País de doutores

Num país de analfabetos, quem sabe ler é chamado de doutor

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28 de agosto de 2005, 10h29

Recentemente, chamou-me a atenção à solução de determinada demanda judicial que tramitou na Corte fluminense envolvendo magistrado que pleiteava tratamento formal de doutor por parte dos funcionários do condomínio onde residia. O colega que julgou o caso negou-lhe a tutela jurídica solicitada, alegando que, embora se tratasse de um juiz digno, merecedor de todo o respeito, não poderia ostentar tal faculdade, pois doutor não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau.

Agiu corretamente o juiz sentenciante. O mestre Houaiss, em seu dicionário, ensina que doutor é “aquele que, numa universidade, foi promovido ao mais alto grau depois de haver defendido tese em alguma disciplina literária, artística ou científica”.

Na prática, entretanto, chamamos o juiz, o deputado, o delegado, o promotor, etc., mesmo sem aquela mais alta graduação universitária, de doutor. Por quê?

A lei não confere aos detentores desses cargos públicos a denominação de doutor. A linguagem técnica, recomendável até por uma questão de etiqueta, indicaria chamá-los apenas por senhor seguido da indicação do cargo, ou seja, senhor juiz, senhor deputado e assim por diante.

Semelhante costume atinge aos profissionais da saúde. Chama-se o médico de doutor, mesmo aqueles que não possuem doutorado.

A explicação para a prática em análise é facilmente encontrada. Em um país em que o analfabetismo e a pobreza atingem níveis escandalosos, criou-se o entendimento comum de que, quem consegue concluir um curso superior, qualquer que seja, torna-se doutor.

Com isso, o surgimento desordenado de faculdades privadas — as faculdades de Direito, por exemplo, são quase incontáveis —, às vezes sem o mínimo critério quanto à qualidade do ensino, nos transformará no país dos doutores. Quero deixar claro que não sou contra a democratização do ensino superior, muito pelo contrário, apenas acho que essa democratização deve ter como corolário a produção científica e não a produção de bacharéis e diplomas, com a única finalidade de alimentar a vaidade inerente a natureza humana.

Pior ainda são os doutores do capital, aqueles que ostentam o título pela força da riqueza, mesmo sem nunca terem freqüentado uma faculdade, demonstrando a arrogante supremacia do dinheiro sobre a produção do gênio humano.

Conheci grandes doutores que nunca exigiram tal titulação, se vestiam com roupas simples, seguiam rotina espartana e nunca compraram na Daslu, mas que contribuíram sobremaneira para a melhoria da sociedade.

O certo é que nos valorizamos mais a forma do que o conteúdo. Odiosa praxe inerente a um país provinciano que incorpora em um mesmo território extremos inexplicáveis. Trafegamos pela Bélgica, quando nos referimos à futilidade e bens de consumo e por Serra Leoa, país africano dos mais miseráveis, quando queremos identificar a pobreza.

Temos que ter consciência que independente do título que se pavoneia somente o produto do gênio humano é eterno. As bolsas da Daslu não resistirão à primeira festa de emergentes enquanto que as sinfonias de Mozart e Beethoven ecoarão pela eternidade.

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