Operação Anaconda

Leia o voto que livrou Ali Mazloum do crime de formação de quadrilha

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7 de fevereiro de 2005, 16h41

O voto em divergência do ministro Gilmar Mendes abriu caminho para livrar o juiz Ali Mazloum da acusação do crime de formação de quadrilha, no processo contra os envolvidos na Operação Anaconda. De acordo com o ministro, a denúncia do Ministério Público Federal foi muito vaga na descrição do crime cometido pelo juiz Mazloum.

“Não fosse a discussão que tramita em outro processo sobre eventual abuso de poder ou ameaça, não haveria aqui nenhuma linha em torno da participação do Sr. Ali Mazloum neste processo”, registrou.

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu trancar a ação penal por formação de quadrilha contra o juiz federal Ali Mazloum, no último dia 14 de dezembro. A decisão, por 4 votos a 1, foi dada no julgamento de Habeas Corpus impetrado pela defesa do juiz, e o livrou de responder por esse crime no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Votaram a favor do juiz, além de Gilmar Mendes, os ministros Carlos Velloso, Celso de Mello e Ellen Gracie. O único voto contrário foi o do ministro Joaquim Barbosa, relator da matéria. Ali Mazloum foi denunciado na esteira das investigações da Operação Anaconda, que, segundo o MPF, desvendou um esquema de venda de sentenças comandado pelo juiz federal João Carlos da Rocha Mattos.

Dos 11 denunciados pela Operação Anaconda, 10 foram condenados por formação de quadrilha em julgamento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em 17 de dezembro. O juiz Ali Mazloum não foi julgado por esse crime em razão da decisão do STF.

Leia o voto do ministro Gilmar Mendes

07/12/2004

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 84.409-0 SÃO PAULO

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – :

Como já foi referido pelo eminente Ministro-Relator, o art. 41 do Código de Processo Penal estabelece:

“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”

Essa fórmula encontrou num texto clássico de João Mendes de Almeida Júnior uma bela e pedagógica sistematização. Diz João Mendes de Almeida Júnior sobre a denúncia:

“É uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com tôdas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincomac, 1. III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunhas e informantes.” (ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro, v. II. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 183)

Essa questão – a técnica da denúncia-, como sabemos, tem merecido do Supremo Tribunal Federal reflexão no plano da dogmática constitucional, associada especialmente ao direito de defesa.

Destaco as reflexões desenvolvidas pelo Ministro Celso de Mello, no HC 73.271, cuja ementa diz o seguinte:

“(…)

PERSECUÇÃO PENAL – MINISTÉRIO PÚBLICO – APTIDÃO DA DENÚNCIA. O Ministério Público, para validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma necessária base empírica, a fim de que o exercício desse grave dever-poder não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal. O ajuizamento da ação penal condenatória supõe a existência de justa causa, que se tem por inocorrente quando o comportamento atribuído ao réu ‘nem mesmo em tese constitui crime, ou quando, configurando uma infração penal, resulta de pura criação mental da acusação’ (RF 150/393, Rel. Min. OROZIMBO NONATO). A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o pleno exercício do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta.”

Em outro habeas corpus, também da relatoria do Ministro Celso de Mello, extrai-se o seguinte excerto:

“O processo penal de tipo acusatório repele, por ofensivas à garantia da plenitude de defesa, quaisquer imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias, omissas ou ambíguas. Existe, na perspectiva dos princípios constitucionais que regem o processo penal, um nexo de indiscutível vinculação entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta e o direito individual de que dispõe o acusado a ampla defesa. A imputação penal omissa ou deficiente, além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado, qualifica-se como causa de nulidade processual absoluta. A denúncia – enquanto instrumento formalmente consubstanciador da acusação penal – constitui peça processual de indiscutível relevo jurídico. Ela, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal, define a própria res in judicio deducta. A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta.” (HC 70.763, DJ 23.09.94)

O tema tem, portanto, sérias implicações no campo dos direitos fundamentais.

Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito.

Mas há outras implicações!

Quando se fazem imputações vagas, dando ensejo à persecução criminal injusta, está a se violar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana, que, entre nós, tem base positiva no artigo 1o, III, da Constituição.

Como se sabe, na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18).

Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe a o indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

Leio do destacado ponto da denúncia, também referido pelo Ministro Joaquim Barbosa, que o Sr. Ali Mazloum teria uma “participação peculiar na quadrilha”. E a justificativa seria porque teria jurisdição em processo de interesse dos mentores daquela e estaria a utilizar de serviços prestados pela quadrilha para obter vantagens ou favores.

E não se diz mais nada na denúncia sobre essa peculiar participação!

Parece que estamos no campo da vagueza absoluta, da indeterminação ilimitada, da acusação pela acusação.

Não fosse a discussão que tramita em outro processo sobre eventual abuso de poder ou ameaça, não haveria aqui nenhuma linha em torno da participação do Sr. Ali Mazloum neste processo.

Nesses termos, pedindo vênia ao Ministro-Relator, defiro a ordem para trancar a ação.

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