Imposto e beneficência

Entidade beneficente não está sujeita a Pis/Cofins na importação

Autor

2 de fevereiro de 2005, 14h24

Por força da Emenda Constitucional n.º 42, de 19 de dezembro de 2003 (DOU de 31/12/2003), o artigo 195 da Carta Magna ganhou mais um inciso com a seguinte redação:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

(…)

IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.” — grifos acrescentados.

Com isso, foi aberta a porta para a cobrança de contribuições sociais sobre as importações de bens ou serviços. Não tardou para que fosse editada a Medida Provisória n.º 164, de 29/1/2004 (DOU de 29/1/2004 — Ed. Extra), que dispôs sobre a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social incidentes sobre a importação de bens e serviços e deu outras providências, posteriormente convertida na Lei n.º 10.865, de 30/4/2004 (DOU de 30/4/2004 — Ed. Extra), que também disciplinou outros assuntos.

A Lei n.º 10.865/2004, que produziu efeitos a partir de 1.º/5/2004, tem a seguinte estrutura: artigos 1.º e 2.º (da incidência); 3.º e 4.º (do fato gerador); 5.º e 6.º (do sujeito passivo); 7.º (da base de cálculo); 8.º (das alíquotas); 9.º a 12 (da isenção); 13 (do prazo de recolhimento); 14 (dos registros aduaneiros especiais); 15 a 18 (do crédito); 19 (do lançamento de ofício); 20 (da administração do tributo); e, 21 a 53 (disposições gerais)(1).

Imunidade das entidades beneficentes de assistência social

A exemplo do que ocorre com os impostos (Constituição Federal, artigo 150, inciso VI, alínea “c”)(2), as entidades beneficentes de assistência social são igualmente imunes às contribuições sociais, em conformidade com o artigo 195, § 7.º, da Lei Maior, verbis:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

(…)

§ 7.º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.” — grifos acrescentados.

Diante do benefício constitucional ut supra, a Lei n.º 10.865/2004 alistou as entidades beneficentes de assistência social entre aquelas que não estariam sujeitas à incidência do PIS/PASEP e da COFINS na importação de bens e serviços. Em termos práticos, acertou o legislador(3). Todavia, o artigo 2.º, inciso VII, ao disciplinar essa hipótese de não-incidência, acrescentou algumas restrições ao gozo desse direito, ipsis litteris:

“Art. 2.º As contribuições instituídas no art. 1.º desta Lei não incidem sobre:

(…)

VII – bens ou serviços importados pelas entidades beneficentes de assistência social, nos termos do § 7.º do art. 195 da Constituição Federal, observado o disposto no art. 10 desta Lei.” — grifos acrescentados.

O artigo 10 da Lei n.º 10.865/2004, por sua vez, ostenta a redação abaixo:

“Art. 10. Quando a isenção for vinculada à qualidade do importador, a transferência de propriedade ou a cessão de uso dos bens, a qualquer título, obriga ao prévio pagamento das contribuições de que trata esta Lei.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica aos bens transferidos ou cedidos:

I – a pessoa ou a entidade que goze de igual tratamento tributário, mediante prévia decisão da autoridade administrativa da Secretaria da Receita Federal;

II – após o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da data do registro da declaração de importação; e

III – a entidades beneficentes, reconhecidas como de utilidade pública, para serem vendidos em feiras, bazares e eventos semelhantes, desde que recebidos em doação de representações diplomáticas estrangeiras sediadas no País.”

Em suma, de acordo com a Lei n.º 10.865/2004 as entidades beneficentes de assistência social encontram-se ao amparo da não-incidência do PIS/PASEP e da COFINS na importação de bens (artigo 2.º, VII), desde que observem as limitações impostas pela dita norma quanto à transferência de propriedade ou à cessão de uso dos bens (artigo 10).

Inicialmente, importa relembrar que o artigo 195, § 7.º, da Constituição Federal, apesar de falar em “isenção”, na verdade, por óbvio, versa sobre “imunidade”(4).

Não há dissonância significativa na doutrina quanto ao correto entendimento e alcance da norma constitucional inserta no artigo 195, § 7.º. A título de amostragem, a fim de evitar que as citações se tornem cansativas, colhe-se o magistério de dois doutos:


“Aqui [artigo 195, § 7.º] também a palavra ‘isentas’ está empregada, no texto constitucional, no sentido de ‘imunes’. É que, no caso, está-se diante de uma hipótese constitucional de não-incidência tributária. Ora, isto tem um nome técnico: ‘imunidade’. Assim, onde o leigo lê ‘isentas’, deve o jurista interpretar ‘imunes’. Melhor explicitando, a Constituição, nesta passagem, usa a expressão ‘são isentas’, quando, em boa técnica, deveria usar a expressão ‘são imunes’. Temos, portanto, que são imunes à tributação por meio de contribuição para a Seguridade Social as ‘entidades beneficentes de assistência social, que atendam às exigências estabelecidas em lei’.” (Roque Antonio Carrazza, Curso de Direito Constitucional Tributário, 20.ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2004, p. 766).

“O § 7.º do art. 195 não cuida de isenção, mas de imunidade. O art. 175 do Código Tributário Nacional declara que a isenção corresponde à exclusão do crédito tributário com o nascimento da obrigação correspondente. Na isenção nasce, pois, a obrigação, sendo anulado o crédito, ou seja, o direito da Fazenda receber o ‘quantum’ da obrigação nascida. Na imunidade não há nascimento da obrigação tributária, nem, por conseguinte, do crédito, que tem a mesma natureza daquela. (…) Como se percebe, o constituinte utilizou-se mal do vocábulo ‘isenção’, pois pretendeu, de rigor, outorgar uma autêntica ‘imunidade’.” (Ives Gandra da Silva Martins, Comentários à Constituição do Brasil [promulgada em 5 de outubro de 1988], 8.º volume, Arts. 193 a 232, Saraiva, São Paulo, 1998, pp. 98/99 e 101).

Na jurisprudência a questão também se mostra pacificada. Eis a posição do Supremo Tribunal Federal: “A cláusula inscrita no art. 195, § 7.º, da Carta Política — não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social — contemplou as entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei.” (1.ª Turma, ROMS n.º 22.192-9, Rel. Min. Celso de Mello, j. 28.11.95, DJU de 19.12.96, p. 51.802).

Portanto, muito mais do que apenas encontrar-se no campo da não-incidência do PIS/PASEP-Importação e da COFINS-Importação, as entidades beneficentes de assistência social, estão, em verdade, imunes a tais contribuições, e, de resto, a qualquer outra contribuição social, uma vez que o artigo 195, § 7.º, da Carta Política é um típico caso de imunidade, e não de isenção, como explicaram muito bem os juristas trazidos à colação.

Inconstitucionalidade das restrições à imunidade impostas por lei ordinária

Estabelecidas estas premissas, sobeja esclarecer se as “exigências estabelecidas em lei” a que alude a parte final do artigo 195, § 7.º do texto constitucional, podem ser fixadas por lei ordinária, a exemplo do que se verifica na Lei n.º 10.865/2004, quando, lembre-se, condiciona a imunidade tributária das entidades beneficentes de assistência social (art. 2.º, VII) às limitações de transferência de propriedade ou cessão de uso dos bens importados, sob pena de recolher o PIS/PASEP-Importação e a COFINS-Importação (art. 10).

A resposta, apesar de simples, não aparenta ser de fácil compreensão para muitos, especialmente para o legislador ordinário. Ora, se o benefício estabelecido no artigo 195, § 7.º da Constituição Federal é imunidade, como se demonstrou de forma cristalina, então, por conseqüência, a lei a que a norma constitucional faz menção só pode ser “lei complementar”, jamais lei ordinária, porque esta não pode regular “imunidades tributárias”.

É o que estabelece o artigo 146, inciso II, da própria Constituição Federal, verbis:

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

(…)

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.”

Ratificando este entendimento, traz-se novamente à baila o parecer dos respeitáveis:

“A referida ‘lei’ só pode ser ‘complementar’ (nunca ‘ordinária’), justamente porque vai regular uma ‘imunidade tributária’, que é uma ‘limitação constitucional ao poder de tributar’. Ora, como já vimos, as limitações constitucionais ao poder de tributar, nos termos do artigo 146, II, da Constituição Federal, só podem ser reguladas por meio de lei complementar. (…) Acrescentamos que tal lei complementar deve simplesmente tratar de ‘aspectos formais’, sem, portanto, restringir ou anular o benefício constitucional em discussão.” ) (Roque Antonio Carrazza, obra citada p. 767.

“O problema que se colocou no passado é se essa lei deveria ser ordinária ou complementar, tendo o extinto Tribunal Federal de Recursos, no julgamento que considerou imunes as entidades fechadas de previdência social, por serem entidades de assistência social, entendido que a lei a que se referia o constituinte pretérito era a lei complementar. Tal decisão vale para o sistema atual, onde existe a mesma remissão às ‘exigências estabelecidas em lei’. (…) A interpretação coerente daquela Corte tem sua razão de ser. Se o constituinte admitisse que o legislador ordinário estabelecesse as condições para o gozo da imunidade, sem dizer quais seriam, poderia o legislador ordinário, sob o controle do Poder Público, criar tal nível de exigências que a imunidade seria de gozo impossível.” (Ives Gandra da Silva Martins, obra citada, pp. 101 e 104).


Assim, não há dúvidas de que a regulação do artigo 195, § 7.º, da Constituição Federal deve ser feita por lei complementar, não comportando lei ordinária. Ademais, como alertam os autorizados doutrinadores, mesmo a lei complementar(5), a pretexto de regular, está impedida de restringir a imunidade das entidades beneficentes de assistência social.

Exatamente em razão de tais fundamentos é que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2028-5, suspendeu o artigo 1.º (na parte que alterou a redação do artigo 55, inciso III, da Lei n.º 8.212/91, e acrescentou-lhe os §§ 3.º, 4.º e 5.º), além dos artigos 4.º, 5.º e 7.º, todos da Lei n.º 9.732/98.

Ao apreciar a liminar da ADIN 2028-5(6), o Ministro Marco Aurélio, então vice-presidente da Corte Suprema, no exercício da presidência, reconheceu a relevância dos argumentos apresentados, no sentido de que as imunidades tributárias, inclusive aquela deferida pela Constituição Federal no artigo 195, § 7.º, devem ser reguladas exclusivamente por lei complementar, mesmo assim, sem impor nenhuma mitigação ao gozo do benefício.

O resultado a que se chega é que, se uma lei ordinária, apesar de desautorizada, tentar regular uma hipótese de imunidade tributária ela será inconstitucional. Concordam com esta lógica os escritos de Roque Antonio Carrazza(7), quando propugnam:

“Parece-nos oportuno asseverar que a lei ordinária da pessoa política tributante não pode — sob pena de manifesta inconstitucionalidade — criar outros requisitos, que não os apontados na lei complementar, para o pleno desfrute desta imunidade. Muito menos o regulamento, a portaria, o parecer normativo etc. Não é por outro motivo que padece de manifesta inconstitucionalidade o art. 12 da Lei n.º 9.532, de 10 de dezembro de 1997, quando aponta novos requisitos para que as instituições de educação ou de assistência social gozem da imunidade em tela. É que, sendo esta uma lei ordinária federal, não podia ter cuidado de matéria ‘sob reserva de lei complementar’. Portanto, continuam valendo, para fins de imunidade, apenas os requisitos do art. 14 do Código Tributário Nacional.”

E Vittorio Cassone arremata:

“A CF veda expressamente determinada tributação? Logo, é imunidade! A lei que reproduz texto sobre imunidade é totalmente inócua. Se restringi-la, será inconstitucional. Se alargá-la, a ampliação corresponderá a uma verdadeira isenção.” (Direito Tributário, 10.ª edição, Atlas, São Paulo, 1997, p. 93).

Conclusão

Portanto, conclui-se que as restrições impostas pela Lei n.º 10.865/2004 à imunidade das entidades beneficentes de assistência social são inconstitucionais.

Anote-se que as condições estabelecidas no artigo 10 da Lei n.º 10.865/2004 podem ser aplicadas às hipóteses de isenção, e, aliás, estruturalmente, o referido artigo encontra-se dentro do Capítulo VI, que abrange os artigos 9.º a 12 e tratam da isenção, mas não à imunidade, que como visto, repita-se para fins didáticos, e quiçá para ajudar na compreensão do legislador ordinário, só aceita regulação (não restrição) de lei complementar.

Desta forma, o artigo 2.º, inciso VII, da Lei n.º 10.865/2004, deve ser lido como segue, ou seja, sem qualquer ressalva ou vinculação às restrições impostas pelo artigo 10:

“Art. 2.º As contribuições instituídas no art. 1.º desta Lei não incidem sobre:

(…)

VII – bens ou serviços importados pelas entidades beneficentes de assistência social, nos termos do § 7.º do art. 195 da Constituição Federal.”

Dito de outro modo, isso significa que os bens importados por entidades beneficentes de assistência social sem o pagamento do Pis/Pasep-Importação e da Cofins-Importação, em razão de seu direito à imunidade tributária, mesmo que sejam transferidos ou cedidos para terceiros por razões justificadas, e ainda que esta transferência ou cessão não se enquadre nas hipóteses alistadas no artigo 10, parágrafo único, incisos I, II e III, da Lei n.º 10.865/2004, não estão sujeitos ao prévio recolhimento das mencionadas contribuições em razão da inconstitucionalidade desta exigência inserida em lei ordinária.

Notas de rodapé:

1- Convém mencionar que a Lei n.º 10.865, de 30/4/2004 já foi alterada pela Lei n.º 10.925, de 23/7/2004 (DOU de 26/7/2004), e mais recentemente pela Lei n.º 11.033, de 21/12/2004 (DOU de 22/12/2004).

2- Constituição Federal, artigo 150, VI, “c”: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: instituir impostos sobre: patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.”

3- Não se desconhece a diferença técnica-jurídica entre os conceitos de “não-incidência” e “imunidade”. Neste sentido, vide Yoshiaki Ichihara, in Imunidades Tributárias, Atlas, São Paulo, 2000, pp. 180/182.

4- “Isenção e imunidade são institutos que não se podem confundir. Enquanto que esta se consubstancia em limitação constitucional à própria tributação, aquela consiste em subtrair, por meio de lei, uma situação ou uma pessoa à hipótese de incidência.” (TRF-3.ª Região, 4.ª Turma, REOMS n.º 89.03.33070-6, v.u., Rel. Desa. Fed. Lúcia Figueiredo, j. 10/10/1990).

5- A doutrina é unânime em afirmar que a lei complementar competente para regular as imunidades tributárias é o Código Tributário Nacional, mais especificamente o disposto no artigo 14, incisos I a III, que assevera: “O disposto na alínea ‘c’ do inciso IV do art. 9.º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas: não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais; manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.” Neste sentido: Roque Antonio Carrazza, obra citada, p. 767; Ives Gandra da Silva Martins, obra citada, pp. 102/103. A jurisprudência da Corte Suprema é na mesmíssima direção: Mandado de Injunção n.º 420-0/RJ, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 31/8/94, DJU de 23/9/94, p. 25325. A liminar na ADIN 2028-5 foi deferida em 14/7/99 e publicada no DJU de 2/8/99. Posteriormente, esta liminar foi referendada pelo Plenário da Corte Suprema em 11/11/99, cujo acórdão foi publicado no DJU de 16/6/2000. O mérito da ação ainda não foi julgado. Atualmente o relator é o Ministro Joaquim Barbosa.

6- A liminar na ADIN 2028-5 foi deferida em 14/7/99 e publicada no DJU de 2/8/99. Posteriormente, esta liminar foi referendada pelo Plenário da Corte Suprema em 11/11/99, cujo acórdão foi publicado no DJU de 16/6/2000. O mérito da ação ainda não foi julgado. Atualmente o relator é o Ministro Joaquim Barbosa.

7- Obra citada, pp. 694/695.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!