Demagogia constitucional?

A celeridade virou direito, mas nada foi feito para garanti-lo

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

9 de fevereiro de 2005, 16h01

A Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 (Reforma do Poder Judiciário) acrescentou o seguinte inciso ao artigo 5º da Constituição de 1988:

“LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

O novo dispositivo põe em nível constitucional o direito individual fundamental à celeridade na tramitação dos processos judiciais e administrativos. No entanto, a inovação não garante nenhuma modificação substancial na tramitação dos processos.

Com efeito, proclama um direito, mas — em si — não traz nenhum instrumento para efetivá-lo.

Pouco adianta invocar, aqui, o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição de 1988 (“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”). A razão é singela: a aplicabilidade imediata ou não de uma norma constitucional definidora de um direito ou de uma garantia fundamental depende do seu próprio contorno constitucional (completo ou não). Na matéria, não há mágica possível. O direito ou é ou não é auto-aplicável (confira-se, a propósito, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direitos humanos fundamentais, 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 102).

O Ministro Moreira Alves já advertia neste sentido:

“Essa norma [o parágrafo 1º do artigo 5º], no entanto, não tem, evidentemente, caráter absoluto, pois vários incisos desse próprio artigo 5º — assim, os de números VII, XXVI, XXVII, XXVIII, XIX, XXXII, XXXVIII, XLI, XLII, XLVI, LXXVI e LXXVII — remetem à regulamentação da lei, total ou parcialmente, as normas nele enunciadas, e que são definidoras de direitos e de garantias fundamentais. E essa remessa, por si só, indica que a norma a ser regulamentada não é susceptível de ser aplicada independentemente de regulamentação, na linha da doutrina americana clássica da auto-aplicabilidade das normas constitucionais (…)” (Questão de Ordem no Mandado de Injunção no 107-3/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, julgada em 23 de novembro de 1989)

Prova contundente da não-auto-aplicablidade do novo inciso do artigo 5º é o artigo 7º da própria Emenda nº 45, verbis:

“O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.” (grifamos) (detalhe curioso: o prazo assinalado é para elaborar projetos no seio de “comissão especial mista”, e não para aprová-los…)

O novo dispositivo integra dois debates: (1) a racionalidade da legislação processual no que toca à simplicidade e celeridade na tramitação dos feitos, e (2) a eventual morosidade dos responsáveis pela tramitação concreta, efetiva, dos processos judiciais e administrativos.

Há muito existe consciência sobre a necessidade de uma revisão da legislação processual brasileira. O problema é agregar contexto e vontade políticos para fazê-la de modo amplo. Não é o novo inciso que vai proporcioná-la…

Assim, o novo “direito” parece próximo de prática recorrente em muitas ordens constitucionais, a demagogia constitucional: normas postas em nível constitucional — para mero discurso — e que não têm aplicação prática por impossibilidade ou dificuldade de ordem material. Exemplo é o direito social à moradia (artigo 6º da Constituição de 1988, com a redação da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000). O fenômeno desacredita a Constituição e as instituições, o que é daninho para a democracia.

Por outro lado, o novo dispositivo tem utilidade potencial. Traz para a Constituição parâmetro de controle que poderá orientar a aplicação de outras normas constitucionais.

É o caso, por exemplo, da promoção por merecimento de magistrado, que deverá considerar “critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição”. Ademais, “não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal” (veja-se, a propósito, o prazo de dez dias para sentenciar, constante do artigo 281 do Código de Processo Civil).

Outrossim, o novo dispositivo poderá ensejar o recebimento e o conhecimento de reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário em função de morosidade (inciso III do parágrafo 4º do artigo 103-B da Constituição de 1988, acrescentado pela Emenda nº 45).

Enfim, o novo dispositivo poderá dar base para o reconhecimento de responsabilidade civil do Estado — e respectiva reparação — em função de morosidade danosa na tramitação de processos judiciais e administrativos. Já o defendera o Ministro Aliomar Baleeiro, tendo votado vencido no julgamento do Recurso Extraordinário 32.518/RS, julgado em 21 de junho de 1966.

Tratava-se de responsabilidade civil do Estado decorrente da morosidade no processamento de uma ação penal privada que, por isso, prescrevera. O Ministro Aliomar Baleeiro, Relator do Recurso, reconhecia a “responsabilidade do Estado em não prover adequadamente o bom funcionamento da Justiça, ocasionando, por sua omissão dos recursos materiais e pessoais adequados, os estorvos ao pontual cumprimento dos deveres dos seus Juízes.”

Em casos tais, afirmou o Relator, a responsabilidade transborda do Direito Civil para o Administrativo, independendo da culpa dos seus agentes. Aplicava, então, o artigo 194 da Constituição de 1946 (que corresponde ao atual parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição de 1988).

O Ministro Vilas Boas classificou como “avançada” a tese do Relator no sentido de que o artigo 194 também envolveria a responsabilidade pelas faltas da Justiça, ao que respondeu o Relator:

“(…) Considero o Judiciário como o serviço de vacinação, ou o serviço público de guarda noturna. O cidadão paga para tê-lo.”

O Ministro Vilas Boas defendeu que, para certos serviços, como o de polícia, há que ser exigida a ocorrência de uma “culpa excessivamente grave”.

O Ministro Pedro Chavez acompanhou o Ministro Vilas Boas invocando o chamado “risco processual”, isto é, o risco que pesa sobre os que “ousam” ir a juízo disputar um direito.

Se acaso o novo inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição de 1988 — no mundo real — inverter o referido “risco processual” em favor do jurisdicionado, já terá sido um ganho imensurável.

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