública criam direitos inderrogáveis à vontade das partes sobre as quais incidem e que, o corolário lógico da inderrogabilidade é a irrenunciabilidade. Mas pondera referido autor, que “os direitos resultantes de cláusulas contratuais a que não correspondem preceitos do “jus cogens” são, em princípio, renunciáveis e transacionáveis, desde que não ocorra vício de consentimento e não sejam desatendidas as regras a respeito estipuladas pela lei”.

Claro, pois, que o legislador pátrio não afastou por completo a autonomia das partes, mas apenas a condicionou à natureza do direito sobre o qual versa o ato jurídico trabalhista praticado, à capacidade das partes e a livre manifestação de vontade, ou seja, a inexistência de vício de consentimento, o que nos remete à legislação civil, impondo a verificação da ausência de erro, dolo, coação, simulação ou fraude para a validade da avença.

É certo, ainda, o intuito do legislador de proteger o trabalhador não apenas no contexto nato do Direito do Trabalho, mas também contra

os atos de má fé, ainda que respaldados pelo ordenamento jurídico.

Nesse passo, não se pode afirmar que todos os direitos sociais inseridos no ordenamento jurídico pátrio sejam indisponíveis e tal conclusão não se mostra contemporânea. CLOVIS BEVILAQUA, um dos juristas responsáveis pela elaboração do Código Civil Brasileiro, em 1916, já externava: “Pode-se transigir sobre quaisquer direitos duvidosos, que sejam de interesse privado, que não afetem a ordem publica, e recaiam sobre objetos, que estão no comércio.

Assim, as questões relativas ao estado das pessoas, legitimidade de matrimonio, pátrio poder, poder marital, filiação, não se prestam, deventemente, a que sobre elas sejam entabuladas negociações. Não são direitos patrimoniais, posto que dêem nascimento a proventos. Esses proventos, porém, podem ser transacionados, quando o estado da pessoa for duvidoso ou contestado, não versando jamais sobre ele a transação”.

Vale ressaltar que, a tendência do Direito do Trabalho mundial é a solução das pendências laborais pelas próprias partes, sem a interferência Estatal. Ademais, princípio básico que informa o Direito Obreiro é o conciliatório, quer judicial, quer extrajudicial, já que a parte, detentora de seu direito, deve ter a liberdade de transacioná-lo, como a mais pura expressão do Estado Democrático de Direito. Pensar o contrário, seria desvirtuar toda e qualquer forma de contrato feito entre as partes, em total afronta às posições privadas da sociedade.

É certo que, a globalização da economia e a modernidade, apontam para um novo modelo de relação capital-trabalho e, com isso, não podemos relegar ao oblívio a necessidade de encontrarmos novas maneiras de tratarmos os contratos laborais, quer durante suas vigências, quer ao término dos mesmos e atingirmos o fim maior, qual seja, a paz social.

A solução dos conflitos resultantes da relação capital-trabalho sempre causou grande preocupação aos operadores do direito, em razão das particularidades que a envolvem, por força do caráter social a ela inerente. A jurisdição, forma classicamente utilizada para a solução dos conflitos laborais, exercida através da Justiça do Trabalho, evidentemente hoje necessita de reformas. Entretanto, não é menos certo que o ordenamento jurídico pátrio já contem todas as regras necessárias para a rápida e eficaz solução dos conflitos trabalhistas.


Em verdade, os Órgãos Jurisdicionais cada vez mais vêm utilizando regras processuais formais, em detrimento do princípio da celeridade que rege o Direito Processual do Trabalho. A simples utilização por parte dos operadores do Direito Obreiro, das normas já inseridas na Lei Maior, no Diploma Consolidado e na Legislação Civil, com certeza solucionaria com mais eficácia os conflitos trabalhistas.

A utilização das formas autocompositivas de solução de conflitos, quer no âmbito judicial, quer na esfera extrajudicial e o respeito aos efetivos interesses das partes envolvidas, nos afigura solução rápida e eficaz para a prevenção de litígios, bem como para a solução dos mesmos, quando instaurados. O conflito, tanto na seara pessoal, quanto na patrimonial, causa desconforto para as partes envolvidas, pelo que, a tendência natural é a tentativa de resolução do impasse pelas próprias partes, o que pode ser perpetrado através da transação judicial ou extrajudicial.

Como instituto oriundo do Direito Civil, a transação pode se externar através das formas judicial e extrajudicial. A transação judicial está pacificamente inserida no Direito do Trabalho, sendo tratada dentro do princípio conciliatório que informa referido ramo do Direito, inclusive com a obrigatoriedade da formulação de propostas de conciliação pelos Órgãos Judiciais Trabalhistas (artigo 114, da Constituição Federal e artigo 764, da CLT).

Entretanto, muito se questiona acerca da compatibilidade da transação extrajudicial com os princípios imperativos e protecionistas que informam o Direito do Trabalho, pelo que, referido instituto jurídico vive à margem do tratamento doutrinário e jurisprudencial. Por outro lado, nova realidade social impõe o redimensionamento pelos juslaboralistas, de modo a estabelecermos uma convivência harmônica entre a liberdade de pactuação e o estanque posicionamento da irrenunciabilidade dos direitos sociais. Nesse contexto, já contamos hoje com legislação específica estabelecendo as comissões prévias de conciliação, que nada mais é do que uma forma extrajudicial de solução de conflitos trabalhistas. O mesmo podemos dizer quanto a Lei da Arbitragem (9307/96).

Por fim, ao contrário do sustentado pelo recorrente, não se trata de negar validade ao contido no artigo 5o, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal, mas sim, de assegurar o pleno acesso ao Poder Judiciário, até mesmo para reconhecer a validade do pacto formalizado entre as partes perante a comissão de conciliação prévia e referendado pelo próprio Judiciário Trabalhista em demanda anterior.

Evidente, pois, que a conduta do autor está tipificada nos incisos I e III, do art. 17, do CPC, impondo-se a aplicação da multa capitulada no art.18, “caput”, também da Lei Adjetiva Civil, ora fixada em 1% sobre o valor da causa.

Fica decretada a responsabilidade solidária dos patronos do demandante, com fulcro na principiologia que informa o Capítulo II, do CPC (Dos Deveres das partes e dos seus procuradores), no qual estão inseridos os dispositivos ora em comento.

Isto posto, conheço do recurso ordinário interposto e, no mérito NEGO PROVIMENTO ao apelo, mantendo a r. decisão de primeiro grau em todos os seus termos. Ficam o reclamante e seus patronos, de forma solidária, condenados ao pagamento da multa de 1% sobre o valor da causa, nos termos dos artigos 17 e 18, do CPC.

JANE GRANZOTO TORRES DA SILVA

Juíza Relatora

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