Retrospectiva 2005

Precatório virou paradigma de insegurança jurídica

Autor

25 de dezembro de 2005, 6h00

A inadimplência pelo Poder Público no pagamento de ordens judiciais se agravou em 2005, tornando-se verdadeiro emblema da insegurança jurídica e institucional em vigor no Brasil:

— Os governos estaduais e municipais continuam desrespeitando a Constituição e as ordens judiciais de pagamento;

— O Poder Judiciário, após o Supremo Tribunal Federal outorgar indulgência plena ao calote, assiste o ministro Jobim negociar o cumprimento de decisões judiciais (!) e somente com os devedores (sic), ignorando completamente os credores e seus advogados, o que muitos analistas interpretam como utilização de um tema sagrado (a decisão judicial) como combustível de interesses pessoais eleitorais. Sutilezas regimentais inerentes ao processo de cassação do depuado José Dirceu merecem exame imediato, horas de debates e transmissão direta por televisão, enquanto milhões de credores têm seus processos e direitos mofando em prateleiras;

— O Poder Legislativo analisa em inúmeras e desencontradas iniciativas, propostas para administração do problema, encontradas nas reformas Tributária, Portos (!), Judicial, emendas constitucionais isoladas, sempre sem qualquer consulta aos credores e com um único objetivo: o que os Estados e Municípios “podem” pagar. A conta é feita de trás para a frente. Na cesta básica da cidadania, entendem suas excelências que ordem judicial não tem lugar ou prioridade;

· As contas judiciais (bilhões e bilhões de dólares) são omitidas dos balanços, escondidas nas gavetas do poder, e os políticos mentem à sociedade e aos banqueiros internacionais, jurando sobre a bíblia, quando dizem que têm “contas em ordem”, “superavit”, para efeitos eleitoreiros e creditícios. Os Tribunais de Contas aprovam qualquer coisa, sem problemas. Os banqueiros fingem que não sabem do calote, para continuar cobrando os juros mais altos do mundo (em parte importante, pela excessiva tributação, é bem verdade);

· As dívidas ativas (impostos em atraso) são contabilizadas pelo Poder Público como 100% boas e cobráveis, quando se sabe que nem 5% são recebidos, principalmente pelas dificuldades e má gestão na cobrança. Este é o principal ativo que poderia ser entregue aos credores de precatórios ou vendidos a investidores para o mesmo fim;

· Alguns Estados tentam introduzir legislação que permitiria a compensação de impostos em atraso com precatórios, mas a máquina burocrática não aceita decisões judiciais e quer controlar tudo: qual imposto e qual precatório pode ser utilizado, viciando na origem a criação de qualquer mercado livre e competitivo;

· Sim, existem dinheiro e bens para pagamento dos precatórios (desde impostos em atraso que poderiam ser securitizados, ou seja, vendidos a investidores, até imóveis ociosos, ações, florestas e outros bens), mas aqui novamente o establishment burocrático não quer submeter-se a qualquer controle, muito menos perder território, empregos, assessorias, diretorias de compras, fundos de pensão e mordomias;

· Somente no estado de São Paulo, mais de 55.000 credores de precatórios alimentares já morreram sem receber seus créditos, o que constitui verdadeiro genocídio judicial, que será vigorosamente denunciado em fóruns de direito humanos.

Parece e é o caos, senão vejamos em mais detalhe:

O estoque de calote

A maioria absoluta dos entes públicos (União, estados e municípios) continua praticando calote ostensivo contra seus credores judiciais, especialmente alimentares, o que é especialmente dramático e desumano.

Levantamento (parcial e contestado pelos credores e advogados) realizado pelo Supremo Tribunal Federal indica um estoque de pelo menos R$ 65 bilhões de dívidas não-pagas no país, centenas de milhares de credores. Os credores entendem que este valor pode ultrapassar R$ 100 bilhões ou mais, pelas falhas no levantamento e o volume de processos em julgamento ou procrastinação onerosa.

Estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul devem isoladamente bilhões e bilhões de reais, o mesmo acontecendo com grandes prefeituras como São Paulo, São Bernardo, Campinas, etc.


A prefeitura do Rio de Janeiro e estados como Amazonas e Pará estariam em dia, fato pouco conhecido e digno de registro.

Goiás, Espírito Santo, Alagoas, Bahia e outros não pagam praticamente nada a ninguém, com ou sem moratórias constitucionais, alimentares ou não alimentares, pouco importa. O estado do Paraná não pagou a moratória de 1.988, nem iniciou a moratória da Emenda 30 (2.000), o que diz muito sobre a efetividade desta alternativa de solução.

A não-transparência dos números

As dívidas judiciais continuam sem a devida contabilização e informação à comunidade e credores, imunes às obrigações da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os governadores de estados como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, garantem que “as contas estão em ordem”, “os pagamentos em dia”, etc, o que evidentemente não corresponde à realidade, para não dizer uma deslavada mentira para fins políticos e também continuar emprestando dinheiro de organismos internacionais, apresentando balanços falsos.

A União, na mesma linha de falsidade, se recusa a contabilizar o estoque de dívidas judiciais pendentes no país, para possibilitar ao estadista de plantão proclamar “superávit de 4% nas contas públicas”… O ministro Jobim teria consultado o Ministério da Fazenda sobre a possibilidade de trocar os títulos judiciais por títulos de dívida (com juros e correção de mercado), mas houve total rejeição, pois isto significaria a contabilização da dívida “justo agora quando podemos falar em superavit”…

Nada surpreendente se lembrarmos que o presidente da República diz que “caixa 2” é coisa normal no país, e que os grandes operadores de dinheiro público/político, os conhecidos quadrilheiros Delúbio e Marcos Valério, banalizaram as chamadas “dívidas não-contabilizadas”. Caixa 2 eleitoral e ordens judiciais de pagamento estariam no mesmo saco, nesta visão neochavista do tema.

As dívidas ativas (impostos e taxas em atraso) constituem ativo bilionário do Poder Público (União, estados e municípios) que poderia e deveria ser securitizado para venda a investidores ou mesmo entregue aos credores judiciais, no espírito da nova lei de recuperação judicial de empresas (ex-falência ou concordata). Aqui também as dificuldades são a afronta a interesses localizados: desde os advogados públicos, que querem manter seus honorários de sucumbência (o que é justo e poderia ser facilmente resolvido) até máfias de leilões judiciais de bens arrecadados. Para efeitos da Lei de Responsabilidade Fiscal, as dívidas ativas são creditadas como 100% boas e cobráveis, o que demonstra mais uma vez o mundo da fantasia em que vivem as contas públicas.

Existe dinheiro para pagar?

A alegação mais confortável para os filósofos do calote é que não existe dinheiro para pagar (pelo menos legalmente) logo (conforme práticas políticas em vigor) vale tudo: moratória, leilão dirigido, não-contabilização de dívidas, etc.

Nada mais irreal.

Existe $ livre e desembaraçado para pagamento de indenizações milionárias a anistiados políticos (sem processo judicial, sem precatório), quitação antecipada ao FMI (US$ 15 bilhões), constituição de fundos garantidores de PPPs, manutenção e crescimento do MST, publicidade, mas muita publicidade (também como torneira para vazar estatais e fundos de pensão, em cenas de pornografia política explícita), etc.

O Estado gasta muito, gasta mal, tem funcionários demais, e, para não olhar apenas as dívidas passivas, tem dívidas ativas (impostos em atraso, basicamente) que normalmente excedem em muito as dívidas passivas judiciais ou não.

A gestão é péssima: o governo não paga e não recebe. Exceção é feita para a Receita Federal e outras estaduais e municipais, que sim cobram a ferro e fogo.

Se assim é, basta receber as dívidas ativas e pagar as passivas.

Isto poderia ser feito através da venda ou cessão das dívidas ativas a instituições financeiras ou investidores, que ficariam com a obrigação de pagamento dos precatórios, sob controle e supervisão do Poder Judiciário e dos credores, e não do devedor inadimplente crônico.

Grandes grupos internacionais já se movimentam para entrar neste mercado de dívida pública judicial, com a criação de fundos especializados.

O estado de São Paulo vendeu recentemente um percentual das ações do Banco Nossa Caixa (que tem o monopólio dos depósitos judiciais – R$ 10 bilhões, remunerados a 6% e emprestados a mais de 20% ao ano, especialmente para servidores públicos, credores de precatórios) por mais de R$ 900 milhões, que poderiam muito bem ser usados para o pagamento de precatórios. O estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros também pensam em privatizações parciais de estatais, mas nunca objetivando a utilização dos recursos para o pagamento de dívidas judiciais. Pagar precatório não dá voto, não tem sanção e (quando o agente público é corrupto) não dá comissão.


Os crimes contra a Constituição e os Direitos Humanos

Não é preciso ser jurista ou especialista em coisa alguma para concluir que os princípios constitucionais continuam violados, impunes, com o beneplácito até do Supremo Tribunal Federal.

Um levantamento feito pelo Madeca – Movimento dos Advogados dos Credores Alimentares revela que pelo menos 55.000 credores já morreram no estado de São Paulo sem receber seus legítimos créditos. Já existem estudos para ingresso de ações por danos morais nesses casos de falecimento: se considerarmos R$ 10.000,00 de indenização por credor, o que não é nada, estamos falando de R$ 550.000.000,00 adicionais de dívida judicial (a serem pagas com novos precatórios?).

Mais uma vez precisamos lembrar o nosso presidente, que acha um absurdo cassar o maddato de um Deputado por R$ 20mil (o impoluto Professor Luizinho), uma merreca… Tente explicar isto a uma velhinha que espera da Justiça e do Governo R$ 3 mil há 10 anos, seu Lula…

Tudo é feito para prejudicar os credores: impossibilidade de compensação de dívidas ativas com passivas; exigência de certidões negativas para levantamento de indenizações; moratórias seguidas para pagamento; correção monetária maior para o governo receber e menor para pagar, e por aí vai… A via da cidadania não é de duas mãos, mas sim via única, sempre do bolso do cidadão para o glorioso e poderoso Estado. Logo, logo, como lembra um grande jurista, o cidadão não poderá ingressar em Juízo, registrar o nascimento de um filho, renovar carteira de motorista, receber aposentadoria, casar ou qualquer outro ato civil, se não apresentar certidões negativas de impostos (normalmente uma via crucis para obtenção, e em 2005 um martírio, pelas inúmeras greves de serventuários públicos, justas ou não). Agora, restituição de impostos pagos involuntariamente a maior, na fonte, somente quando eles em Brasília puderem e quiserem…

Num cenário maior, a ineficiência do Judiciário pode limitar no futuro a sua utilização aos pobres, ao Poder Executivo e à solução de temas criminais. Quem puder migrará para a arbitragem, alternativas não-judiciais e mesmo a eleição de Foro estrangeiro (caso das grandes empresas e negócios).

O caos legislativo

A pressão dos credores e seus advogados estimulou a criação de diversas iniciativas legislativas, aparecendo textos na Reforma Tributária, Portuária (?), Judiciário, e propostas autônomas diversas, inclusive a permissão de utilização de depósitos judiciais, em até 70% de seu estoque.

Mais recentemente, o Min. Jobim esboçou diversos projetos, testados quase que exclusivamente com os devedores, o que tem sido interpretado como iniciativa ilegítima, antes de mais nada, porque caberia ao Chefe do Poder Judiciário exigir o cumprimento de decisões judiciais e não negociar (e exclusivamente com os devedores!) qualquer calote organizado. Trechos conhecidos pelos credores dessa proposta desenhada para o sabor dos devedores, tratam de leilão de precatórios (para possibilitar ao devedor pagar menos, usando seu calote em benefício próprio) e, o que certamente é inédito no mundo civilizado ou não, um limite orçamentário ao cumprimento de decisões judiciais! Caso esta incrível proposta seja aprovada, o Brasil certamente será o único país no mundo onde a lei valerá apenas até x% do orçamento. Simulações feitas indicam que o estado do Espírito Santo levaria mais de 100 anos para saldar suas dívidas judiciais… Evidentemente, não passa na cabeça dos alquimistas de Brasília estender o mesmo tratamento às pessoas físicas e jurídicas (pagamento de impostos ou dívidas judiciais até x% de seu orçamento).

Alguns estados, como Rondônia, Rio de Janeiro, Alagoas, Ceará e Rio Grande do Sul, têm ou tiveram propostas de legislação possibilitando a compensação de impostos em atraso com precatórios, enquanto São Paulo copia até certo ponto o Projeto Jobim, criando uma SPE – Sociedade de Propósito Específico, que receberia dívida ativa (impostos em atraso) e compraria precatórios. Uma versão envergonhada de práticas de mercado, fadada ao fracasso, pois o Estado (não o Poder Judiciário) é quem diria quem (credor e devedor) poderia entrar no leilão.

Alguma solução fácil, macro e direta?

Muitas propostas estão em gestação pelos credores (proibição ao Poder Público de contratar empréstimos sem apresentação de certidão negativa de precatórios, idem de fazer propaganda de qualquer tipo, etc) mas a mais oportuna e inteligente parece ser aquela desenvolvida pela OAB do Distrito Federal, que propõe que pelo menos um ponto percentual da dívida paga mensalmente pelos estados e municípios para a União seja usado para pagamento sem desconto do estoque acumulado de precatórios. É algo suprapartidário, controlável, de longo prazo, e a União, que tem acesso a recursos trilionários, inclusive no exterior, poderia bancar este processo. É também uma maneira de suavizar o torniquete financeiro e político da União sobre estados e municípios.

Os credores vão lutar muito em 2.006

Os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) parecem encarar os credores e seus advogados como uma massa amorfa, passiva, bovina, sem iniciativa, não merecedora de qualquer respeito, que aceitará qualquer solução divina vinda de Brasília para o problema.

Ledo engano.

Os credores e seus advogados, além de associações de funcionários públicos, estão se integrando mais e mais, e neste ano próximo, eleitoral, quando as sensibilidades políticas afloram, pode-se esperar um festival de pedidos de impeachment, denúncias por improbidade administrativa ao Ministério Público (o que já ocorreu no Rio Grande do Sul), passeatas, denúncias ao Banco Mundial, BID, OIT (Organização Internacional do Trabalho), Tribunal de Direitos Humanos da OEA, Conselho Nacional de Justiça e outros.

O pobre e o credor de precatórios quando não paga suas dívidas fica “com o nome sujo”, vai para a Serasa e outros organismos parecidos. A criação de uma Serasa pública é discutida.

Um grande evento sobre dívidas judiciais, de âmbito nacional, está sendo programado para São Paulo, em Março de 2.006.

A solução definitiva e sustentável

É evidente que a administração do problema passa

(a) pelo reconhecimento formal e objetivo do problema,

(b) criação de mecanismos para pagamento do estoque atual de dívida e

(c.) introdução de legislação adequada para o futuro (com sanções e punições severas, como sequestro de rendas, inelegibilidade, responsabilização civil e criminal dos agentes públicos).

Parece claro, por outro lado, que nenhuma boa técnica jurídica, econômica e administrativa cumprirá sua missão sem a presença de brasileiros e brasileiras íntegros, independentes e idealistas, que resistam à tentação da mesmice, dos interesses imediatos, populismo e mediocridade. O descumprimento crônico de ordens judiciais pode abalar as estruturas da democracia brasileira. Procura-se gente disposta a trabalhar e resolver o tema na sua dificuldade e grandeza. Falar apenas no palavrão precatório é muito pouco. Para quem não sabe, o Brasil é o único país no mundo onde existe esta inacreditável criação: precatório, o veículo do calote.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!