Saúde Pública

Nascimento de anencéfalos pode ser útil em transplantes

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28 de dezembro de 2005, 6h00

Nas últimas semanas, a sociedade brasileira tem acompanhado, com muita apreensão, o profundo sofrimento e a peregrinação dos pais do recém-nascido Arthur, Rafael da Cunha Santos e Beatriz Blauta Schlobach, na busca de um doador de coração compatível para essa criança. Arthur está em estado crítico, após nascer, no último dia 14 de novembro, com 3.200 gramas, e ter sido diagnosticado pela equipe de Rosa Célia, dirigente do projeto Pró Criança Cardíaca, como portador de hipoplasia, ou seja, uma redução acentuada dos movimentos do lado esquerdo do coração, ainda na fase uterina. Razão pela qual necessita de um transplante.

Mas como encontrar um doador compatível para uma criança com apenas 35 dias de nascida? É sabido, no entanto, que diariamente nascem milhares de crianças no país e, muitas delas, não conseguem sobreviver por várias circunstâncias patológicas, as quais, em regra, já são diagnosticadas ainda no útero materno. O anencéfalo (aquele que nasce com ausência de cérebro), por exemplo, é um dos casos que mais tem sido discutido neste ano, sobretudo nos meios jurídico e religioso.

Esses recém-nascidos, apesar de não possuírem cérebros, respiram, mamam e choram, são seres vivos, cidadãos, segundo afirmação do coordenador do Sistema Nacional de Transplante, Roberto Schlindwein, em entrevista concedida ao programa Fantástico da Rede Globo, no último dia 11 de dezembro.

Os anencéfalos morrem, clinicamente, durante a primeira semana de vida. Durante esse curtíssimo período de vivência é possível usar os seus órgãos para salvar vidas humanas, como a do próprio Arthur. Por sua vez, declarada a morte clínica, os órgãos estão em franca hipoxemia, o que os torna inúteis para uso em transplantes (dados extraídos do Processo-Consulta 24/2003 aprovado pelo Conselho Federal de Medicina, em 9 de maio de 2003, cujo Relator foi o Conselheiro Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, e Interessado o Ministério Público do Paraná).

O infante Arthur só pode receber órgão de outra criança com dimensões compatíveis e os anencéfalos possuem os órgãos viáveis para possibilitar transplantes, dentre eles o coração de que tanto necessita àquela criança.

Destarte, dá-se mais atenção ou valor a formalidade do que ao conteúdo. Bastou falar-se em usar os órgãos dos anencéfalos para salvar vidas que os debates calorosos e discursos contrários a isso começarem a surgir, notadamente dos religiosos, dado que do ponto de vista médico a discussão restou superada com a edição da Resolução 1.752/2004 do Conselho Federal de Medicina (publicada no D.O.U. 13.09.04, seção I, p. 140).

O órgão máximo da classe médica resolveu que (artigo 1º da referida Resolução): Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu nascimento. Todavia, o Conselho Federal deixou claro (no artigo 2º da mesma Resolução) que a vontade dos pais deve ser manifestada formalmente, no mínimo 15 dias antes da data provável do nascimento.

Como visto, sob a ótica médica, inexiste impedimento para se fazer o transplante em Arthur, desde que sejam observados os termos da sobredita Resolução. Entretanto, um outro obstáculo necessitava ser removido e explicado. É que a retirada de órgãos ou partes do corpo e tecidos deve ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina (artigo 3º, da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997). A Resolução referida pela lei que dispõe sobre a remoção de tecidos e órgãos para transplante foi editada em 8 de agosto de 1997, recebendo o 1.480.

Pois bem. Se o novo conceito para se atestar o óbito de um ser humano é o de morte encefálica — o conceito anterior era o de parada cardiorrespiratória —, e como o anencéfalo, o próprio nome já diz, não possui cérebro, de que modo proceder o médico para atestar a morte? Creio que nessa situação deve ser resgatado o velho conceito, haja vista que o anencéfalo, somente nos primeiros dias de vida, exerce as faculdades de uma criança aparentemente normal (chora, mama e respira).

A medicina moderna tem como pacífico que os anencéfalos são natimortos (vide Resolução 1.752/2004), de modo que, em vez de fazer aborto, por meio de autorização judicial, melhor seria que os pais deixassem que eles viessem ao mundo para salvar a vida de milhares de outros bebês que, após o nascimento, necessitam de um órgão para continuar vivendo, o qual só pode ser doado também por um recém-nascido devido às dimensões.

É evidente que se têm opiniões em contrário de todos os tipos e gostos, sustentando, inclusive, o caráter penal da conduta do médico que retira o órgão do anencéfalo para transplantar numa criança com substanciais chances de ter uma vida normal. Mas, essas opiniões são apenas retóricas, cujas quais não salvam vidas, além de assistir passiva e omissivamente a morte de quem poderia doar órgãos (o anencéfalo) e daqueles que necessitam de um transplante como condição para sobreviver (é o caso da criança a Arthur).

Não vejo sequer resquícios de razoabilidade nessas discussões. A principal delas há muito, deixou de existir, tendo em conta a racionalidade moderna do Conselho Federal de Medicina, que tratou logo de dar um norte, um porto seguro, para os médicos que honram o seu ministério e os compromissos legal e social.

Citemos um exemplo emblemático: (i) se duas mulheres, mãe e filha ou irmãs, ficassem grávidas e no decorrer das gravidezes uma delas soubesse pelo médico que seu filho nasceria sem cérebro, enquanto que o nascituro da outra gestante eventualmente necessitaria de um transplante para ter uma vida normal; como elas deveriam proceder? Abortarem? Uma abortar e outra ter a criança? Ou deixar ambos nascer e se realizar o transplante do órgão necessário para aquele que realmente tem relevantes possibilidades de sobreviver?

É claro que há última indagação é que deve prevalecer. Se a Ciência Médica pode salvar de uma delas por que devemos deixar as duas crianças perecerem. Isso afronta qualquer princípio ou valor humano.

Apesar de tudo isso, ainda sim assusta a possibilidade de algum médico, em tese, ser processado por homicídio, posto que o anencéfalo nasce com vida, e falece dias depois, trazendo consigo, por vezes, sérios desdobramentos no campo do direito civil, notadamente no que tange aos direitos sucessórios (artigo 1.784 e seguintes do Código Civil).

Processar penalmente um aludido profissional de saúde só porque ele buscou cientificamente salvar uma vida com órgãos do natimorto é, a nosso ver, de todo irracional, além de injusto. Primeiro porque o médico está amparado em uma Resolução do órgão máximo representativo. Segundo, a comunidade medica internacional é uníssona ao afirmar que os anencéfalos não possuem qualquer possibilidade de vida.

Há também algumas opiniões no sentido de que se estaria praticando uma espécie eutanásia (provocar a morte precoce de pessoas doentes através de medicamentos), uma vez que os órgãos do anencéfalo teriam que ser retirados antes do seu completo falecimento. Ora, como enfatizamos anteriormente, o próprio Conselho Federal de Medicina deixou claro ser impossível o aproveitamento de tais órgãos depois, dado que os mesmos estão em franca hipoxemia (diminuição paulatina da quantidade de oxigênio contida no sangue). Portanto, só após ter sido expulso do útero materno é que o anencéfalo está apto a doar seus órgãos, salvando, assim, várias vidas.

Diferentemente do que ocorre na eutanásia — em que a pessoa doente não possui um tempo determinado para falecer e por fim ao sofrimento, podendo até ser curada —, o anencefálo, é regra, não passa de uma semana vida (vide Parecer-Consulta 24/2003 do CFM), não tendo qualquer possibilidade de sobreviver, tanto que existem várias decisões judiciais autorizando a interrupção dessa gravidez. Ainda no ano passado conseguimos um Alvará Judicial para um caso idêntico, o qual foi expedido pelo Juízo da 7ª Vara Cível da Comarca de Guarulhos, São Paulo, depois se convencer de tal necessidade com a cuidadosa análise dos documentos médicos que lhe foram apresentados, não obstante ter o Ministério Público local se manifestado pelo indeferimento do pedido.

Assim, a razão (salvar vidas) para que os pais tenham os anencéfalos se sobrepõe aos movimentos ou opiniões contrários ao uso dos seus órgãos para transplante. E as ameaças de processar, em princípio, o médico e eventualmente os pais devem continuar na retórica.

É do conhecimento meridiano que a lei nem sempre é justa e, por vezes, atende tão-somente os interesses de determinado grupo ou grupos. De igual forma, a mesma lei pode não ser ética, além de não atender os fins sociais e o bem comum a que ela se destina (artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil).

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, sintetizou muito bem essa questão ao asseverar que: Os homens não existem para servir às Leis, e sim as Leis para servirem os homens (palestra conferida na posse da nova diretoria da Associação dos Magistrados do Rio, em 5 de fevereiro de 2002, no painel denominado Justiça, Imprensa e Democracia, o que temos e o que queremos.

Portanto, diante desse quadro é melhor aplicar-se à Justiça e o princípio da razoabilidade, analisando delicadamente cada situação que surgi; do contrário, na maioria das vezes, é preciso enfrentar o que os pais do Arthur estão enfrentando, e como muita determinação, para que se abram as mentes retrogradas e olhos daqueles que vivem de dogmas. Em outras palavras, são seres humanos que amam o passado e que não ver que o novo sempre vem (trecho da composição como os nossos pais do cantor e compositor da Música Popular Brasileira Belchior).

Concluindo, esse é um problema de saúde pública que o Estado necessita resolver; incentivando a continuação da gravidez até o fim, depois de constatada a anencefalia, e não havendo grave risco para a mãe, possibilitado a retirada de órgãos e o efetivo transplante, fornecendo o Governo toda à estrutura necessária para que isso ocorra, sem custo algum para os interessados em doar os órgãos do filho natimorto e para os pais da criança, a qual necessita do transplante.

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