Violação de direito

STF volta a abrandar Súmula para evitar violação de direito

Autor

16 de dezembro de 2005, 18h07

Mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal abriu exceção à Súmula 691 e analisou pedido de liminar em Habeas Corpus contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que rejeitou o mesmo pedido, antes que essa corte julgue o caso no mérito. Nos últimos meses, os ministros mitigaram a Súmula ao menos outras quatro vezes, por entender que a regra não deve prevalecer frente a uma flagrante violação de direito.

Desta vez, o ministro Marco Aurélio concedeu HC para o estudante de Direito Gaby Boulos, acusado de abusar sexualmente de uma menina de 12 anos. Em 23 de novembro, o ministro do STJ Paulo Medina havia negado liminar por não vislumbrar constrangimento ilegal.

Em sua decisão, Marco Aurélio afirmou que possui “profunda reserva” com relação à Súmula 691. Para o ministro, uma vez considerada a “avalanche de processos”, não analisar o pedido de liminar e aguardar o desfecho da ação “para consertar-se a situação é passo incompatível com o Estado Democrático de Direito”.

Os ministros têm aberto exceções quando consideram a existência de constrangimento ilegal. O caso mais notório em que a força da Súmula foi abrandada é o de Flávio e Paulo Maluf, em que o Plenário do Supremo decidiu afastar a aplicação da jurisprudência da Corte.

Noutro caso, os ministros consideraram que a ação penal por crime fiscal contra um empresário, sem autuação da Receita Federal, era evidentemente inconstitucional e a trancaram sem esperar que o Superior Tribunal de Justiça analisasse o mérito do caso. Mesmo assim, resolveram, por maioria, manter a Súmula, deixando claro que aquele caso era excepcional. Por isso, o trancamento da ação penal foi decidido de ofício, ou seja, sem relação com os pedidos feitos no HC.

As decisões contra a Súmula 691, contudo, têm se tornado cada vez mais freqüentes. Ao analisar o pedido de Gaby Boulos, Marco Aurélio entendeu que não cabia a aplicação da norma já que há constrangimento ilegal. “A adequação da medida ocorre uma vez constatado o ato de constrangimento ilegal e existente órgão capaz de apreciá-lo”, escreveu o ministro.

Para Marco Aurélio, a prisão preventiva de Boulos, decretada pela 14ª Vara Criminal de São Paulo, não está fundamentada. O juízo paulista decretou a prisão baseado na necessidade de garantir a ordem pública, porque o crime causou desassossego na sociedade, e para garantir a aplicação da lei penal. O argumento usado foi o de que o estudante se evadiu quando foi decretada sua prisão preventiva e só se apresentou à Polícia cinco dias depois.

Marco Aurélio entendeu que o desassossego da sociedade e o fato de o réu ter se evadido não justificam a manutenção da prisão preventiva. “O cidadão conta com o direito natural de não se sujeitar a ordem que, de forma procedente ou não, entenda discrepante do arcabouço normativo”, explicou.

Ele afirmou que o réu não é obrigado a colaborar com as investigações. “Não há como decretar a preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual.” Marco Aurélio lembrou que o fato de ter concedido a liberdade para Gaby Boulos não prejudica a decisão do STJ, que ainda analisará o mérito do pedido.

O promotor Marcelo Luiz Barone, responsável pela acusação de Boulos, considerou a decisão de Marco Aurélio “infundada”. Na opinião dele, o fato de o acusado estar sujeito à pena mínina de seis aos em regime fechado já justifica a manutenção da prisão preventiva. “Dar a liberdade para o réu é dar a oportunidade para ele preparar sua fuga antes da condenação”, considerou.

O crime

Gaby Boulos é acusado de ter abusado sexualmente de uma menina de 12 anos que fazia malabarismo na rua para ganhar dinheiro. Segundo depoimento dela e de um amigo de 13 anos, testemunha do crime, os dois estavam pedindo dinheiro num semáforo, na capital paulista, quando foram abordados por Boulos. Este teria convidado ambos para entrar no carro e tomar um lanche. Depois, teria obrigado o garoto a descer e abusado sexualmente da menina. Boulos está preso desde julho passado.

Leia a íntegra das decisões do STF e do STJ

STF

HABEAS CORPUS 87.424-0 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE(S): GABY BOULOS

IMPETRANTE(S): LUIZ FLÁVIO BORGES D’ URSO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): RELATOR DO HC Nº 50143 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO

HABEAS CORPUS – VERBETE Nº 691 DA SÚMULA – EXCEPCIONALIDADE VERIFICADA.

PRISÃO PREVENTIVA – FUNDAMENTOS – INSUBSISTÊNCIA – RELEVÂNCIA DA ARTICULAÇÃO – LIMINAR DEFERIDA.

1.Com a longa inicial de folha 2 a 23, acompanhada dos documentos de folhas 26 a 207, busca-se demonstrar a insubsistência da prisão preventiva e a erronia, a ponto de configurar constrangimento ilegal, do ato do ministro relator do Habeas Corpus nº 50.143/SP em que indeferida a medida acauteladora. Afirma-se que o paciente, réu primário e portador de bons antecedentes, integrado a família estruturada com a qual reside há mais de dez anos no mesmo endereço, foi denunciado como incurso na prática dos crimes de atentado violento ao pudor – artigo 214, combinado com o artigo 224, alínea “a”, ambos do Código Penal – e cárcere privado – artigo 148, cabeça e § 2º, do Código Penal -, estando o processo em curso na 14ª Vara Criminal de São Paulo – Controle nº 969/05. Sustenta-se que o decreto de prisão baseou-se em duas premissas – a necessidade de garantir a ordem pública em face do desassossego da sociedade, do clamor provocado por crime da natureza do que imputado ao paciente, e a garantia da aplicação da lei penal, porquanto evadira-se ele do distrito da culpa tão logo assentada a prisão temporária. Alude-se a precedentes do Tribunal quanto à flexibilização do Verbete nº 691 da própria Súmula e à impossibilidade de se proceder a verdadeira execução da pena antes de formada a culpa. O paciente, ordenada a prisão provisória, apresentara-se, assistido por defensor, ao Juízo da 14ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda. Discorre-se a respeito, ressaltando-se que a preventiva já se projeta no tempo, por cerca de cinco meses. São mencionados depoimentos sobre o perfil do paciente, requerendo-se a concessão de liminar que viabilize a liberdade até o julgamento do habeas pelo Superior Tribunal de Justiça, vindo-se, alfim, a confirmar a providência. Distribuído o processo, o ministro Cezar Peluso deu-se por impedido de atuar “por razões de foro íntimo”. O Presidente da Corte despachou à folha 213, determinando a redistribuição.


2.Reafirmo a óptica sobre o Verbete nº 691 da Súmula desta Corte e em relação ao qual mantenho profunda reserva. A harmonia, se possível, com a Lei Fundamental direciona ao estabelecimento de exceções. É que, como consignado no julgamento do Habeas Corpus nº 85.185-1/SP, o habeas corpus é ação de estatura ímpar, visando a proteger bem maior do cidadão – a liberdade. Então, a adequação da medida ocorre uma vez constatado o ato de constrangimento ilegal e existente órgão capaz de apreciá-lo. É justamente isso que se verifica no presente caso, no qual, de início, as premissas da prisão preventiva não se sustentam, e, na pirâmide do Judiciário, acima do Superior Tribunal de Justiça, está o Supremo. Nem se diga, como aconteceu na Corte de origem, que a liminar em habeas é criação jurisprudencial. Trata-se de providência que se mostra ínsita à atuação jurisdicional, agindo o órgão investido do ofício judicante de forma imediata para impedir dano pior. Está compreendida na cláusula asseguradora do acesso ao Judiciário para evitar lesão ou ameaça de lesão a direito – inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal. Ante a quadra vivenciada, com avalancha de processos nunca vista, aguardar-se o desfecho de ação para, mediante a entrega da prestação jurisdicional, consertar-se a situação, é passo incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Cumpre examinar, incontinente, as premissas do decreto de prisão. Aludiu-se a elementos que se mostram praticamente neutros e, diria melhor, inerentes a qualquer ato de constrição penal, ou seja, a materialidade do crime e os indícios da autoria. Por si sós, não são suficientes a respaldar algo que, a todos os títulos, afigura-se excepcional, isto é, a preventiva. Em passo seguinte, aduziu-se que o crime imputado ao paciente é daqueles que “colocam a sociedade em desassossego”, remetendo-se ao clamor provocado pelo modo como foi praticado, a despertar indignação na comunidade. Mais uma vez, levou-se em conta fator que não esteia a prisão preventiva, a inversão da ordem natural das coisas, no que, à luz dos ditames constitucionais, é preciso contar-se, para clausura do cidadão, com a culpa formada e imutável na via recursal – inciso LVII do artigo 5º da Carta Federal. Digo que o momento vivido pela sociedade brasileira é realmente de desassossego, considerada a criminalidade. Esse aspecto, todavia, não pode servir, presente subjetividade maior, a ter-se como respaldada a prisão preventiva, principalmente quando se cuida de réu primário e de bons antecedentes. Apontou-se, mais, a necessidade de se preservar campo propício à aplicação da lei penal, com enfoque na circunstância de, tão logo decretada a prisão temporária, haver o paciente deixado o distrito da culpa. Esse dado também não é de molde a servir de alicerce à preventiva. O cidadão conta com o direito natural de não se sujeitar a ordem que, de forma procedente, ou não, entenda discrepante do arcabouço normativo. Nada obstante, a peça de folhas 36 e 37 revela a apresentação do paciente, acompanhado de defensor, a autoridade constituída, quando foi conduzido à carceragem da delegacia de polícia.

Transcrevo o entendimento sintetizado na ementa do acórdão prolatado quando do julgamento do Habeas Corpus nº 83.943-6/MG, perante a Primeira Turma, publicado no Diário da Justiça de 17 de setembro de 2004:

PRISÃO PREVENTIVA – EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da não-culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Deve-se interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos.

PRISÃO PREVENTIVA – SUPOSIÇÕES – IMPROPRIEDADE. A prisão preventiva tem de fazer-se alicerçada em dados concretos, descabendo, a partir de capacidade intuitiva, implementá-la consideradas suposições.

PRISÃO PREVENTIVA – NÚCLEOS DA TIPOLOGIA – IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem como as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta.

PRISÃO PREVENTIVA – PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. O bem a ser protegido a esse título há de situar-se no futuro, não no passado, a que se vincula a pretensão punitiva do Estado.

PRISÃO PREVENTIVA – APLICAÇÃO DA LEI PENAL – POSTURA DO ACUSADO – AUSÊNCIA DE COLABORAÇÃO. O direito natural afasta, por si só, a possibilidade de exigir-se que o acusado colabore nas investigações. A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém está compelido a auto-incriminar-se. Não há como decretar a preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual.

PRISÃO PREVENTIVA – MATERIALIDADE DO CRIME E INDÍCIOS DA AUTORIA – ELEMENTOS NEUTROS. A certeza da ocorrência do delito e os indícios sobre a autoria mostram-se neutros em relação à prisão preventiva, deixando de respaldá-la.

PRISÃO PREVENTIVA – CLAMOR PÚBLICO. A repercussão do crime na sociedade do distrito da culpa, variável segundo a sensibilidade daqueles que a integram, não compõe a definição de ordem pública a ser preservada mediante a preventiva. A História retrata a que podem levar as paixões exacerbadas, o abandono da razão.


3.Defiro a medida acauteladora para afastar a prisão do paciente que foi implementada pelo Juízo de Direito da 14ª Vara Criminal de São Paulo no Processo cujo número de controle é 969/05. Consigno que esta concessão não obstaculiza a seqüência do Habeas nº 50.143/SP, em curso no Superior Tribunal de Justiça, mesmo porque o pedido formalizado na inicial visa a preservar a liberdade até que a medida venha a ser apreciada.

4.Estando no processo as peças indispensáveis à análise do tema, colha-se o parecer do Procurador-Geral da República.

5.Publique-se.

Brasília, 12 de dezembro de 2005.

Ministro MARCO AURÉLIO

Relator

Superior Tribunal de Justiça

HABEAS CORPUS Nº 50.143 – SP (2005/0193134-3)

RELATOR : MINISTRO PAULO MEDINA

IMPETRANTE : LUIZ FLÁVIO BORGES D’URSO E OUTROS

IMPETRADO : DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PACIENTE : GABY BOULOS

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido liminar, impetrado por Luiz Flávio Borges D’urso e outros, em favor de GABY BOULOS, contra acórdão da Décima Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que denegou a ordem lá impetrada.

Dessume-se que o paciente está sendo processado pelos crimes dos artigos 214, c/c art. 224, alínea “a”, e art. 148, caput, e § 2º, todos do Código Penal.

Recebida a denúncia, o Magistrado de 1º grau decretou a prisão preventiva, ao argumento de que restou necessário garantir a ordem pública, eis que teria “colocado a sociedade em desassossego” e causou clamor público, além de ser necessária para garantir a aplicação da lei penal, eis que o “réu evadiu-se tão logo decretada sua prisão temporária”. (fl. 38/39).

Inconformado, impetrou HC junto ao Tribunal a quo, não logrando sucesso, visto a ordem ter sido denegada.

No writ, aduz que sofre constrangimento ilegal em virtude de o decreto da prisão preventiva não apresentar suficiente fundamentação, por não demonstrar os motivos ensejadores e mantenedores da cautelar segregatória.

Ressalta que não há falar-se em necessidade de garantia da aplicação da lei penal, eis que o paciente apresentou-se espontaneamente, conforme comprova o boletim de ocorrência nº 5412/2005, elaborado pela Autoridade Policial do 77º Distrito Policial de São Paulo, juntada aos autos.

Acrescenta que não existe no processo original prova material da prática do fato alegado coito anal, conforme demonstra o parecer médico-legal.

Requer, em sede de liminar, a concessão da ordem e, no mérito, sua confirmação, para que se revogue a prisão preventiva decretada e permita-se ao paciente responder à ação penal em liberdade.

É o relatório.

Decido.

Não há previsão legal para a concessão de liminar em sede de remédio heróico, sendo criação da jurisprudência para casos em que a urgência, necessidade e relevância da medida se mostrem evidenciadas de forma indiscutível na própria impetração e nos elementos de prova que a acompanham.

In casu, não restou demonstrado, com a nitidez imprimida na inicial, o constrangimento ilegal, requerendo exame mais detalhado dos elementos de convicção carreados aos autos, o que ocorrerá por ocasião do julgamento definitivo, impondo-se observar que a decisão atacada, neste juízo preliminar, não se revela violadora de direito do paciente.

Nota-se que o Magistrado de primeiro grau, ao decidir pela incontinenti segregação, concluiu pela gravidade da situação perpetrada, onde há fortes indícios de envolvimento do paciente no delito.

Veja-se a fundamentação do decreto de prisão preventiva (fl. 38):

“Decreto a prisão preventiva do denunciado como forma de garantir a ordem pública. Há indícios suficientes de autoria atribuíveis ao denunciado, da prática do crime de atentado violento ao pudor descrito na denúncia. A materialidade delitiva está evidenciada pelo Exame de Corpo de Delito.

O crime praticado em tese pelo réu elenca-se entre aqueles que colocam a sociedade em desassossego. É delito que causou clamor público pela forma como foi praticado, despertando indignação na comunidade.

A custódia cautelar também se faz necessária como garantia da aplicação da lei penal, eis que o réu evadiu-se tão logo decretada sua prisão temporária.

Em garantia da ordem pública e da aplicação da lei penal, decreto a prisão preventiva do denunciado GABY BOULOS, amparado no art. 312 do Código de Processo Penal.

Expeça-se mandado de prisão.”

À análise dos documentos acostados aos autos pelo próprio impetrante, antes mesmo de ser informado pela autoridade apontada como coatora, não se me afiguram presentes os pressupostos autorizativos da medida urgente requerida Com efeito, o pedido formulado em sede de cognição sumária não pode ser deferido por este Relator quando a pretensão implica a antecipação da prestação jurisdicional de mérito.

A liminar em sede de habeas corpus, de competência originária de Tribunal, como qualquer outra medida cautelar, deve restringir-se à garantia da eficácia da decisão final a ser proferida pelo órgão competente para o julgamento, quando se fizerem presentes, a plausibilidade jurídica do pedido e o risco de lesão grave ou de difícil reparação.

Ressalta-se que o paciente não se encarregou de comprovar, estreme de dúvidas, a necessidade do provimento cautelar, limitando-se a demonstrar a necessidade da antecipação da tutela.

Para a concessão da liminar, necessárias as presenças do fumus boni júris e do periculum in mora, observáveis de plano, da análise da impetração, o que não se observa in casu.

Vejo que o constrangimento ilegal não restou caracterizado com nitidez, como suscitado na inicial.

Posto isso, INDEFIRO a liminar.

Oficie-se à autoridade apontada como coatora, para que, no prazo de 10 (dez) dias, preste as informações que entender pertinentes.

Após, encaminhem-se os autos ao Ministério Público Federal, pelo prazo de 02 (dois) dias, para parecer.

Publique-se. Intimem-se.

Brasília (DF), 23 de novembro de 2005.

MINISTRO PAULO MEDINA

Relator

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!