Reforma processual

A uniformização de jurisprudência nos Juizados Especiais

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2 de dezembro de 2005, 13h40

O Ministério da Justiça encaminhou ao Congresso Nacional projetos de lei visando reformar a legislação infraconstitucional, especificamente, o Código de Processo Civil e a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, nesta incluindo uma Seção (XIII-A) ao Capítulo II, para disciplinar a uniformização da jurisprudência dos Juizados Especiais dos Estados (o texto omite os Juizados Especiais do Distrito Federal), evidenciando-se a intenção de impingir aos sistemas recursais estaduais as regras do artigo 14, da Lei n° 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal.

O projeto referente à matéria dos Juizados, como redigido, vai de encontro ao propalado propósito do Ministério da Justiça de contribuir com os poderes Legislativo e Judiciário para alcançar o grande objetivo de tornar a Justiça mais célere, moderna, eficiente e acessível à população.

Antes de analisar a inconveniente proposta, gostaria de fazer uma digressão para rememorar que tanto o legislador da Lei 7.244/84, como o constituinte de 1988 e o legislador da Lei 9.099/95, acolhendo o ideal de uma plêiade da estirpe de João Geraldo Piquet Carneiro, Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco, Caetano Lagrasta Neto e tantas outras notáveis personalidades do nosso mundo jurídico, propugnaram por um tipo de Justiça que viesse socorrer os hipossuficientes, a população mais humilde, enfim, os desprovidos de condições para suportar os custos de uma demanda e a demora para a sua solução. As leis ordinárias, inovando radicalmente o sistema tradicional, estabeleceram um tratamento judicial ajustado para as pequenas causas, removendo todos os problemas e obstáculos há muito identificados no processo convencional e que constituíam causas atentatórias ao acesso pleno à Justiça, ao rendimento e ao modo de atuação do Poder Judiciário.

Entre as inúmeras medidas concebidas para se construir um novo e eficiente modelo de procedimento judicial, destacou-se a racionalização do sistema recursal ao se instituir apenas um recurso contra a sentença (além do recurso sui generis dos embargos de declaração). Buscou-se, também valorizar as decisões dos juízes de segundo grau integrantes das Turmas Recursais, dando definitividade aos seus julgados, tudo em homenagem aos princípios que norteiam os Juizados, principalmente os da simplicidade e da celeridade.

Induvidosamente, o legislador, ao regrar o procedimento do microssistema, optou por transformar a jurisdição dos Estados e do Distrito Federal no centro de gravitação dos processos: eles teriam início e fim no círculo restrito dos Juizados. No dirimir dos conflitos, se não houvesse solução pelas vias conciliativas ou através do juízo arbitral, as impugnações das sentenças emitidas ao término da fase contenciosa seriam resolvidas pelas Turmas Recursais dos próprios Juizados e das suas decisões não caberiam recursos aos tribunais locais ou ao Superior Tribunal de Justiça, sendo recorríveis apenas as decisões que ferissem a Constituição Federal e que desafiariam Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal.

Esse modelo deu certo. A lei pegou. Os Juizados, como vêm funcionando, nada obstante a falta de recursos materiais e humanos para a sua manutenção e desenvolvimento, representam a maior revolução experimentada pelo Poder Judiciário brasileiro. O incontestável sucesso alcançado por essa nova modalidade de prestação de justiça, acelerou o processo de criação dos Juizados Especiais Federais e está explicando a fome reformista de tantos quantos pretendem ampliar as suas competências e que têm a falsa impressão de que, com esses encaminhamentos, serão definitivamente resolvidos todos os problemas do Judiciário.

Já tivemos oportunidade de advertir que, de forma desmedida, estão intentando, através de inúmeros projetos que tramitam no Congresso Nacional, inchar o rol de competência da justiça especializada, com alterações, não só da competência em razão do valor da causa, majorando-o para cem ou duzentos salários mínimos, como em razão da matéria. Há também inúmeras propostas para se admitir pessoas jurídicas de direito público, como autores ou réus, até então excluídas do sistema (exclusão absoluta), como as demais pessoas jurídicas, sociedades em geral, empresas públicas, associações, fundações, etc., na condição de autores (exclusão relativa).

Os nossos legisladores não podem acolher essas sugestões, sob pena de concorrerem para a derrocada dos Juizados que entrarão em verdadeiro colapso em decorrência do grande número de novas ações que serão propostas e da conseqüente sobrecarga de trabalho.

Devem rejeitar, igualmente, esse projeto que trata da uniformização de jurisprudência no sistema recursal dos Juizados estaduais. Com ele cria-se um recurso contra os pronunciamentos das Turmas Recursais, ressuscitando-se, de uma forma pior e mais insensata , a proposição, outrora rejeitada, de se estabelecer na sistemática recursal os embargos de divergência ou recurso de divergência, que era menos gravoso já que decidido por um órgão julgador de grau superior, mas do mesmo Estado.


Anota-se que no projeto da Lei 9.099/95 previa-se, além do recurso inominado ou apelação, o recurso de divergência, estabelecendo o artigo 47 que “a lei local poderá instituir recurso de divergência desse julgamento ao Tribunal de Alçada, ou ao Tribunal de Justiça, sem efeito suspensivo, cabível quando houver divergência com a jurisprudência do próprio Tribunal ou de outra turma de Juízes, ou quando o valor do pedido julgado improcedente ou da condenação for superior a vinte salários mínimos”.

Esse artigo 47 em boa hora foi vetado, compreendendo-se, felizmente, a necessidade de se evitar um maior número de recursos, para satisfazer um dos objetivos do microssistema, qual seja, a obtenção, com a maior celeridade possível, da decisão definitiva da demanda. A proposta do legislador pertinente a esse tema mostrava-se incoerente com a disposição e o ânimo geral de se conceber uma maior agilidade processual no tramitar das causas nos Juizados. Não ocorrendo o veto, sem dúvida, a decisão final de qualquer questão sujeita àquele recurso iria se delongar como se delongam os julgamentos nos Tribunais, já abarrotados com o geométrico aumento de recursos oriundos da justiça comum.

A uniformização de jurisprudência que se propõe, antes de se constituir em incidente de julgamento no segundo grau, que é a verdadeira natureza do instituto, configura um recurso que objetiva fazer às vezes do Recurso Especial posto que formulado depois de se ter operado o pronunciamento da Turma Recursal (e não antes ou durante o julgamento do recurso como ocorre no sistema recursal da justiça comum) e endereçado ao Superior Tribunal de Justiça: a) quando a divergência se verificar entre Turmas Recursais de Estados diferentes; b) quando a decisão proferida contrariar súmula ou jurisprudência dominante daquela Corte Superior; c) quando a decisão das Turmas de Uniformização do mesmo Estado estiver em contrariedade com súmula ou jurisprudência do STJ, e d) quando Turmas Recursais de diferentes Estados derem à lei federal interpretações divergentes.

A olho desarmado se percebe a inconstitucionalidade desse projeto que agride, de forma manifesta e qualificada, a Constituição Federal.

Nos termos do artigo 105, III, da Carta Magna, o Superior Tribunal de Justiça tem competência para julgar, em recurso especial, tão somente “as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios…”. Cumpre lembrar que as Turmas Recursais não são Tribunais, mas órgãos de segundo grau de jurisdição, última instância das causas submetidas aos Juizados.

O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 203 estabelecendo que “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”, seguramente porque as Turmas Recursais não estão inseridas na previsão constitucional que se reporta, apenas, aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal.

O incidente da uniformização representa, sem dúvida, medida louvável de prevenção de decisões contraditórias e é aceitável, e até desejado, se idealizado como instrumento para dirimir divergências internas das Turmas Recursais, visando à manutenção da unidade da jurisprudência local. Embora provocasse um retardamento na solução definitiva das causas, pela cisão dos julgamentos, essa demora seria insignificante se comparada àquela motivada pela interposição de recursos ao STJ, como expresso no projeto.

Por outra parte, contraria o bom senso impedir uma turma estadual de interpretar livremente matéria objeto de jurisprudência de turma de outro Estado.

Suponhamos que a 3ª Turma Recursal Mista de Mato Grosso do Sul dê uma interpretação sobre direito ambiental diversa da interpretação externada pela 2ª Turma Recursal Cível do Rio Grande do Sul e que essa divergência emerge de um ou dois julgados desse órgão, não se encontrando, portanto, sedimentada na sua jurisprudência. Pelo indigitado projeto, tal ocorrência bastaria para justificar a interposição do recurso de uniformização, mesmo que a 1ª Turma Cível do Rio Grande do Sul tenha inteligência idêntica à da 3ª Turma de Mato Grosso do Sul (hipótese em que não tenha havido uniformização naquele Estado). E isso porque o parágrafo 3° do artigo 50-A do projeto prevê que “Quando as turmas de diferentes Estados derem a lei federal interpretações divergentes, ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência”. Ora, é natural que nesses Estados, pelas suas características e singularidades, não se conciliam os entendimentos a respeito daquele ramo do direito, e isso basta para desculpar a divergência.


O Ministro Sydney Sanches (in Uniformização da Jurisprudência, pp. 31-32, Ed. RT –1975) escreve com proverbial clareza que “a divergência na interpretação de uma norma jurídica por tribunais distintos não justifica a instauração do incidente de uniformização em qualquer deles. A uniformização de que trata o artigo 476 e ss. é da jurisprudência de um mesmo tribunal. Nem teria sentido que um tribunal estadual se preocupasse em uniformizar a jurisprudência de um outro tribunal do mesmo ou de outro Estado”.

A uniformização, tal como concebida no projeto – instrumento impugnativo de decisões de órgãos recursais, instala uma superfetação no sistema recursal dos Juizados de clamorosa nocividade sobre a almejada celeridade processual.

A matéria pertinente à uniformização de jurisprudência dos Juizados Especiais estaduais deve ser regulamentada por lei local!

O instituto, como visto acima, é um incidente de julgamento; instituído como recurso perverte-se a sua finalidade, posto que recurso se presta a combater decisões errôneas e não a consertar divergência jurisprudencial.

A Constituição Federal é clara ao dispor que compete aos Estados legislar concorrentemente com a União sobre “criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas“ (artigo 24, X); se se entender que “juizado de pequenas causas” não se identifica com os “juizados especiais” (artigo 98, I) como muitos, equivocadamente, sustentam, invoca-se o inciso XI do mesmo artigo que prevê a competência concorrente dos Estados para legislar sobre “procedimentos em matéria processual”. Nos termos da mesma Constituição, compete privativamente aos tribunais dispor sobre o “funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais” (artigo 96, I, a) e a Lei 9.099/95 estabelece que “Lei Estadual disporá sobre o Sistema de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, sua organização, composição e competência” (artigo 93).

O artigo 93 da Lei 9.099/95 tem sustentação nas disposições constitucionais que versam sobre a competência legislativa concorrente dos Estados.

À exceção dos princípios gerais, das regras gerais, que informam os Juizados e que tratam da sua provisão por Juizes togados ou togados e leigos, da conciliação, do julgamento e da execução, do procedimento oral e sumaríssimo, da transação e da turmas recursais composta por juízes de primeiro grau (artigo 98, I, da CF), e daquelas constantes da Lei 9.099, os Estados têm o poder jurídico de legislar sobre as demais normas não consideradas gerais, ou sejam, as normas específicas, complementares ou suplementares.

O Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho (in “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, Vol. I, p. 195/196, Ed. 1990- Saraiva), escreve que “Não é fácil conceituar ‘ normas gerais’, pelo ângulo positivo. Pode-se afirmar, e corretamente, que ‘ normas gerais’ são princípios, bases, diretrizes que hão de presidir todo um subsistema jurídico. Sempre haverá, no entanto, em face de casos concretos, dúvida até onde a norma será efetivamente geral, a partir de onde ela estará particularizando. Mais fácil é determinar o que sejam ‘ normas gerais’, pelo ângulo negativo. Quer dizer, indicar os caracteres de uma norma que não é ‘ geral’ ; é conseqüentemente, específica, particularizante, complementar. Realmente são particularizantes as normas que visem a adaptar princípios, bases, diretrizes a “necessidades e peculiaridades regionais” , como está na parte final do artigo 24, § 3°” (da CF).

Constituiria intolerável agressão à autonomia dos Estados-membros (que têm competência concorrente para legislar sobre as matérias especificadas no artigo 24 da CF), se lhes impusesse vedação ao direito de exercer suas atividades normativas, editando leis visando suplementar as normas gerais para atender às suas peculiaridades, mesmo porque “no âmbito da legislação concorrente, a competência da União, limitar-se-á a estabelecer normas gerais” (artigo 24 § 1°).

A legislação de Mato Grosso do Sul fez introduzir na Lei 1.071/90, que trata da criação e funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito do Poder Judiciário do Estado, disposições sobre o incidente de uniformização de jurisprudência, criando um órgão específico para “processar e julgar os incidentes de uniformização de jurisprudência, suscitados pelas Turmas Recursais Mistas ou pelas partes, quando a divergência a respeito da interpretação do direito ocorrer entre aquelas, fazendo editar a respectiva súmula” e para “sumular a jurisprudência uniforme das Turmas e deliberar sobre a alteração e o cancelamento da súmula” (artigo 101b, I, b e II).

Os Estados que ainda não contam com a uniformização no procedimento recursal dos seus Juizados, poderiam assim proceder, suprindo a ausência de legislação a respeito, posto que, não sendo consideradas normas gerais, as regras que disciplinam o instituto, viriam estabelecer um procedimento ajustado às suas condições, necessidades e peculiaridades.

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