Reflexão sobre responsabilidade do juiz em aplicar a lei
1 de dezembro de 2005, 10h01
Na clássica divisão de poder, Montesquieu buscou uma organização estatal que garantisse, sem comprometer sua funcionalidade, o pleno exercício da liberdade individual, consistente, a seu ver, em fazer tudo o que a lei permitia, e de não fazer nada a que a lei não obrigue.
Sua principal conclusão foi a de que a tirania e o despotismo surgem quando não há uma nítida divisão das funções estatais. Assim não há liberdade política duradoura se os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não forem outorgados cada qual a um órgão estatal distinto.
A Constituição Federal de 1988, mantendo o modelo adotado em todas as constituições republicanas, fixou em seu art. 2º, a independência e harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. É no Parlamento que as diversas correntes políticas se encontram, em que todo o povo é efetivamente representado. Por isso, o congresso é naturalmente vocacionado para a atividade legislativa.
Formalmente, iguais e independentes entre si. A realidade, porém, é outra. Há evidente predominância do Poder Executivo. Sem medo de errar, procede uma observação: é tanto mais predominante quanto maior a distinção econômico-social das pessoas. O Poder Legislativo, nesse contexto, também projeta a desigualdade. E, para concretizá-la e garanti-la, são elaboradas leis. Tantas vezes ratificam, consolidam a distinção.
O Direito, entretanto, não se esgota na lei. O Direito é sistema de princípios (valores); definem, orientam a vida jurídica (inter-relação de condutas). A lei, nem sempre, traduz, projeta esse comando. Não raro, a lei busca impedir, ou, pelo menos, retardar a eficácia do princípio. Nem sempre o concretiza.
O Direito não se confunde com a lei. A lei deve ser expressão do Direito. Historicamente, nem sempre o é. A lei, muitas vezes, resulta de prevalência de interesses de grupos, na tramitação legislativa. Apesar disso, a Constituição determina: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa alguma senão em virtude de lei”.
Aparentemente, a lei (sentido material) seria o ápice da pirâmide jurídica. Nada acima dela! Nada contra ela! A Constituição, entretanto, registra também voltar-se para “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social…” (Preâmbulo).
Ainda que não o proclamasse, assim cumpria ser. Não se pode desprezar o patrimônio político da humanidade! A lei precisa ajustar-se ao princípio. Em havendo divergência, urge prevalecer a orientação axiológica. O Direito volta-se para realizar valores. O Direito é o trânsito para concretizar o justo.
O Judiciário, visto como Poder, não se subordina ao Executivo ou ao Legislativo. Não é servil, no sentido de aplicar a lei, como alguém que cumpre uma ordem (nesse caso, não seria Poder). Impõe-se-lhe interpretar a lei conforme o Direito. Adotar posição crítica, tomando como parâmetro os princípios e a realidade social. A lei, tantas vezes, se desatualiza, para não dizer carente de eficácia, desde a sua edição.
O juiz é o grande crítico da lei; seu compromisso é com o Direito! Não pode ater-se ao positivismo ortodoxo. O Direito não é simples forma! O magistrado tem compromisso com a justiça, no sentido de analisar a lei e constatar se, em lugar de tratar igualmente os homens, mantém a desigualdade de classes. O juiz precisa tomar consciência de que sua sentença deve repousar em visão ontológica.
Tantas vezes, a lei se desatualiza, ou é inadequada para conferir o equilíbrio do conteúdo da relação jurídica. Quando isso acontece, afeta a eficácia.
Cumpre, então, ao juiz, gerar a solução alternativa. Explique-se: criar a solução adequada para o caso concreto. A lei deixará de ser expressão do Direito. Aplicá-la será injustiça. Impõe-se gerar a norma justa (proporcionalidade reclamada). O juiz precisa tomar consciência de seu papel político; integrante de Poder. A lei é meio. O fim é o Direito.
O Judiciário precisa rever a idéia de normas da Constituição não auto-aplicáveis, dependentes de regulamentação. Na falta de lei específica, invoquem-se os princípios. A solução do caso concreto virá naturalmente. Para homenagear os positivistas, registre-se a viabilidade (posta em lei) de recorrer-se também à analogia e aos princípios gerais do Direito.
O juiz precisa tomar consciência de que a efetiva igualdade de todos perante a lei é um mito. A realidade comprova: a isonomia não se realiza às inteiras. Os órgãos formais de controle da criminalidade, de modo geral, alcançam pessoas social, econômica e politicamente desprotegidas. Só elas são presas pelas malhas da justiça penal!
A solução alternativa rompe o conservadorismo acomodado; enseja o tratamento jurídico correto. Confere, sem dúvida, eficácia à vigência da norma jurídica.
A norma alternativa não é aventura, opinião pessoal do magistrado, discordar por discordar. Resulta da apreensão de conquistas históricas, acima de interesses subalternos. Projeta orientação reclamada pelo Direito. Concreção da Justiça!
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