Receita para crescer

Juízes precisam observar regras e não ceder a clamores

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11 de dezembro de 2005, 11h13

Carlos Ari Sundfeld - por SpaccaSpacca" data-GUID="carlos_ari_sundfeld.png">É justo reservar R$ 6 bilhões para garantir investimentos em Parcerias Público Privadas, enquanto milhares de credores do Estado esperam há anos na fila dos precatórios? “O país quer ou não quer crescer? Se quiser, precisa dar garantias aos empreendedores”, afirma um dos maiores especialistas em Direito Administrativo do país, Carlos Ari Sundfeld, em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico.

O assunto é espinhoso e divide-se em duas questões pontuais. Na política, discute-se se o Estado deve reservar seu patrimônio para pagar precatórios ou dar garantias a quem está disposto a investir no crescimento do país. Do ponto de vista jurídico, o fundo de garantia das PPPs é defensável: “Não há nenhuma inconstitucionalidade no sistema que cria credores com privilégios, porque se trata de oferecer garantia para quem não é obrigado a fazer investimento”, diz o especialista.

Sundfeld pode falar de PPPs de cátedra. Depois de participar da elaboração da primeira lei de Parcerias Público Privadas do país, a de Minas Gerais, ele atuou na feitura da lei nacional das PPPs. Mas esta é apenas uma das suas especialidades. Ele deixou suas impressões digitais também na lei de Processo Administrativo de São Paulo e na Lei do Pregão Eletrônico, que promoveu uma revolução no processo de licitações no país.

Nesta entrevista, ele comenta o desempenho dos Poderes Públicos diante de questões do Direito Administrativo. Para ele o Executivo, apesar de todas as pressões, tem sido um fiel cumpridor dos contratos que assinou. Já o Legislativo, geralmente interfere para desviar as agências reguladoras de suas metas. No Judiciário ele faz uma distinção entre as instâncias. Enquanto os tribunais têm uma visão mais complexa do problema, levando em conta em suas decisões o interesse coletivo com todas as implicações, os juízes de primeiro grau são mais sensíveis aos interesses particulares do cidadão de classe média. “São vítimas do mundo simplório em que vivem”, diz.

Carlos Ari Sundfeld formou-se em Direito pela PUC-SP há 23 anos e é professor de Direito Administrativo na FGV — Fundação Getúlio Vargas. Foi procurador em São Paulo durante 20 anos e chegou a cursar um ano da faculdade de jornalismo da USP antes de prestar vestibular para Direito. “O Direito não foi minha escolha, porque eu queria ser jornalista. Só me inscrevi neste curso porque a ECA [Escola de Comunicações e Artes] tinha a fama de ser uma escola muito fraca em termos de exigência. Eu nunca escolhi ser advogado mas, um pouco por incompetência, acabei ficando nessa profissão”. Ele é bem-humorado, como se vê.

Participaram da entrevista os jornalistas Maurício Cardoso, Priscyla Costa e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Como se define o conceito de serviço público?

Sundfeld — O conceito nasce de uma situação muito isolada: no século XIX, quando o Estado precisava garantir investidores nas ferrovias. Para isso, a justificativa foi dizer “afinal, eles estão vindo aqui para prestar um serviço público”. Com o avanço da tecnologia, outros serviços surgiram e foram incorporados no mesmo conceito, como telecomunicações e energia elétrica. A partir da década de 40, 50 é que se vê a explosão do conceito, porque o Estado passa chamar de serviço público tudo aquilo que tem algum tipo de interesse geral. Então, a idéia acaba se perdendo do seu sentido original com a justificativa genérica de que é serviço público tudo aquilo que é de interesse geral ou de atividade econômica de interesse geral.

ConJur — Quando a situação começa a mudar?

Sundfeld — No final da década de 80. No caso brasileiro, a partir do início de 90, o Estado entra em crise fiscal e começa o processo de venda das empresas estatais. Primeiro vendeu as que não precisavam de regulação, ou que precisavam de baixa regulação, ou ainda com regulação já existente (siderurgia, petroquímica, Vale do Rio Doce). No segundo momento, a crise atinge as empresas com monopólio natural, como as de telefonia ou de energia elétrica. Nesta ocasião, ocorre uma transformação muito importante no modo de ação do Estado e no próprio conceito de serviço público. Primeiro, porque o Estado deixa de ser prestador; em segundo lugar, porque passa a ser regulador; terceiro, porque não quer dar a terceiros o monopólio das empresas. Ou seja, força o máximo de abertura, de concorrência e de competição.

ConJur — Como isso funciona na prática?

Sundfeld — O setor de telecomunicações é o maior exemplo dessa nova era dos serviços públicos concorrenciais. São regulados para garantir os objetivos mais tradicionais como universalização, justiça social, evitar o abuso do poder econômico, mas também para realizar objetivo novo, que é criar mercados para competição, obrigar os concorrentes a ceder sua rede às novas empresas. Então, é nesse momento que estamos. Em que o Estado já não é mais um grande empresário, nem um grande prestador de serviço público. O grande prestador é o particular concessionário e essa concessão está sujeita a regulação. Então, esses são os grandes elementos da nova era: concessão e regulação.


ConJur — O modelo tem dado bons resultados?

Sundfeld — As experiências são variadas e muito diferentes. É difícil fazer uma avaliação geral muito detalhada. O setor de telecomunicações no Brasil, por exemplo, teve uma reforma muito bem sucedida, porque conseguimos em três anos retirar o déficit de serviços, a rede se expandiu e todo mundo foi atendido. Hoje sobram linhas de telefone. Um exemplo menos feliz é o setor de energia elétrica, porque a reforma para abertura de competição parcial não foi bem sucedida e houve muitas razões para isso. Uma das coisas que se constatou é que o modelo de maior abertura é um modelo cheio de problemas, não só no Brasil, mas também na Europa e nos Estados Unidos. No caso brasileiro, tivemos outros imprevistos como a crise de falta de água, conhecida como “apagão”.

ConJur — Que também não tinha nada a ver com o processo de desestatização.

Sundfeld — Não. Houve uma crítica genérica de que o processo de desestatização não foi capaz de captar recurso suficiente para gerar investimento para atender a situações de crise como esta. A crítica é a de que ele não foi bem sucedido como o caso das Telecom. A verdade é que nós temos um sistema muito dependente da energia hidráulica. Então, essa foi uma crise circunstancial, mas, de qualquer modo, teve um impacto no processo de privatização. Outro ponto tem a ver com as características do setor. Na energia elétrica a maturação dos investimentos é muito longa. Começa a se investir hoje na criação de uma usina hidrelétrica, para produzir energia depois de seis anos. Já os investimentos em telecomunicações têm maturação mais rápida: se eu fizer uma rede, daqui a três meses está funcionando. O segundo elemento é que em telecomunicações houve uma desestatização total. No mesmo dia, o governo [Fernando Henrique Cardoso] vendeu todas as empresas estatais. O país amanheceu estatizado e dormiu completamente privatizado. Não sobrou nada. No setor de energia elétrica não foi assim. Agora a bola da vez é saneamento básico, que é completamente diferente de todo o resto.

ConJur — Então o setor de saneamento básico deve ter os mesmos problemas da energia elétrica?

Sundfeld — Sim, a maturação é tão longa quanto, além de ser muito difícil implantar competição. Ninguém imagina empresas concorrendo para tratar água e esgoto. Certamente, saneamento básico é um setor em que as idéias mais tradicionais de serviço público ainda são aplicadas.

ConJur — E o gasto também é maior.

Sundfeld — O buraco é maior. O déficit é muito maior. O déficit em distribuição de água não é tão grande, mas o déficit em tratamento de esgoto é brutal. O novo desafio está na coleta e tratamento de esgoto.

ConJur — Tem o problema também do poder concedente, porque há um certo litígio.

Sundfeld — O que aconteceu foi que o sistema de saneamento foi montado no inicio da década de 70 pelo governo federal quando estávamos no chamado Planasa — Plano Nacional de Saneamento. O Planasa foi concebido da seguinte maneira: os municípios, que eram entendidos até então como os titulares do serviço de saneamento, fariam concessões para empresas estaduais. As estatais receberiam financiamentos do governo federal para investirem na expansão dos serviços, especialmente de distribuição de água. Aí, o que aconteceu? A partir da década de 80, com o fim do Banco Nacional de Habitação, a crise da caderneta de poupança, o fim da correção monetária, houve uma diminuição na capacidade da União em financiar as empresas estaduais e o ritmo de investimento desabou.

ConJur — O país passou da fase de concessão e regulação e agora entra na fase da Parceria Público Privada. A PPP não deixa de ser uma espécie de concessão, em certos aspectos mais definidos? Como se encaixa a Parceria Público Privada neste contexto?

Sundfeld — A concessão bem tradicional era o contrato por meio do qual o estado entregava um serviço para ser explorado por particular e este se comprometia a fazê-lo, recebendo a tarifa diretamente do usuário. Essa é a concessão comum. É uma lógica que funciona, por exemplo, em telecomunicações. Há também a concessão patrocinada, que é uma outra espécie de PPP. Neste caso, o poder público dá um subsídio ao usuário para permitir que ele tenha um serviço que não tem condições de pagar integralmente. Essa é uma modalidade de concessão PPP para ser aplicada nos mesmos serviços que são objetos de concessões: estradas e ferrovias deficitárias.

ConJur — Há também a concessão administrativa.

Sunfeld — Sim. Nesse caso, o investidor cria uma infra-estrutura para que seja explorada em um prazo longo. Essa lógica econômica pode ser aplicada aos serviços que não têm usuários, como por exemplo, o presídio. O Estado pode perfeitamente fazer um contrato com uma empresa que se dispõe a investir para comprar um terreno, fazer um projeto, construir fisicamente o presídio, instalar equipamento de segurança, treinar pessoal, fazer com esse pessoal coloque em operação o presídio para receber os presos que o Estado determina que sejam colocados lá. É isso que a lei chama de concessão administrativa.


ConJur — Há segurança jurídica suficiente no Brasil para uma empresa confiar que vai investir milhões na construção de um presídio e que esse contrato não será desrespeitado ao longo de 20 anos?

Sundfeld — O que a lei de PPP fez foi criar novas modalidades de contrato. Ela determinou que “esses contratos se submetem à lei de concessão com algumas mudanças”. Quando fez isso, havia uma grande preocupação com a segurança jurídica, porque a lei de concessões é uma lei de 1995. Ao longo desses dez anos, em situações de muito conflito e muita dificuldade, vem sendo construída a jurisprudência sobre a aplicação da lei.

ConJur — Sempre há casos como o do governador do Paraná, Roberto Requião, não é?

Sundfeld — Exatamente. Casos como esses são muito importantes para o amadurecimento da lei de concessões. A verdade é que esta lei conseguiu passar por todos esses maremotos e hoje oferece uma grande estabilidade. Mas há outro problema que a aplicação da lei de concessões não podia resolver: na concessão comum, o fato de o usuário ser o devedor é uma proteção para o concessionário. Quando se trata de uma concessão administrativa ou de uma concessão patrocinada, o devedor é o Estado. Então, a concessão seria muito frágil se não houvesse um instrumento de garantia do crédito. A questão central para dar segurança ao investidor foi criar um sistema de garantia. É isso que a Lei 11.079/94, que é a lei federal de PPP, procurou criar — um sistema de garantia para as concessões federais.

ConJur — Tem o fundo garantidor, como no caso da União, no qual são destinados R$ 6 bilhões. É isso?

Sundfeld — É, inicialmente.

ConJur — Mas aí o governo coloca R$ 6 bilhões para garantir futuros investimentos, no lugar de pagar quem já teve a dívida reconhecida pela Justiça, no caso dos precatórios. Como que é a gente equaciona isso?

Sundfeld — Pois é. Tem uma discussão política e uma discussão jurídica. A discussão política é: o Estado deve destinar o seu patrimônio para pagar seus precatórios? Ou deve a União criar um fundo que possa servir de garantia aos investidores, para melhorar os serviços de saúde, estrada, ferrovia? A questão jurídica é mais quente: discute-se se a criação de um sistema que dá privilégio aos credores é inconstitucional. Os que acreditam na inconstitucionalidade alegam que o artigo 100 da Constituição Federal criou um sistema especial de precatório. Assim, a criação de um sistema separado seria incompatível com a regra contida na Carta.

ConJur — Qual sua opinião?

Sundfeld — Não há nenhuma inconstitucionalidade no sistema que cria credores com privilégios. Em primeiro lugar, porque se trata de oferecer garantia para quem não é obrigado a fazer investimento. O país quer ou não quer crescer? Se quiser, precisa dar garantia. É isso, simples assim. Então, dizer que a União não pode dar garantia, que o sistema todo de proteção de créditos tem de ter a execução prevista no artigo 100 da Constituição me parece exagerado.

ConJur — A razão sempre é a incompetência do Estado para pagar?

Sundfeld — É incompetência e no fundo, no caso brasileiro, é incapacidade financeira mesmo. Temos uma crise fiscal. Não é só má vontade.

ConJur — E quanto às tarifas? Nesse caso, se aplica o Código de Defesa do Consumidor?

Sundfeld — Pois é. A aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor ao serviço público tem sido muito discutida. Em princípio, o entendimento é o de que o CDC se aplica ao serviço público.

ConJur — Como o senhor vê a reação do Judiciário?

Sundfeld — O entendimento está dividido em instâncias: o juiz de primeiro grau é sempre muito sensível às teses dos consumidores de classe média, invocando princípios genéricos como a dignidade da pessoa humana ou a livre iniciativa. Então, é razoavelmente simples obter liminares para não pagar ou para impedir o corte de serviço. Já os tribunais tentam preservar o equilíbrio. Mas, no geral, o Judiciário vem amadurecendo.

ConJur — Essa imprudência judicial acontece porque o juiz está mais próximo da causa do problema do que as instâncias superiores ou porque dá mais ibope decidir assim?

Sundfeld — Eu acho que é por varias razões. O efeito de mídia é um efeito que muitos juízes buscam. A outra razão é por imprudência pura e simples, isto é, por incapacidade de entender que aquela situação não pode ser olhada individualmente, pois faz parte de um contexto amplo. O maior exemplo são as liminares que envolvem a área de saúde: o juiz olha o caso e se sente muito tentado a resolver a situação, porque parece que aquilo está ao seu alcance e não tem efeito negativo. Eu salvo a dona Maria que está precisando de um remédio, que o Estado não lhe dá. Só que, evidentemente, quando se soma a quantidade de recursos necessários para isso, acaba se desviando recursos que o Estado investiria em outra coisa. Os juízes são espécies de vítimas do mundo simplório que vivem. É o mundo da ação individual, da ação proposta como um conflito binário isolado. E ele acaba sendo um administrador de Justiça no sentido mais tradicional. O juiz muitas vezes tende a ver a Justiça como uma espécie de graça que o senhor ou rei distribuía por benevolência. Ele dispensava a graça àqueles que o procuravam, àqueles que o sensibilizavam. O juiz tende a se comportar assim. Isso é um pouco inevitável tendo em vista o modo como ele exerce a função.


ConJur — A questão da quebra de contrato, o senhor também encaixaria nesta mesma situação?

Sundfeld — A quebra de contrato tem ocorrido no Brasil surpreendentemente pouco. Apesar das dificuldades, dos problemas fiscais, cambiais, o governo tem procurado cumprir os contratos. Agora, no âmbito judicial, este tipo de contrato envolve prestador, o Estado concorrente, cliente, consumidor, e surgem os choques de interesses. Em algumas situações, esses choques acabam em ações judiciais. Os juízes dão as liminares e essas decisões desequilibram o contrato. Eles querem fazer uma Justiça mais substancial e a legislação ajudou essa tendência. Veio o Código de Defesa do Consumidor, o novo Código Civil. Isso faz inclusive com que se tenha muita pressão pela adoção da arbitragem nos contratos de concessão, contratos de PPP e tudo o mais.

ConJur — A arbitragem tem funcionado muito bem na esfera privada. Querem promovê-la também para a esfera pública?

Sundfeld — Houve um debate muito intenso sobre isso nos últimos anos. A lei de PPP acabou resolvendo a dúvida, porque diz que cabe arbitragem nos contratos de PPP desde que esteja expressamente previsto.

ConJur — Como o senhor vê a discussão que está no Supremo Tribunal Federal sobre o monopólio dos Correios?

Sundfeld — Os Correios têm razão do ponto de vista jurídico e o Supremo deve reconhecer isso. Agora, o reconhecimento judicial talvez esteja se referindo a um modelo antigo. O que acontece é que o sistema postal hoje é um balde cheio de furos. E a ECT com os dez dedos está querendo tapar os milhares de furos. É muito difícil ter um monopólio de toda a entrega de correspondência. O Brasil sofre, na verdade, é com a falta de uma nova lei postal. No final do seu governo, o presidente Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso uma nova lei postal que, na minha opinião, não era um bom projeto porque estava efetivamente ligado à idéia de empresa estatal. Mas, de qualquer forma, teria permitido uma melhor discussão do monopólio. A solução é o Estado compor um sistema misto. Afinal, a ECT é a maior empresa estatal do país, com o maior número de funcionários, que faz a integração nacional. É difícil substituir esta estrutura.

ConJur — E quanto à lei da radiodifusão?

Sundfeld — Antes da lei de telecomunicações, a radiodifusão era assim: o Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 tratava em conjunto os serviços da radiodifusão e telecomunicação. Quando fizemos a Lei Geral de Telecomunicações, o que se imaginava era uma reforma em duas etapas. A primeira etapa era reformar o setor de telecomunicações num sentido estrito e deixar para uma segunda etapa os serviços de comunicação eletrônica de massa, isso é, rádio, TV aberta e TV a cabo.

ConJur — Nesta época não se pensava em internet?

Sundfeld — Na verdade, se pensava. Mas é que a internet tem um status diferente, que é de um serviço de valor adicionado, não sujeito à regulação.

ConJur — As agências reguladoras têm cumprido seu papel?

Sundfeld — Algumas melhor, outras pior, por razões circunstanciais. A Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] vem cumprindo seu papel de maneira bastante razoável, com algumas dificuldades de relacionamento com o Poder Executivo. Olhando o resultado final, o que se constata é a estabilidade do setor e atração de investimentos. Na Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica], as coisas foram mais difíceis porque houve muita intervenção. Mesmo assim, a agência desenvolveu procedimentos interessantes. De modo geral, um aspecto positivo, de qualidade notável, inclusive de importância jurídica, são as audiências de consultas públicas. Além disso, a deliberação dessas agências é sempre muito transparente. Então, avalio como muito positiva na visão geral a implantação das agências. A história ainda está começando e ainda falta muito para acabar. Se o exemplo a ser seguido for o dos Estados Unidos, não se pode esquecer que eles têm cem anos de experiência de agência reguladora.

ConJur — Enquanto no Brasil são 20 anos de democracia e 10 de agências reguladoras…

Sundfeld — Nem 10 anos. A primeira foi criada no final de 1997. Ainda assim, até agora o saldo é muito positivo. Além disso, temos um problema criado pela nossa democracia que é a intervenção perniciosa dos parlamentares. É um horror. Eles impõem nomeações, interferem em decisões. O ataque de um parlamentar provoca muito mais estragos do que o de um burocrata de uma agência reguladora.

ConJur — Esse nível de interferência é maior da parte do Legislativo ou do Judiciário?

Sundfeld — Do Legislativo, sem dúvida, porque o que o Judiciário faz é tomar decisões muito pontuais. Não tem efeito tão destruidor. O parlamentar entra para desviar o objetivo da agência, tenta impedir que se racionalizem as políticas públicas.


ConJur — Como a globalização tem influenciado o Direito Administrativo?

Sundfeld — Este assunto é muito interessante. O mundo jurídico brasileiro ainda não percebeu a globalização. Quando converso com meus colegas administrativistas argentinos, percebo que eles já raciocinam em termos globais. O que isso quer dizer? Eles estão preocupados em saber quais são as regras que vão vigorar no Mercosul para as compras governamentais e já traçam o impacto. O Brasil está muito voltado para si mesmo. Ainda não abrimos suficientemente as mentes. Na verdade, o que ocorre é o seguinte: já estamos sofrendo um processo de internacionalização do nosso Direito. O Direito Administrativo brasileiro, por exemplo, se modificou muito nos últimos 10 anos para absorver modelos sobre serviço público. Talvez nós não tenhamos percebido, mas parte do nosso Direito já está globalizado.

ConJur — Como se faz a integração dos sistemas jurídicos de diferentes países num processo de integração regional, como o da União Européia?

Sundfeld — Um processo de integração é muito complicado e gera concorrência jurídica. Em algum momento, um país vai registrar um novo fármaco e pode escolher onde irá fazer isso. Se obtiver o registro na Inglaterra ou na Itália, você passa a ter na União Européia. Só que os sistemas de registro são nacionais. E aí começa a contar a questão da eficiência governamental, porque evidentemente as empresas procuram o menor custo. Eventualmente pode começar a ocorrer problemas de mau funcionamento ou do funcionamento desviado do sistema de administração pública em alguns países componentes da União. Essa é uma questão interessante para o Brasil. Como é que ele deve organizar a sua administração pública para permitir a queda das barreiras existentes? Se a administração pública não se preparar, o que vai acontecer é que vamos perder mercado e afastar a capacidade de absorver investimento.

ConJur — O Brasil mal consegue organizar administrativamente os seus estados e além disso temos um alto grau de corrupção. Vamos pegar o exemplo do registro de um novo medicamento: se houver corrupção na administração brasileira vai gerar efeitos para todo o Mercosul. Isso não dá um pouco de medo?

Sundfeld — É verdade. Se não conseguimos controlar a situação nacionalmente, como é que a gente vai conseguir se integrar a outros mercados de uma forma segura? É um grande desafio. É preciso uma reforma administrativa. Uma das coisas que parece fundamental é o seguinte: identificar qual é o espaço burocrático indispensável do Estado. Tem muita coisa na atividade administrativa que pode ser resolvida por particulares. A administração pública não precisa fazer tudo sozinha. Por exemplo, no Judiciário: por quê as execuções judiciais precisam ser feitas tendo funcionários do Poder Judiciário como os protagonistas de todas as ações materiais, com tanta burocracia? Ocorre o mesmo na administração pública. Muita coisa é feita de forma ineficiente e arcaica. Se começar a admitir que precisa contratar mais e informatizar o sistema, provavelmente o trabalho vai melhorar.

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