Retrospectiva 2005

Repressão penal ameaça garantias constitucionais

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado defensor de Aldemir Bendine doutor em direito pela USP professor de processo penal da Faap e autor do livro "Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal" (Revista dos Tribunais)

28 de dezembro de 2005, 10h53

Prisões e mais prisões temporárias ou preventivas. Escracho seguido de delações nem sempre premiadas, tudo a rodo. “Denúncias anônimas” gerando inquéritos e denúncias genéricas gerando processos e condenações. Escritórios de Advocacia invadidos, sigilos quebrados; advogados e clientes presos. Divulgação em horário nobre de conversas obtidas mediante grampo telefônico e muito mais: inquéritos sigilosos que se transformam em secretos, juízes cúmplices, quando não, reféns da mídia e por aí vai. Como diz Arnaldo Malheiros Filho, “uma beleza”; show de bola, dizemos nós.

A repressão penal a qualquer custo, a despeito de garantias constitucionais e legais foi a grande marca de 2005. Se no campo da economia temos a política neoliberal a pleno vapor, no plano do sistema penal assistimos ao ressurgimento do autoritarismo que, entre nós, nada tem de novo, a não ser o fato de que se verifica em pleno período democrático. Claro que houve episódios merecedores de aplauso em termos de afirmação de direitos e garantias. Exemplo destes são as seguidas decisões do Supremo Tribunal Federal garantindo o direito de os advogados terem acesso aos autos de inquérito gravado pelo sigilo (

Por todos a monumental decisão monocrática do ministro Celso de Mello no HC 86.059-1-PR quando, em Habeas Corpus impetrado contra o indeferimento de liminar em remédio idêntico no STJ, se salientou que a questão em exame “põe em evidência uma situação que não pode ocorrer, nem continuar ocorrendo, pois a tramitação de procedimento investigatório em regime de sigilo, ainda que se cuide de hipótese de repressão à criminalidade organizada (Lei 9.034/95, artigo 3º, parágrafo 3º), não constitui situação legitimamente oponível ao direito de acesso aos autos de inquérito policial, pelo indiciado, por meio do Advogado que haja constituído, sob pena de inqualificável transgressão aos direitos do próprio indiciado e às prerrogativas profissionais de seu defensor técnico, especialmente se se considerar o que dispõe o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) em seu artigo 7º, incisos XIII e XIV”.

Ainda no Supremo Tribunal tivemos outra momentosa decisão do ministro Celso de Mello, concedendo liminar em mandado de segurança impetrado pela OAB-DF assegurando as prerrogativas dos advogados quando atuam nas famigeradas CPIs. Naquela oportunidade destacou-se que “assiste ao Advogado a prerrogativa – que lhe é dada por força e autoridade da lei – de velar pela intangibilidade dos direitos daquele que o constituiu como patrono de sua defesa técnica, competindo-lhe, por isso mesmo, para o fiel desempenho do “munus” de que se acha incumbido, o exercício dos meios legais vocacionados à plena realização de seu legítimo mandato profissional. O Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação (Poder Legislativo, Poder Executivo ou Poder Judiciário), ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, mesmo tratando-se de procedimento de acareação, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (MS 25.617-DF).

Também o ministro Carlos Velloso se despediu em alto estilo da Suprema Corte quando, em voto lapidar, no caso do ex-prefeito Paulo Maluf e seu filho, propôs a concessão de liminar em Habeas Corpus impetrado contra o indeferimento de outra liminar em HC impetrado no STJ seguindo, nesse passo, o direcionamento fixado no memorável julgamento do HC 85.185-SP do qual foi relator o ministro Cezar Peluso, flexibilizando a odiosa Súmula 691 (HC 86.864-9-SP).

Enfim, se do Supremo Tribunal Federal emanam luzes alentadoras quanto à afirmação dos direitos constitucionais, da prática da Polícia Federal e, o que é mais grave, da grande maioria dos juízes federais de primeira instância, que a legitima, recebemos sinais assombrosos de que a Constituição e os direitos e garantias nela elencados podem ser flexibilizados ao ponto de nada valerem. Em prol da otimização da repressão penal ou da luta contra a impunidade, instalou-se um tenebroso vale tudo, como se estivéssemos sob a Santa Inquisição que tantas barbáries perpetrou em nome da fé ou do bem.

A Ordem dos Advogados do Brasil está atenta à escalada contra os direitos e garantias individuais e, particularmente, contra as prerrogativas profissionais e, além do mais, tem tomado medidas contra os abusos seja impetrando Habeas Corpus seja mandados de segurança e, agora, representando ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público que parecem ser as alternativas mais eficazes não apenas para coartar abusos, mas para instituir procedimentos que, antes ainda, os impeçam.

O importante, porém, mais que as medidas pró-ativas ou mesmo reativas, é uma mobilização cívica em torno do significado do respeito aos direitos e garantias individuais como balizador da atividade punitiva estatal ou, como muito apropriadamente adverte o ministro.Marco Aurélio, o preço que significa viver numa democracia que, oxalá, se afirme em 2006.

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