Sem irregularidades

Leia voto de Ayres Britto ao rejeitar alegações de Dirceu

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1 de dezembro de 2005, 19h02

Antes de a Câmara aprovar a cassação do deputado José Dirceu (PT-SP), na madrugada desta quinta-feira (30/11), o Supremo Tribunal Federal mandou que o Conselho de Ética suprimisse do relatório o depoimento da testemunha de acusação Kátia Rabello. Por 6 a 5, o STF entendeu que houve cerceamento de defesa porque a ordem de inquirição foi invertida: a última palavra tem de ser sempre da defesa.

O voto do relator, ministro Carlos Ayres Britto, ficou vencido. Ele foi acompanhado pelos ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Carlos Velloso e Gilmar Mendes.

Britto rejeitou não só a alegação de que foi invertida a ordem de inquirição como todas as outras irregularidades apontadas pelos advogados de defesa de Dirceu, José Luís de Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua.

Leia a íntegra do voto do ministro

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 25.647-8 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. CARLOS BRITTO

IMPETRANTE(S) : JOSÉ DIRCEU DE OLIVEIRA E SILVA

ADVOGADO(A/S) : JOSÉ LUIS OLIVEIRA LIMA E OUTRO(A/S)

IMPETRADO(A/S) : CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

IMPETRADO(A/S) : COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE REDAÇÃO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

IMPETRADO(A/S) : PRESIDÊNCIA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

IMPETRADO(A/S) : MESA DIRETORA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO (Relator)

Cuida-se de mandado de segurança, impetrado pelo Deputado Federal José Dirceu, contra atos imputados aos seguintes órgãos da Câmara dos Deputados Federais: a) Conselho de Ética e Decoro Parlamentar; b) Comissão de Constituição e Justiça e de Redação; c) Mesa Diretora; d) Presidência. Mandado pelo qual o impetrante sustenta que numerosas irregularidades foram cometidas no curso do processo de cassação de mandato contra ele instaurado (nº 04/05). O que violaria o seu direito líquido e certo a um devido processo legal.

2. Pois bem, o primeiro vício apontado na inicial consiste na aprovação, pelo Conselho de Ética, de parecer normativo que dá pela “impossibilidade de retirada pelo representante, da respectiva representação e de encerramento do processo instaurado”. Aprovação que o demandante entende ofensiva das normas regimentais versantes sobre a matéria, dado que o autor da proposição, Deputado Ricardo Izar, foi quem presidiu a respectiva reunião. Não fosse isso, a decisão do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, que acolheu o referido parecer e indeferiu a retirada da representação contra o impetrante, violaria o § 2º do art. 55 da Constituição Federal, pois limitaria a autonomia dos partidos políticos para formular representações, ou delas desistir.

3. O segundo vício formal que se indica na impetração diz respeito à prorrogação de prazo para conclusão do processo de cassação do impetrante. Isto porque seria direito líquido e certo do representado a conclusão de seu processo dentro do prazo “peremptório” da Resolução nº 25/2001 (90 dias). Não sendo possível, assim, qualquer dilação desse limite temporal. Além do mais, ainda que lícita essa prorrogação, careceria ela de fundamentação quanto à sua necessidade.

4. Por um terceiro aspecto o processo disciplinar incorreria em defeito de forma, ainda segundo alegação do autor da presente ação constitucional. Vício que decorreria da “inversão da oitiva das testemunhas”, porquanto aquelas arroladas pela defesa foram ouvidas antes das testemunhas de acusação. O que ofenderia as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

5. Por último, o impetrante se queixa de que foram usadas em seu processo provas obtidas por meios ilícitos. Isto porque, segundo ele, informações bancárias sigilosas foram citadas na inquirição de testemunhas, além de expressamente consignadas no parecer do Relator. Informações que seriam de posse da CPMI dos Correios e que teriam sido transferidas ao Conselho de Ética sem qualquer requerimento formal. Donde pedir a extinção do procedimento disciplinar, com o seu conseqüente arquivamento. Subsidiariamente, postula a declaração da nulidade assim do procedimento como da aprovação do parecer.

6. Prossigo neste retrospecto para dizer que, requisitadas prévias informações, prestaram-nas os Presidentes da Mesa da Câmara dos Deputados e do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, assim como da Comissão de Constituição e Justiça da mesma Casa Legislativa. Nelas, informações, a CCJ esclareceu os trâmites que foram observados nas análises dos recursos manejados pelo impetrante. Já os insignes Presidentes Aldo Rebelo e Ricardo Izar, estes se deram à incumbência de rebater, uma por uma, as teses jurídicas da petição de segurança.

7. Averbo, neste passo, que a relevância dos temas e a natureza do pleito que se contém neste writ, com sua inescondível repercussão no seio das relações entre os Poderes Judiciário e Legislativo, me levam a submeter o pedido acautelatório ao crivo deste egrégio Plenário. O que faço com base no inciso IV do artigo 21 do RI/STF e na jurisprudência da Corte – MS 21.564, Rel. Min. Octavio Gallotti; MS 22.864, Rel. Min. Sydney Sanches; MS 25.579, Rel. p/ acórdão Min. Joaquim Barbosa e MS 23.047; Rel. Min Sepúlveda Pertence, este último aresto assim ementado:


“(…)

II. Mandado de Segurança: pedido de liminar:

possibilidade se sua submissão ao Plenário pelo relator, atendendo a relevância da matéria e a gravidade das conseqüências possíveis da decisão”.

8. É o relatório.

9. Consoante relatado, o pedido cautelar que se contém neste Mandado de Segurança apóia-se em múltiplos fundamentos, todos eles referentes a vícios formais no curso do processo de cassação do Deputado Federal José Dirceu.

10. Pois bem, a primeira irregularidade apontada pelo autor consistiria na aprovação, pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, de um dado parecer da Assessoria técnico parlamentar da Câmara dos Deputados. Parecer jurídico, esse, que deu pela impossibilidade de desistência da representação formulada contra o impetrante. Fato que, ao ver do acionante, violou o art. 43 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, bem assim o § 1º do art. 4º do Regulamento do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Isto porque todas essas disposições normativas internas impedem que o autor de matéria em debate presida a respectiva sessão de votação. O que não foi observado pelo Presidente da Comissão em tela, Deputado Ricardo Izar, pois, no caso, a discussão do parecer jurídico se dera no curso de sessão presidida por ele mesmo, Deputado Ricardo Izar.

11. Já me debruçando sobre tais irresignações do impetrante, penso não lhe assistir razão. A lógica da proibição que se veicula pelos diplomas normativos invocados reside em que o autor de uma proposição, ou, então, o relator de uma determinada matéria, é pessoa diretamente interessada na respectiva aprovação. Daí que não possa presidir, com imparcialidade, a respectiva sessão de debate e julgamento.

Ora, no caso, o Deputado Ricardo Izar nem foi o autor do parecer jurídico afinal aprovado, nem promoveu a respectiva defesa. Menos ainda foi o relator do feito. É o que se vê das informações de fls. 792 e das próprias notas taquigráficas da sessão em causa, litteris:

“1. Não procede a afirmação de que o parecer normativo aprovado pelo Conselho na reunião do último dia 20 de setembro fosse de autoria deste Presidente. Em verdade, o parecer submetido à votação no Conselho tinha por subscritoras duas Consultoras Legislativas da Casa, que elaboraram o trabalho a pedido do Conselho, após veiculação na imprensa, na véspera, de notícias sobre a disposição do ex-Deputado Roberto Jefferson de retirar a representação…”.

“O SR. PRESIDENTE (Deputado Ricardo Izar) … Nós estamos sabendo, pela imprensa, que há uma possibilidade muito grande de o PTB ingressar com um pedido aqui no Conselho para a retirada dos processos do Deputado José Dirceu e Sandro Mabel. Eu me apressei em pedir um parecer a essas assessorias, que foi entregue aos Srs.

Deputados. Eu gostaria de lê-lo agora. Posteriormente, indico o Deputado Nelson Trad para vir até aqui a mesa e ser o Relator dessa matéria agora.

Na realidade, nós não nos estamos antecipando a um requerimento, a um pedido. Como verificamos que o nosso Regimento é omisso, há necessidade de termos uma norma neste Conselho de Ética.

Imaginem os senhores se, no meio de um processo, alguém pede a retirada, e, suponhamos, dentro desse processo já encontramos algumas irregularidades. Então, nós estamos nos baseando no que existe na Justiça, porque, quando alguém entra com uma ação privada na Justiça, ela posteriormente se transforma em ação pública. E a pessoa que apresentou esse processo não pode mais retirá-lo.

Então, pedi esse parecer, que será lido. O nobre Deputado Nelson Trad vai relatar, e eu gostaria de ouvir a opinião dos Srs. Deputados…”.

12. Pelo visto, o Presidente do Conselho de Ética teve em mira, basicamente, dar ciência aos seus pares de notícias divulgadas pela imprensa, acerca de possíveis retiradas de representações para abertura de processo disciplinar. Razão por que foi solicitado parecer jurídico sobre o assunto. E foi esse parecer que restou colocado em votação, para que se tornasse norma interna sobre o tema. É dizer: votou-se o parecer da assessoria técnica legislativa, e não proposição do Presidente mesmo.

13. Acresce que esse documento opinativo poderia, ou não, coincidir com o posicionamento pessoal da Presidência; sabido que os integrantes do sistema de Consultoria e Assessoramento da Câmara dos Deputados detêm expressa garantia de independência funcional, não estando vinculados ao entendimento pessoal desse ou daquele parlamentar (art. 13 da Resolução nº 48/931). Tanto é assim, reitere-se, que as notas taquigráficas da sessão de 20.09.05 (fls. 497/515) dão conta de que o Deputado Ricardo Izar se houve com isenta postura de magistrado, na condução dos trabalhos processuais em foco.

14. A segunda causa de pedir já se traduz em objeção à própria conclusão do parecer. Que foi pela “impossibilidade de retirada pelo representante, da respectiva representação e de encerramento do processo instaurado”. Isto porque, sob a ótica dos acionantes, “a retirada da representação é (…) constitucionalmente assegurada” aos partidos políticos, pois, eles, partidos políticos, são representantes de toda a sociedade e do próprio Parlamento. Mais ainda, sustenta: assim como podem os partidos dar início a procedimento de cassação de mandato (CF, § 2º do art. 55), também eles têm o poder de disposição sobre a representação já manifestada. Pensar de modo contrário — prossegue o autor — violaria a autonomia constitucional dos partidos políticos.


15. Também aqui, penso juridicamente desamparado o impetrante. É que a habilitação de que desfrutam os partidos políticos para provocar a abertura dos processos da espécie me parece uma viagem sem volta. Uma vez formalizada e aceita a representação, esta se autonomiza perante o representante. Ganha impulso próprio, à semelhança da Ação Direta de Inconstitucionalidade, da ação popular e da ação penal pública (mesmo na modalidade de “ação penal pública condicionada à representação”, desde que já se tenha o oferecimento da denúncia). Tudo por efeito da valiosidade intrínseca dos bens jurídicos que tais ações visam a tutelar, de sorte a se constituírem em matéria de ordem pública.

16. Noutro modo de dizer as coisas, a Constituição Federal habilita, sim, o partido político a sair em defesa do decoro parlamentar (§ 2º do art. 55). Isto, porém, na lógica acepção de que as agremiações partidárias é que se põem a serviço desse valor ético, e não o contrário.

Até porque normas outras de natureza igualmente constitucional, tendo por objeto a regulação dos grêmios partidários, são normas de conteúdo moral. Casos típicos da obrigação de fidelidade partidária, prestação de contas e proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros (§ 1º e incisos II e III do art. 17).

E nem é preciso enfatizar que a quebra do decoro parlamentar conspurca não apenas a honra do parlamentar mesmo e do seu eventual partido, como, e sobretudo, o conceito social de todo o Parlamento. Revelando-se, então, como perigoso elemento de perturbação da ordem pública, pela automática associação mental que se faz entre essa ordem pública e o prestígio das instituições republicanas de proa.

17. Por outro aspecto, e ao contrário do que afirma o impetrante, os partidos políticos não representam o Congresso Nacional. São representados nele. É como fala a Constituição de 1988, pelo seu artigo 55, §§ 2º e 3º, assim como pelo inciso VIII do seu artigo 103. Tampouco representam a sociedade por inteiro, visto que partido é, por definição, uma parcela de opinião pública. Pedaço, facção ou segmento ideológico, no espectro maior daquilo que a Magna Carta chama de “pluralismo político” (inciso V do art. 1º).

18. Parece-me robustecer esta diretriz interpretativa a norma que se veicula pelo § 4º do art. 55 da Constituição Republicana, segundo a qual “A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os parágrafos 2º e 3º”. É dizer: se a abertura do processo disciplinar susta os efeitos da renúncia do parlamentar processado, é porque a Magna Lei deseja, quer a continuidade do processo. Valendo o raciocínio para a agremiação partidária que possibilitou, com a sua representação, a abertura desse processo mesmo. Visto que o partido político está a serviço da preservação do decoro parlamentar, insistase, e não o decoro parlamentar a serviço do partido. Menos ainda na passiva condição de refém ou joguete de eventuais tratativas inter-partidárias, permito-me falar.

19. Melhor sorte não ampara o terceiro fundamento; qual seja, a alegação de se constituir em direito líquido e certo do impetrante ver o seu processo concluído no peremptório prazo de 90 dias. Assim afirmo, porque, primeiro, esse lapso nonagesimal não foi ultrapassado pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados. É que as fls.80 dos autos comprovam que o processo em causa foi aberto em 10 de agosto de 2005 e teve o seu relatório final aprovado em 04 de novembro subseqüente (fls. 1327). Dentro, portanto, do lapso regimental dos 90 dias; ou, por outras palavras, 4 dias antes de exaurida a noventena (§ 1º do art. 16 do Código de Ética e Decoro Parlamentar, combinadamente com o parágrafo único do art. 1º da Resolução nº 25, de 10 de outubro de 2001)2. Restando claro que esse prazo diz respeito à duração do processo no exclusivo âmbito do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. A incorporar, penso, as fases de “instrução probatória” e de aprovação final do relatório, com a particularidade de que esse relatório final não tem caráter de decisão sancionatória (ver artigos de 11 a 15 do mesmo Código, em combinação com os §§ 2º e 3º do art. 55 da Constituição Federal).

20. Em segundo lugar, o prazo em questão veio a ser prorrogado, por medida de precaução e a pedido do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Conselho que requereu, em 31 de outubro de 2005, a dilação do prazo inicial por até 45 dias (fls. 1215/1255). E o fato é que tal prorrogação, mesmo tendo sido aprovada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, se revelou desnecessária. Dado que — já foi dito — o relatório final do processo disciplinar, no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, resultou aprovado em 08 de novembro deste fluente ano de 20053.


21. Esse fato do não-uso de um dia sequer do prazo de prorrogação torna superada qualquer discussão acerca da tese autoral de que tal prorrogação ocorreu por efeito de autorização veiculada, não pelo Código de Ética e Decoro Parlamentar, porém, sim, pelo Regulamento desse Código. Diploma regulamentar, esse, que o acionante entende carecedor de força normativa primária.

22. Analiso o quarto fundamento da inicial.

Fundamento que se traduz em suposta nulidade do processo, por inversão da ordem de oitiva das testemunhas. Afirmando o impetrante, então, que, mesmo nos processos da espécie, a ordem de inquirição das testemunhas deve começar pelas de acusação e terminar com a ouvida daquelas arroladas pela defesa. Juízo que ele, demandante, extrai diretamente das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

23. A tese, ainda uma vez, se me afigura descabida para o caso dos autos. É que a pretendida ordem de precedência na inquirição das testemunhas pressupõe o poder instrutório de imperativa convocação das mesmas. Manu militari ou debaixo de vara. Coercitivamente, então. Que é um tipo de poder juridicamente reconhecido aos magistrados em geral e às comissões parlamentares de inquérito em particular. O que não sucede com os Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar, tão-somente habilitados a expedir convites àquelas pessoas que se disponham a atuar enquanto “testemunhas de defesa”, ou, ao contrário, na condição de “testemunhas de acusação” (locuções que ponho entre aspas pelo fato de o Código de Ética e Decoro Parlamentar deixar de utilizá-las assim literalmente).

24. Queremos dizer, com isso, que, em rigor, são as testemunhas que marcam os dias em que se dispõem a colaborar com o processo disciplinar dos parlamentares. Com a faculdade, inclusive, de substituirem o comparecimento pessoal pela entrega de depoimentos escritos. O que se deu, aliás, com o atual ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos (fls. 277). O que já significa pôr em realce a peculiar ontologia do processo em tela, e, dentro dele, o reduzido poder de que dispõe o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar para a concepção e manejo de um ortodoxo cronograma de oitiva de testemunhas. Sem falar que a própria inquirição desses “colaboradores” não se faz apenas pelo agente que preside ao processo, ou por intermédio dele, mas também pelo relator e demais membros do órgão processante, diretamente4.

25. Por outro aspecto, tenho que uma eventual inversão da ordem de ouvida das testemunhas não é de molde a imprestabilizar um processo de natureza político-disciplinar, como é o caso do processo em foco (à face das características de que ele se reveste, conforme anotado). Quanto mais se não se prova que tal inversão redundou em efetivo prejuízo para o parlamentar processado. Vale dizer, se da oitiva, por último, das testemunhas de acusação não resulta inovação gravosa (objetivamente gravosa, entenda-se) do quadro factual que presidiu a audiência das testemunhas de defesa. É a velha e sempre nova parêmia do “pas de nullité sans grief”, que até mesmo os nossos códigos de processo penal e eleitoral abrigam. Confira-se, respectivamente:

Art. 563 do CPP: “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”.

Art. 219 do CE: “Na aplicação da lei eleitoral, o Juiz atenderá sempre aos fins e resultados a que ela se dirige, abstendo-se de pronunciar nulidades sem demonstração de prejuízo”.

26. De se ver, ainda, que, no processo em tela, quem falou por derradeiro foi o próprio acionante. Com toda chance, por conseguinte, de contrabater tudo aquilo que, declarado pela testemunha Kátia Rabello, o impetrante entendesse lhe fosse processualmente danoso.

27. Há mais o que dizer, porquanto, terminada a oitiva de todas as testemunhas, e presente a específica alegação de prejuízo pela inversão da referida ordem de precedência, o Presidente do Conselho de Ética ensejou à defesa falar sobre os depoimentos colhidos. E que fez a defesa? Restringiu-se a postular a reinquirição das suas próprias testemunhas. Ainda assim, momentos antes do término do prazo que lhe fora concedido (último dia, mais precisamente).

28. Neste lanço, calha transcrever ilustrativo tópico do relatório final do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, subscrito pelo deputado Júlio Delgado, verbis:

“(…) entendemos que o processo de perda de mandato de deputado obedece a regras próprias, as do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Casa, tendo nas regras de processo civil ou penal fontes apenas subsidiárias do procedimento. O fato, por exemplo, de o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar não ter poder de autoridade judicial e não dispor de meios para conduzir coercitivamente as testemunhas arroladas pelas partes nos processos é suficiente para demonstrar que a regra consagrada no art. 401 do Código de Processo Penal—– no sentido de serem ouvidas, antes da defesa, as testemunhas de acusação — não se compatibiliza com os poderes do Conselho nem com o tipo de procedimento que se desenvolve nessa seara, o qual deve estar concluído em prazo certo, não podendo ficar completamente à mercê da disponibilidade, para oitiva em primeiro lugar, das testemunhas de acusação.

Ainda assim, no caso específico ocorrido no presente processo, considerando a possibilidade de que a defesa pudesse ter se sentido efetivamente prejudicada, de algum modo, pelo depoimento prestado pela Sra. Kátia Rabello, arrolada pelo m representante, após a oitiva de suas cinco testemunhas, este Relator solicitou ao Presidente a abertura de prazo para que a defesa pudesse se manifestar, por escrito inclusive, sobre o conteúdo do testemunho, o que afinal não foi feito, tendo-se optado por requerer, momentos antes do encerramento da instrução, nova oitiva de depoimentos, indeferida pela presidência.

É de se observar que o conteúdo do depoimento prestado pela testemunha do Representante não poderia, efetivamente, ser contraditado por nenhuma das testemunhas da defesa, que declararam perante o Conselho, quando ouvidas, não ter conhecimento dos empréstimos feitos pelo Banco Rural ao Partido dos Trabalhadores e à empresa SMP&B, nem da eventual participação do Deputado José Dirceu nessas transações, principal objeto do depoimento prestado pela Sra. Kátia Rabello no processo. Não tendo havido contestação, na oportunidade aberta à defesa, de nenhum dos pontos abordados, concluímos não ter havido também nenhum prejuízo efetivo decorrente do depoimento, ou da ordem em que foi tomado no processo. Aliás, a ausência de prejuízo pela oportunidade que teve a defesa de reagir ficou evidente não só ao se abrir o prazo para manifestação por escrito, mas também pelo fato de o Representado ter deposto perante o Conselho em último lugar, tendo tido, portanto, prévio conhecimento e toda a liberdade de corroborar ou contraditar cada afirmação feita pela testemunha Kátia Rabello.”


29. Enfim, mesmo no âmbito mais ortodoxo do processo penal (que não é o caso), a esse propalado tema da ordem de ouvida de testemunhas bem se presta a citada parêmia do “pas de nullité sans grief”, conforme se lê desta segura lição do ministro Marco Aurélio (HC 75.345-1/MS):

“…. TESTEMUNHAS — DEFESA E ACUSAÇÃO — INVERSÃO.

Se de um lado é certo que as testemunhas da acusação devem ser ouvidas antes das da defesa, de outro não menos correto é que a nulidade decorrente da inobservância desta ordem pressupõe prejuízo. Havendo as testemunhas da defesa declarado desconhecer o acusado, descabe falar em prejuízo…”

30. Examino, agora, o último fundamento em que se louva a petição de segurança. Que fundamento? O de que teria havido utilização de provas ilicitamente transferidas da “CPMI dos Correios”. Provas, essas, consistentes em dados bancários acobertados pela cláusula do que se convencionou chamar de “sigilo bancário”.

31. Aqui, vejo-me forçado a anotar que, no tocante à interdição do uso de tais dados na elaboração do relatório final do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, cuida-se de pretensão já acolhida no bojo do MS-25618, que tem por relator o insigne ministro Eros Grau. Do que decorreu, como amplamente sabido, nova confecção e releitura desse relatório, desta feita sem o aproveitamento daqueles dados.

32. De outra banda, não identifico a utilização de dados igualmente sigilosos na inquirição da testemunha Kátia Rabello. É que, bem vistas as coisas, os questionamentos a ela propostos apoiaram-se em elementos informativos de domínio público. Elementos informativos que, além de amplamente divulgados pela mídia, se caracterizaram pela sua nítida generalidade, conforme dá conta o seguinte trecho da própria inicial:

“O SR. DEPUTADO JÚLIO DELGADO — Em 1998, o Banco Rural fez um empréstimo na mesma linha, no mesmo sentido em Minas Gerais, foi também o Banco que foi utilizado para empréstimo por parte de uma campanha do PSDB, foram dadas como garantia contas publicitárias. E esse empréstimo, também não sendo pago, na ordem de 9 milhões — estou falando porque a gente acompanha aqui com membros, nós temos companheiros aqui no Conselho que também são da CPMI, se for o caso, me corrijam — e quase 5 anos depois — eu sei que V. As. Não estava na direção do Banco naquele momento — foi quitado esse débito pelo Sr. Marcos Valério na ordem de 2 milhões. No momento em que se repete uma operação, quase 7 anos depois. 6 anos depois, nas mesmas características, com a mesma forma, com as mesmas garantias, sabendo-se da probabilidade do não pagamento, conforme ocorreu até quando surgiram as denúncias não houve uma surpresa — e aí V. As. Já estava na direção do Banco — que essa transação repetida, falível, que trouxe prejuízo ao Banco Rural, pudesse ser repetida nas mesmas características e o Banco aprovar com total isenção um fato que tinha a interveniência de empresa de publicidade com partido político, com campanha eleitoral? Não houve indignação e surpresa de isso ter sido repetido só com partidos diferentes?” (grifamos, fl. 61, vol. 3, doc. 2”

33. Por tudo quanto expendido, por não divisar a presença dos pressupostos autorizadores da medida cautelar requestada, indefiro a liminar.

É o meu voto.

Notas de rodapé

1 “A Consultoria e o Assessoramento revestem-se de caráter sigiloso, não expressando a produção documental necessariamente posição do órgão ou de seus integrantes, desobrigados estes, em qualquer caso, de compromisso institucional ou pessoal em razão da orientação ou da destinação dada ao trabalho pelo solicitante”.

2 Assim legendados:

Art. 16, § 1º — O prazo para deliberação do Plenário sobre os processos que concluírem pela perda do mandato, prevista no inciso IV do art. 10, não poderá exceder noventa dias.

§ único do art. 1º da Resolução 25/2001 — As normas estabelecidas no Código de Ética e Decoro Parlamentar complementam o Regimento Interno e dele passam a fazer parte integrante.

3 Eis o inteiro teor do requerimento em foco: “ Tendo ouvido previamente o Conselho, solicito a V. Exª., com fundamento no art. 22 do regimento Interno do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, seja submetido à deliberação do Plenário pedido de prorrogação, por mais 45 dias, dos prazos originalmente previstos para conclusão dos Processos de nºs 37, 38 e 40 de 2005. Apesar de tais processos já se encontrarem em fase de finalização no âmbito do Conselho, tendo inclusive tido sua instrução encerrada pelos respectivos relatores, há o risco de não conseguirmos concluir os trabalhos dentro do prazo original — até 8 de novembro — uma vez que eventuais pedidos de vista dos pareceres apresentados poderão adiar a apreciação dos mesmos para depois dessa data. Em face disso, justifica-se a preocupação do Conselho em, previamente, solicitar ao Plenário a prorrogação desses prazos, visando garantir um desfecho adequado aos processos, com apuração completa das responsabilidades de todos os envolvidos.”

4 Penso, cada vez mais, não ser por acaso o fato de a garantia do “devido processo legal” anteceder as garantias do “contraditório” e da “ampla defesa”, no corpo de dispositivos da Constituição de 1988 (incisos LIV e LV, respectivamente, do art. 5º). É que o processo jurídico somente será “devido” se amoldado à natureza mesma de certos ramos jurídicos ou de certas relações a que própria Constituição conferiu identidade. Autonomizou. Refiro-me ao Direito Penal, Direito Penal Militar, Direito Eleitoral, Direito do Trabalho, Direito Administrativo, etc. Do que decorrem as diversas categorias de processo, como o penal-militar, o trabalhista, o eleitoral, o administrativo, o processo de contas, e assim avante. A significar, então, que as garantias do contraditório e da ampla defesa hão de ser exercidas, sim, mas de acordo com a ontologia de cada processo. A trena do devido processo a medir o tamanho, a traçar os contornos do contraditório e da ampla defesa, e não o inverso.

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