Super-Leão

MPF de São Paulo move ação contra Super-Receita

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26 de agosto de 2005, 12h33

O Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou Ação Civil Pública para manter separados o INSS e a Receita Federal. A ação foi elaborada contra a Medida Provisória 258, de 21 de julho de 2005, que criou a chamada Super-Receita — Receita Federal do Brasil.

A Super-Receita transfere para a União a administração das contribuições sociais ao INSS e parte do patrimônio da Previdência Social. Na ação, os procuradores Zélia Luiza Pierdoná, Márcio da Silva Araújo e Fernanda Taubemblatt argumentam que a decisão do governo pode causar lesão ao patrimônio público, como aos cofres da Previdência Social.

Como exemplo, os procuradores citam atos dos tribunais regionais do trabalho que, inseguros, suspenderam processos de execuções das contribuições previdências. O TRT da 19ª Região (Alagoas), já suspendeu suas execuções por 60 dias.

O MPF de São Paulo pede a manutenção da arrecadação e fiscalização das contribuições para a Previdência Social e das contribuições ao INSS, manutenção das atribuições de consultoria, representação judicial e extrajudicial e a apuração da liquidez e certeza da dívida ativa do INSS, bem como a sua representação judicial e extrajudicial no âmbito da Procuradoria-Geral Federal, com atribuições junto ao INSS.

Pede também para que se assegure a preservação do acervo técnico e patrimonial do INSS e que se reconheça a nulidade de 1.200 cargos de Procurador da Fazenda Nacional e dos cargos em comissão previstos na MP-258.

Se a Justiça acatar o pedido do MPF, a liminar será válida em todo o país.

Resistência

A Super-Receita, formada pela fusão das secretarias de Receita Federal e Receita Previdenciária, começou a funcionar no dia 15 de agosto, sob protestos de funcionários da receita e contribuintes.

Um dia depois de entrar em funcionamento, a Super Receita foi suspensa por liminar em Ação Popular concedida pelo juiz Hudson Targino Gurgel, da 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro. No dia 18 de agosto, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) suspendeu a liminar A decisão foi tomada pelo presidente do Tribunal, desembargador Frederico Gueiros..

O Supremo Tribunal Federal já recebeu três Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra dispositivos da Medida Provisória que criou a Super-Receita. As ações foram ajuizadas pelo PSDB, pela Associação Nacional dos Procuradores Federais e pela Associação Nacional dos Procuradores da Previdência Social.

Leia a íntegra da ação

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DA __ VARA FEDERAL/SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO – SP

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República signatários, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, com fulcro nos arts. 127, caput e 129, III, da Constituição Federal, bem como nos dispositivos pertinentes da Lei n° 7.347/85 e Lei Complementar n° 75/93, vem, perante Vossa Excelência, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

(COM PEDIDO LIMINAR)

em face da UNIÃO (por intermédio da Secretaria da Receita do Brasil, do Ministério da Fazenda), pessoa jurídica de direito público interno, na pessoa de seu representante legal neste Estado, Procuradoria da Fazenda Nacional, com endereço na Av. Prestes Maia, 733, 18º andar, sala 1801, Centro, São Paulo, CEP 01.031.001; da própria Procuradoria da Fazenda Nacional, no endereço referido; do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal, na pessoa de seu representante legal neste Estado (Procurador-chefe), com endereço na Xavier de Toledo, nº 290, São Paulo; e da própria Procuradoria Federal, com atribuições junto ao INSS, no endereço já referido, visando manter a gestão das receitas decorrentes das contribuições para financiamento da Previdência Social e das contribuições de terceiros, no âmbito do INSS; manter as atribuições de consultoria, representação judicial e extrajudicial, e a apuração da liquidez e certeza da dívida ativa do INSS, bem como sua representação judicial e extrajudicial no âmbito da Procuradoria-Geral Federal; assegurar a preservação do acervo técnico e patrimonial atualmente empregados pela Procuradoria-Geral Federal para a sua atuação; e, reconhecer a nulidade da criação dos 1.200 cargos de Procurador da Fazenda Nacional e dos cargos em comissão das Procuradorias Seccionais previstas na Medida Provisória n.º 258/05.

1- DOS FATOS

Na data de 21 de julho de 2005 foi editada a Medida Provisória n.° 258, dispondo sobre a criação da Receita Federal do Brasil e a transferência, para a União, tanto a administração das contribuições sociais previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do § único do art. 11 da Lei nº 8.212/91, quanto de expressiva parcela do patrimônio da Previdência Social.


Com efeito, essa ampla transferência é o núcleo da mencionada MP n.º 258, conforme demonstram os seus artigos 3.º, caput, 7º, 10, 11, 14, 16, 18, 20, 21, 23, 24, 31 e 36, que também transferem para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a ampla competência da antiga Procuradoria Federal com atribuições junto ao INSS.

Essa transferência geral e a fusão dos fundos previdenciários e do patrimônio do INSS com o caixa da União são, inquestionavelmente, lesivas ao patrimônio público (da Autarquia Previdenciária) e patrimônio social do trabalhador, com reflexos imediatos na receita destinada à garantia do preceito erigido no art. 6º e 7º, XXIV da Constituição Federal, ao tempo em que violam, igualmente, o art. 167, XI e art. 195, § 2.º, da Constituição Federal.

Exemplo de que a medida provisória já vem causando prejuízos à Previdência Social são os atos dos Tribunais Regionais do Trabalho que estão suspendendo a tramitação das execuções das contribuições previdenciárias. Citamos, na presente ação, o ato do TRT da 19º Região (Alagoas) GP 110/2005, o qual suspendeu por 60 dias a tramitação das execuções das contribuições previdenciárias, sob três considerações: dúvida quanto a representação judicial da Previdência pela Procuradoria da Fazenda Nacional; precariedade de medida provisória para normatizar o tema, causando “transtorno na tramitação dos processos”; e necessidade de tempo para que a PFN “tome conhecimento dos milhares de processos de execução previdenciária”. Ressaltamos, contudo, que não foi apenas o TRT da 19ª Região que suspendeu, mas muitos Tribunais Regionais já fizeram o mesmo.

Assim, está demonstrada a urgência de medida judicial capaz de garantir a integridade do patrimônio e dos recursos da Previdência Social.

2 – DA LEGITIMIDADE PASSIVA

O ato em face do qual se insurge o Ministério Público Federal, por intermédio da presente ação, está consubstanciado na Medida Provisória n.º 258, de 21 de julho de 2.005, cujos efeitos concretos passaram a ter vigência em 15 de agosto passado, conforme disposições do art. 38, I, da citada medida provisória, conforme se pode observar no ato do Tribunal Regional do Trabalho acima comentado.

A referida espécie normativa transferiu para a União, por meio da Receita Federal do Brasil, e para a Procuradoria da Fazenda Nacional, tanto a administração das contribuições sociais previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do § único do art. 11 da Lei nº 8.212/91, quanto expressiva parcela do patrimônio da Previdência Social, o que justifica suas legitimidades passivas na presente ação.

Em relação ao INSS e a Procuradoria Federal com atribuições junto ao INSS, considerando que o pedido é para que os mencionados órgãos continuem a administrar e cobrar as referidas contribuições, também está justificada suas inclusões no pólo passivo.

3 – DA LEGIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

A Constituição Federal de 1988, ao tratar do Ministério Público, assim dispõe:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(…)

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

(…)

IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

A inspiração deste dispositivo, mesmo antes de sua existência, já se manifestara na Lei 7.347 de 24.07.1985, a qual trouxe ao ordenamento jurídico a chamada ação civil pública, para defesa dos direitos transindividuais e indivisíveis, assim entendidos os chamados direitos e interesses difusos e coletivos.

Assim, desde meados da década de 80, nota-se uma forte tendência para a ampliação das ações de tutela difusa e coletiva, em benefício da defesa de direitos sociais e dos hipossuficientes, visando à otimização da prestação jurisdicional (com a natural pacificação dos litígios decorrentes da propositura de uma única ação, processada com celeridade).

A Lei Complementar n° 75/93 que trata da organização, atribuições e do estatuto do Ministério Público da União, em seu art. 5°, incisos I e II, d, estabelece:


Art. 5°. São funções institucionais do Ministério Público da União:

I – a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis, considerados, dentre outros, os seguintes fundamentos e princípios:

(…)

II – zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos:

(…)

d) à seguridade social, à educação, à cultura e ao desporto, à ciência e à tecnologia, à comunicação social e ao meio ambiente; (grifos nosso)

III – a defesa dos seguintes bens e interesses:

(…)

b) o patrimônio público e social;

O art. 6° do mesmo diploma legal, por sua vez, preceitua:

Compete ao Ministério Público da União:

(…)

VII – promover o inquérito civil e a ação civil pública para:

a) a proteção dos direitos constitucionais;

b) a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

c) a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor;

d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos;

(…)

XII – propor ação civil coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos;

(…)

XIV – promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto:

a) ao Estado de Direito e às instituições democráticas;

(…)

c) à ordem social;

O preceito do artigo constitucional acima referido está em plena sintonia com o art. 1º, o qual define o Estado brasileiro como democrático de direito, sendo que este garante a efetividade do acesso à Justiça.

Conforme o artigo 129 da Constituição Federal acima transcrito o Ministério Público deve zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia, bem como deve promover a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social. Não há dúvidas que a medida provisória em discussão traz perdas ao patrimônio público (bens do INSS) e social (patrimônio dos trabalhadores, já que a previdência é a eles dirigida).

Dado o princípio do mais amplo acesso à Justiça, entendemos que sua efetivação somente será possível com a ampliação das tutelas coletivas.

O Ministério Público possui legitimidade para propor a presente ação civil pública, uma vez que ela versa sobre direito fundamental de segunda geração (direito social), fazendo parte do Título II da Constituição – “Dos direitos e garantias fundamentais”. O mencionado direito, além de ser direito fundamental de segunda geração, é um instrumento de garantia do fundamento do Estado brasileiro – dignidade da pessoa humana o que, por si só, já justificaria a legitimidade do Ministério Público.

Dessa forma, pretende o Ministério Público, com esta ação, assegurar a manutenção da arrecadação, da fiscalização e da gestão das receitas decorrentes das contribuições para financiamento da Previdência Social e das contribuições de terceiros, no âmbito do INSS; manter as atribuições de consultoria, representação judicial e extrajudicial, e a apuração da liquidez e certeza da dívida ativa do INSS, bem como sua representação judicial e extrajudicial no âmbito da Procuradoria-Geral Federal; e, assegurar a preservação do acervo técnico e patrimonial atualmente empregados pelo INSS e pela Procuradoria-Geral Federal para a sua atuação.

Dessa forma, por meio da presente ação visa-se assegurar que os recursos das contribuições previdenciárias permaneçam separados dos demais ingressos federais e assim, garantir a efetividade dos benefícios previdenciários dos trabalhadores e seus dependentes, não se cogitando, portanto, na ausência de legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses aqui envolvidos.

O nosso ordenamento jurídico não apenas autoriza, mas impõe ao Ministério o Público o dever de atuar em situações como a ora submetida à apreciação judicial.

4 – DA INAPLICABILIDADE DO ART. 16 DA LEI N° 7.347/85 (RESTRIÇÃO TERRITORIAL DO JULGADO).

O art. 16 da Lei nº 7.347/85 assim dispõe:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. (Redação dada pela Lei nº 9.494, de 10.9.1997)


Com a presente demanda visa-se garantir o patrimônio da Previdência Social, portanto, dos trabalhadores e seus dependentes. Assim sendo, pela repercussão do dano decorrente do desrespeito a esses direitos, não há que se aplicar, ao caso, a limitação da eficácia do provimento jurisdicional à circunscrição territorial local, na forma do dispositivo legal acima transcrito, uma vez que o Regime Geral de Previdência Social abrange os trabalhadores de todo o Brasil, bem como seus dependentes.

O referido dispositivo legal vem sendo alvo de críticas, desde a sua gênese, tanto pela impropriedade quanto pela ineficácia de seus termos, conforme se pode abstrair do estudo de autoria de Ada Pellegrini Grinover(1):

O acréscimo da expressão ‘nos limites da competência territorial do órgão prolator’ não pode ficar desvinculado da fixação da referida competência territorial, determinada pelo Código de Defesa do Consumidor no art. 93 (aplicável à Lei n° 7.347/85, por força de seu art. 21), de modo que o entendimento de que as regras do art. 93 regem todos os processos coletivos – e não apenas os voltados à defesa dos interesses individuais homogêneos: v. retro, n° 1 – leva à inarredável conclusão de que a intenção do Executivo ficou frustrada, e inócua acabou sendo a expressão. Isso porque os limites da competência territorial, nas ações coletivas, são exatamente os do art. 93 (lex specialis) e não os do Código de Processo Civil. Em conclusão: a) o art. 16 da LACP não se aplica à coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos; b) aplica-se à coisa julgada nas ações em defesa de interesses difusos e coletivos, mas o acréscimo introduzido pela medida provisória é inoperante, porquanto é a própria lei especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos, ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina o âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido, e não a competência. Esta nada mais é do que uma relação de adequação entre o processo e o juiz. Sendo o pedido amplo (erga omnes), o juiz competente o será para julgar a respeito de todo o objeto do processo; d) em conseqüência, a nova redação do dispositivo é totalmente ineficaz.

A restrição imposta pelo art. 16 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, tende a debilitar a jurisdição no processo e julgamento das ações civis públicas. Nesse sentido, revela mais uma agressão ao livre exercício das atribuições do Poder Judiciário e do Ministério Público, em flagrante atentado contra a Constituição Federal.

Pelo teor dos enunciados da Medida Provisória nº 258/05 depreende-se que ela atinge o patrimônio do INSS em todo o Brasil e, ainda, põe em risco a arrecadação das contribuições previdenciárias (art. 167, XI da CF) e, conseqüentemente poderá comprometer as aposentadorias dos trabalhadores de todo o Brasil, bem como a pensão de seus dependentes, deixando-os desprotegidos, quando, na verdade, a Previdência Social foi prevista constitucionalmente para proteger todos os trabalhadores e seus dependentes.

Dessa forma, inequívoca a repercussão, em todo o País, da prática abusiva efetivada pela Secretaria da Receita do Brasil, a reclamar por provimento judicial eficaz, de modo a preservar o patrimônio do INSS e os recursos dos trabalhadores. Nesse sentido, transcrevemos as palavras de Rodolfo de Camargo Mancuso, in “Ação Civil Pública”(2), o qual cita José Marcelo de Menezes Vigliar:

Assim, José Marcelo Menezes Vigliar indaga: ‘Se o interesse é essencialmente indivisível e o da modalidade difuso, como limitar os efeitos da coisa julgada a determinado território? Ainda: quando o dano for de proporção tal (como por exemplo o chamado dano regional, ou seja, aquele que atinge mais de uma comarca ou até mais de um Estado-membro) que vá além dos limites de uma determinada comarca (foro, já que é a isso que a medida deve estar se referindo), como se aplicaria o preceito?

Por fim, justifica-se a afastabilidade do art. 16 da LACP, no intuito de conter o ajuizamento pulverizado de diversas demandas, as quais abarrotam e emperram o Judiciário.

5 – DO DIREITO

Até a Constituição de 1988, era usual a prática da chamada parafiscalidade e paraorçamentalidade, pelo Governo Federal, em razão do vultuoso orçamento da Previdência Social, que não sendo apreciado pelo Congresso Nacional, podia ser remanejado ou desviado para outros setores da Administração sem maiores conseqüências, diferentemente do Orçamento da União.

Essa prática estava embasada no art. 62, § 1º, da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1 de 1969, que assim dispunha:

A inclusão, no orçamento anual, da despesa da receita dos órgãos da administração indireta será feita em dotações globais e não lhes prejudicará a autonomia na gestão legal dos recursos.


Ao Governo era lícito, então, dispor livremente dos fartos recursos da Previdência Social e das autarquias em geral, por simples ato, sem depender de qualquer vinculação ou previsão orçamentária chancelada pelo Congresso Nacional.

É notório que os recursos da Previdência Social, fruto das contribuições sociais dos trabalhadores, foram utilizados durante anos na construção de hidroelétricas, estradas e outras obras de grande porte, sem qualquer tipo de compensação, gerando um prejuízo que comprometeu a consecução das finalidades da previdência, como o pagamento dos benefícios devidamente atualizados.

E, justamente para impedir essa drenagem sistemática dos recursos da previdência, em despesas alheias a sua própria finalidade, a Constituição de 1988 alterando, na espécie, a liberalidade da Carta Política anterior, estatuiu para a Seguridade Social os seguintes princípios: 1. Administração autônoma, democrática e descentralizada (art. 194 VII); 2. Autonomia dos órgãos da seguridade social quanto à arrecadação, orçamento, administração e finanças (arts. 165, § 5º; 167, IV,VI e VIII, 195, § 2º.); 3. Seguridade Social pública básica, obediente aos princípios da universalidade, distributividade e eqüidade (art. 194); 4. Aposentadoria como direito fundamental (arts. 6º e 7º); 5. Custeio na forma mista, por meio de contribuições diretas (de trabalhadores e de empresas) e de transferências dos orçamentos dos entes estatais (art. 195); 6. Custeio por meio de contribuições que busquem o equilíbrio trabalho/capital (art. 195, I).

São justamente esses princípios consagrados, de proteção à Seguridade Social, que estão sendo violados pela questionada MP n.º 258, consoante denunciam os seus artigos 3º, 14, 15, 16, 18 e 36.

5.1 – As violações constitucionais ocasionadas pelas disposições do art. 3º da MP Nº 258/05

Assim dispõe o art. 3º da MP n.º 258, cuja lesividade restará comprovada:

Art. 3º. Compete a União, por meio da Receita Federal do Brasil, arrecadar, fiscalizar, administrar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do parágrafo único do art. 11 da Lei n.º 8.212/91, e das contribuições instituídas a título de substituição, bem como as demais competências correlatas e decorrentes, inclusive as relativas ao contencioso administrativo-fiscal, observado o disposto no art. 4º desta Medida Provisória”.

§ 1º. As competências previstas no caput estendem-se às contribuições devidas, por lei, a terceiros, na forma dos §§ 3º a 6º, aplicando-se em relação a essas contribuições, no que couber, as disposições desta Medida Provisória.

§ 2º. O produto da arrecadação das contribuições sociais de que trata o caput, mantido em contabilidade e controle próprios e segregados dos demais tributos e contribuições sociais, será destinado exclusivamente ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

§ 3º A Receita Federal do Brasil poderá, mediante convênio, arrecadar, fiscalizar e cobrar contribuições devidas a terceiros, mediante remuneração de três vírgula cinco por cento do montante arrecadado, salvo percentual diverso estabelecido em lei específica.

§ 4º O disposto no § 3º aplica-se, exclusivamente, às contribuições que tenham a mesma base utilizada para o cálculo das contribuições incidentes sobre a remuneração paga, devida ou creditada a segurados do Regime Geral de Previdência Social, bem como às contribuições incidentes sobre outras bases a título de substituição, ficando sujeitas aos mesmos prazos, condições, sanções e privilégios, inclusive no que se refere à cobrança judicial.

§ 5º. O exercício da competência prevista no § 3º somente poderá ser implementado na hipótese de o terceiro repassar à Receita Federal do Brasil a administração da totalidade da arrecadação de sua contribuição, ressalvado o disposto no § 6º.

§ 6º. O disposto no § 3º não se aplica às contribuições devidas a terceiros nos casos de isenção das contribuições destinadas ao Regime Geral de Previdência Social.

§ 7º. Os processos administrativos-fiscais, inclusive os relativos aos créditos já constituídos ou em fase de constituição, bem assim as guias e declarações apresentadas ao Ministério da Previdência Social ou ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, referentes às contribuições de que tratam o caput e o § 1º, serão transferidos para a Receita Federal do Brasil.

Essa transferência ampla e geral de competência do INSS para a União desvirtua a solução encontrada pela Constituição de l988 de “blindar” a Seguridade e, de forma especial a Previdência Social (art. 167, XI), e também de coibir os abusos, com a criação de espécies tributárias específicas para custeio dos benefícios previdenciários, como as contribuições sociais do art. 195 I, “a” e II , bem como a adoção de medidas administrativas e estruturais que deram autonomia, descentralização e auto-fiscalização, pela participação dos grupos interessados em sua gestão (art. 10, art. 194, parágrafo único ,VII e art. 195, § 2º, todos da CF.


A iniciativa da questionada medida provisória, especificamente o seu art. 3º, desrespeita o conteúdo da recente Emenda Constitucional nº. 20/98, que reiterou a opção do Constituinte pela independência da Seguridade Social, especialmente da Previdência Social, ao acrescentar ao art. 167 da C.F., o seguinte inciso XI:

Art. 167-São vedados:

(…)

XI- a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, “a”, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201.”

Assim, ficou reforçada a separação dos orçamentos e a vinculação dos recursos da previdência aos gastos estritamente definidos como benefícios, o que, aliás, já constava do art. 195, § 2º da CF, assim disposto:

Art. 195 (…)

§ 2º A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos. (grifo nosso)

Em Parecer Jurídico que destaca justamente esse ponto, a respeitada opinião da Doutora MIZABEL ABREU MACHADO DERZI, assim comenta:

A Constituição de 1988 distingue, na lei orçamentária, três orçamentos: o fiscal, o de investimento das empresas estatais e o da Seguridade Social. Ora, dentro do orçamento fiscal, encontram-se fixadas todas as despesas e estimadas todas as receitas de todos os órgãos e fundos da administração direta e indireta da União. Portanto, ele inclui não só o que é tributo como também as demais receitas patrimoniais e industriais e despesas correntes e de capital. Ser fiscal não é ser tributário. Ser parafiscal é apenas não integrar o orçamento fiscal da União, não ser receita própria dela, podendo não obstante ser tributo. Por isso uma reforma fiscal (ajuste amplo entre gastos e recursos financeiros do Estado) não coincide, em objeto e extensão, com uma reforma tributária. (No mesmo sentido, WAGNER BALERA. A SEGURIDADE SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988, São Paulo, Ed. RT, 1988).

Do ponto de vista estritamente jurídico-tributário, a parafiscalidade é apenas o fenômeno segundo o qual a lei da pessoa competente atribui “a titularidade” de tributo a pessoas diversas do estado, que as arrecadam em benefício das próprias finalidades. É o caso de autarquias dotadas de capacidade tributária ativa (INSS, OAB, CONFEA, CEF) ou de entidades paraestatais, pessoas de direito privado chamadas pela lei a colaborar com a administração pública como as define CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO em Natureza e Regime Jurídico das Autarquias” (Cf. GERALDO ATALIBA. Hipótese de Incidência Tributária, 4a. São Paulo, Ed. RT, 1990, p. 83). O lógico é que, tendo o Estado criado pessoas, como serviços descentralizados, evite arrecadar os recursos para depois repassá-los à pessoa beneficiada, delegando-lhes tal aptidão diretamente.

Então, consentir que a União cobre, arrecade e fiscalize as contribuições destinadas ao custeio dos órgãos de Seguridade Social, para depois repassar os recursos, pelo mecanismo das transferências, é transformar as contribuições em impostos com destinação, expressamente vedados; é invalidar o regime que a Constituição lhes atribuiu; é ferir a letra e o espírito da Carta Magna, que objetivou resguardar o caixa da Seguridade Social, em especial o da Previdência Social.

É sabido que a tese por nós sustentada, apesar da posição favorável obtida em vários Tribunais Regionais Federais, não obteve êxito junto ao Supremo Tribunal Federal. Em suas decisões relativas à contribuição social sobre o lucro e à contribuição para o FINSOCIAL, aquela Corte rejeitou o argumento da parafiscalidade necessária das contribuições de custeio da Seguridade Social. Tome-se como paradigma o RE nº.138284-8/CE:

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO.

“Ementa – Constitucional. Tributário. Contribuições sociais. Contribuições incidentes sobre o lucro das pessoas jurídicas. Lei no. 7.689, de 15.12.88.

I – Contribuições parafiscais: contribuições sociais, contribuições de intervenção e contribuições corporativas. CF, art. 149 e 195. Contribuições sociais de seguridade social. CF, arts. 149 e 195. As diversas espécies de contribuições sociais.

II – A contribuição da Lei 7.689, de 15.12.88, é uma contribuição social instituída com base no art. 195, I, da Constituição. As contribuições do art. 195, I, II, III, da Constituição, não exigem, para a sua instituição, lei complementar. Apenas a contribuição do parágrafo 4o. do mesmo art. 195 é que exige, para a sua instituição, lei complementar, dado que essa instituição deverá observar a técnica da competência residual da União (CF, art. 195, parágrafo 4o.; CF, art. 154, I). Posto estarem sujeitas à lei complementar do art. 146, III, da Constituição, porque não são impostos, não há necessidade de que a lei complementar defina o seu fato gerador, base de cálculo e contribuintes (CF, art. 146, III, “a”).

III – Adicional ao imposto de renda: classificação desarrrazoada.

IV – Irrelevância do fato de a receita integrar o orçamento fiscal da União. O que importa é que ela se destina ao financiamento da seguridade social (Lei 7.689/88, art. 1º.).

V – Inconstitucionalidade do art. 8o., da Lei 7.689/88, por ofender o princípio da irretroatividade (CF, art. 150, III, “a”) qualificado pela inexigibilidade da contribuição dentro no prazo de noventa dias da publicação da lei (CF, art. 195, parágrafo 6o.). Vigência e eficácia da lei: distinção.

VI – Recurso Extraordinário conhecido, mas improvido, declarada a inconstitucionalidade apenas do artigo 8o. da Lei 7.689, de 1988.”

Recurso Extraordinário no. 138284-8 CE

Relator: Min.Carlos Velloso

Tribunal Pleno do STF, por unanimidade

Brasília, 01 de julho de 1992

Fonte: Notas taquigráficas do STF.


Não obstante, as decisões que se firmaram no STF não significam idêntica repetição em relação à Medida Provisória nº.222/04. Queremos chamar a atenção para o fato de que os precedentes judiciais referem-se a contribuições de custeio da Seguridade Social, como PIS/PASEP; FINSOCIAL e CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO, que se destinam a custear ações integrantes da Saúde e da Assistência Social, de solidariedade difusa.

Tal como havia sido previsto por todos aqueles que conhecem a história da Previdência Social no Brasil, os desvios de recursos relativos às contribuições arrecadadas pela Receita Federal (PIS/COFINS e LUCRO) foram imediatamente registrados e se legitimaram por meio de sucessivas emendas constitucionais. Primeiro vieram aquelas que criavam os FUNDOS SOCIAIS DE EMERGÊNCIA; depois FUNDOS FISCAIS DE EMERGÊNCIA; e finalmente, as DESVINCULAÇÕES DA RECEITA DA UNIÃO.

Entretanto, as reformas previdenciárias que se seguiram e as DESVINCULAÇÕES DA RECEITA (DRUs) jamais alcançaram as contribuições de custeio direto da Previdência Social, ao contrário, procuraram proteger as contribuições sociais incidentes sobre os salários e a folha de pagamentos. A Emenda Constitucional nº. 20/88, como já referimos, dispôs:

“Art. 167-São vedados:

(omissis).

XI- a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, “a”, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201.”

Por sua vez, as Emendas Constitucionais, que desvincularam vinte por cento da receita da União, resguardaram os recursos previdenciários. Confira-se a última Emenda Constitucional nº. 42/03:

“ADCT – Art. 76. É desvinculado de órgão, fundo ou despesa, no período de 2003 a 2007, vinte por cento da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados no referido período, seus adicionais e respectivos acréscimos legais.”…..

Ora, a Medida Provisória 222/04, ao transferir o patrimônio do INSS para a União e, ao determinar que a arrecadação, a fiscalização e o lançamento das contribuições incidentes sobre os salários e a folha de pagamentos sejam atribuição do Ministério da Previdência Social, pretende converter o produto daqueles tributos em receita da União. Nesse caso, expropria o INSS das contribuições que custeiam os benefícios previdenciários, em favor de uma integração aos cofres federais, passível de futuros desvios, nos termos das autorizações contidas no art. 76 do ADCT.

Tal integração resulta claramente do art. 8º da própria MP 222. Confira-se:

“Art. 8º.- Para assegurar o cumprimento do disposto nesta Medida Provisória, fica o Poder Executivo autorizado a:

(omissis).

VI- transferir, do INSS para o Ministério da Previdência Social, os acervos técnico e patrimonial, as obrigações e direitos, seus contratos e convênios, bem como os processos e demais instrumentos em tramitação, relacionados às competências e prerrogativas a que se refere esta Medida Provisória; e

VII- remanejar, transferir ou utilizar os saldos orçamentários do Ministério da Previdência Social e do INSS para atender a despesas com estruturação e manutenção de órgãos e unidades a serem criados, transferidos ou transformados, na forma do inciso I deste artigo e do art. 2º, mantida a classificação funcional programática, bem como os subprojetos, subatividades e grupos de despesas previstos na Lei Orçamentária em vigor.”

Se o Supremo Tribunal Federal consentiu, no caso da CSL e do FINSOCIAL, que o produto arrecadado pela Receita Federal integrasse o orçamento fiscal da União para depois ser repassado à Seguridade (ver acórdão supra), ele o fez em ocasião em que os desvios ainda não estavam configurados. É verdade que eles eram esperados, considerando-se a história da Previdência em nosso País. Se questão dessa natureza jamais afetou os problemas previdenciários de outros países mais desenvolvidos (Cf. La Securité Sociale – Cour de Comptes, Journaux Officiels, Paris, set. 2004, 482 ps.), essa nunca foi a realidade nacional.

Entretanto, em face das alterações constitucionais supervenientes, em especial do art. 167, XI, e das DESVINCULAÇÕES DA RECEITA DA UNIÃO, art. 76 do ADCT, expressamente limitadas àquelas que integram o orçamento fiscal da União, aquele consentimento do STF tende a se tornar mais limitado, em defesa do patrimônio previdenciário do trabalhador.”

Assim, a Seguridade Social separada da União obedece a um primado constitucional de fortes raízes técnicas e de amadurecida reflexão por parte tanto da sociedade quanto do legislador.

O Parecer, cujo fragmento acima está transcrito, deixa claro que a separação atinge também a capacidade para, no pólo ativo da relação tributária, cobrar, exigir, arrecadar as contribuições previdenciárias, bem como representar judicial e extrajudicial, em relação às dívidas oriundas das mencionadas contribuições, ou seja, o INSS e a Procuradoria Federal, com atribuições junto ao INSS, devem ter independência em relação à, respectivamente, Receita e a Procuradoria da Fazenda.


Ressaltamos que o parecer acima foi proferido em razão da MP nº 222/04, a qual foi convertida na Lei nº 11.098/05. No entanto ele se aplica à MP nº 258/05, ainda de uma forma mais acentuada, uma vez que naquele ordenamento quem arrecadaria seria a Secretaria da Receita Previdenciária que, embora não fosse da administração descentralizada, era um órgão do Ministério da Previdência. Agora, pela MP nº 258/05, a competência passa a ser do Ministério da Fazenda, não apenas passando para a administração centralizada, como também sendo cobrada juntamente com todos os demais tributos federais, dificultando as questões específicas que regem o custeio da Previdência em relação aos benefícios.

Assim, pela Lei 11.098/05, ordenamento imediatamente anterior a MP nº 258/05, a competência para arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento, em nome do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, das contribuições sociais previstas nas alíneas “a, b, e c” do parágrafo único do art. 11 da Lei n.º 8.212/91 e das contribuições instituídas a título de substituição, foi transferida para o Ministério da Previdência Social, com a criação da Secretaria da Receita Previdenciária, colimando, justamente, o controle da gestão da Previdência Social e a incorporação das atividades vinculadas à gestão da receita previdenciária, não obstante tenha implicado na perda da autonomia financeira e administrativa do INSS, já alçado à qualidade de Agência Executiva.

Todavia, a fusão imposta pela MP n.º 258, ao estabelecer o caixa único do Tesouro Nacional, torna vulnerável a receita proveniente da arrecadação previdenciária, instituindo a possibilidade concreta de desvio da receita da Previdência Social, em flagrante desobediência ao comando constitucional que tutela a destinação dos recursos próprios à cobertura dos benefícios previdenciários, nos mesmos moldes como já vem ocorrendo com a desvinculação de 20% (Desvinculação das Receitas da União – DRU) sobre os recursos oriundos das contribuições sociais (COFINS, CSLL, CPMF).

Verifica-se, pois, que o apetite voraz do Poder Executivo, que aloca 20% (vinte por cento) dessas receitas do orçamento fiscal da União para cobertura dos encargos da dívida e construção do superávit primário, avança, temerariamente, sobre os recursos vinculados da Seguridade Social, pondo em risco o patrimônio de toda sociedade brasileira. Poder-se-ia alegar que a DRU é autorizada pela EC nº 27, e que a mencionada emenda não faz distinção entre as contribuições sociais. No entanto, mesmo que se entenda constitucional a citada emenda, ela trataria genericamente das contribuições sociais, ao passo que o enunciado do inciso XI do art. 167 da CF estabelece regra especial em relação às contribuições previdenciárias (195, I “a” e II da CF).

A obviedade da assertiva acima dispensa maiores digressões sobre o tema, evidenciado a iminente lesão ao patrimônio público, não obstante o § 2º do art. 3º da aludida medida provisória prescreva a segregação das receitas. Entretanto, esta previsão contida no mencionado é evasiva e não contempla a forma de controle e fiscalização sobre a separação dos referidos recursos, bem como sinaliza para uma redução do nível de transparência sobre o resultado da arrecadação federal destinada ao custeio da Previdência Social, ao tempo em que deixa de priorizar as questões sociais.

Assim, conclui-se que os distúrbios operacionais que ocasiona, desviando receitas e subtraindo acervo patrimonial, na forma do art. 21, Inciso I e art. 23 do citado diploma legal, põem em severo risco o direito dos trabalhadores brasileiros e seus dependentes a um sistema de aposentadorias e pensões minimamente estruturado, previsto nos arts. 6º e 7º da Constituição e, disciplinado em maiores detalhes no seu art. 201.

São diretamente confrontados, sem nenhuma dúvida, também os dispositivos constitucionais que tratam da administração do sistema previdenciário. O caráter “democrático” e, principalmente, descentralizado da gestão dos recursos empregados na consecução das finalidades desse sistema, estabelecido pelo inciso VII do parágrafo único do art. 194 da Lei Maior, não se resolve senão pela criação de pessoa jurídica distinta ou, pelo menos, de órgão especializado. A Receita Federal do Brasil criada pela medida provisória contestada, ao invés de descentralizar, simboliza uma extrema e inconstitucional opção pelo poder central, transformando a continuidade do sistema previdenciário em um favor cotidiano dos dirigentes do novo órgão, de cuja boa vontade passará a depender, inclusive, o pagamento de benefícios aos pensionistas e aos aposentados.

O dispositivo constitucional invocado se relaciona diretamente com o § 2º do art. 195 da Carta Magna, onde se assegura que às unidades governamentais envolvidas na concessão de previdência social aos brasileiros incumbe “a gestão de seus recursos”, o que definitivamente não ocorre se receita específica e inalienável do sistema previdenciário passa a ser objeto de mero repasse. De fato, podem remanescer controvérsias acerca da natureza jurídica das verbas contempladas nos incisos I, b e c, e III do art. 195 da Constituição Federal, mas não resta dúvida alguma acerca do fato de que as contribuições previstas nos incisos I, a, e II desse mesmo dispositivo são obrigatoriamente geridas separadamente e por estrutura especializada, na entrada e na saída dos recursos ali empregados, haja vista a necessidade de contribuição em relação aos direitos previdenciários (art. 201, “caput”), bem como o enunciado do art. 10 da CF, o qual assegura a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.


Não podemos sustentar que apenas os benefícios previdenciários estão no campo de interesse dos trabalhadores, mas também o seu custeio, pois é justamente o financiamento que garante o pagamento dos benefícios.

Por outro lado, não parece razoável argüir contra essa linha de raciocínio o teor do § 2º do art. 3º do instrumento legislativo atacado, o qual prevê contabilidade diferenciada para as contribuições sobre a folha e avisa que se destinam “exclusivamente ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social”. É evidente que essa é uma ressalva inútil, na medida em que só agasalhará a parcela da receita previdenciária não incluída na DRU. De fato, a incidência do art. 76 do ADCT sobre qualquer receita a desfigura liminarmente, uma vez que o dispositivo trata justamente de permitir a desvinculação da receita “de órgão, fundo ou despesa”, o que não se excepciona no confronto com a “proteção” conferida pelo aludido parágrafo.

Portanto, o art. 3º da MP nº 258/05 pretende unir o que a Constituição da República separou, configurando mencionado ato, literal lesão ao patrimônio público e social (dos trabalhadores e seus dependentes), emergindo inconteste a concretização da hipótese fática erigida no art. 2º, alínea “c” da Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965.

5.2 – Da lesão ao patrimônio público e social com a aplicação do art. 36 da MP nº 258/05 e a redução da arrecadação previdenciária

Além das receitas da Seguridade Social, previstas no art. 11, alíneas “a, b e c”, da Lei n.º 8.212/91, transferidas para o caixa da União, o invocado art. 36 da MP n.º 258/05 afeta, ainda mais, o orçamento da Previdência Social, conforme podemos observar abaixo:

Art. 36 A remuneração pelo serviço de arrecadação e fiscalização de contribuição por lei devida a terceiros, de que tratam os §§ 1º e 3º a 6º do art. 3º desta Medida Provisória, será creditada ao Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (FUNDAF), instituído pelo Decreto-Lei n.º 1.437, de 17 de dezembro de 1.975.”

O § 3º do art. 3º da mencionada medida provisória prescreve que a remuneração pela arrecadação, fiscalização e cobrança de contribuições devidas a terceiros, será de três vírgula cinco por cento do montante arrecadado, nos exatos termos do art. 94 da Lei n.º 8.212/91, revogado pelo art. 39 da MP nº 258/05.

Verifica-se, então, que o produto da remuneração acima descrita converterá, integralmente, para o FUNDAF, Fundo esse absolutamente alheio às finalidades da Seguridade Social, especificamente à Previdência, em ofensa frontal ao disposto no art. 27 da Lei n.º 8.212/91, que assim estabelece:

Art. 27. Constituem outras receitas da Seguridade Social:

(…)

II – a remuneração recebida por serviços de arrecadação, fiscalização e cobrança prestados a terceiros.

Portanto, na dicção do artigo acima transcrito, não revogado expressamente pela citada medida provisória, a remuneração pelos serviços de arrecadação, fiscalização e cobrança de contribuições devidas a terceiros integram a receita da Seguridade Social vinculada, constitucionalmente, ao pagamento de benefícios previdenciários.

Contudo, os recursos de destinação constitucional são desviados para composição do FUNDAF, concorrendo para o agravamento da lesão ao patrimônio social do trabalhador brasileiro.

Não bastassem as sobejas razões que autorizam a suspensão liminar dos efeitos concretos e lesivos da Medida Provisória sob comento, ainda destaca-se a disposição contida no art. 14 da MP nº 258/05 que dispõe:

Art. 14. Compete, privativamente, à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a consultoria, a representação, judicial e extrajudicial, e a apuração da liquidez e certeza da dívida ativa da União, relativas às contribuições sociais de que tratam o caput e o § 1º do art. 3º, nos termos dos arts. 12, incisos I, II, e V, e 13 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.

§ 1º Até 31 de julho de 2006, caberá à Procuradoria-Geral Federal a representação judicial e extrajudicial do INSS na execução das contribuições sociais inscritas em sua dívida ativa até o dia anterior à data de início da vigência desta Medida Provisória.

§ 5º A dívida ativa do INSS e as ações judiciais a que se referem os §§ 1º e 2º serão transferidos para a União em 1º de agosto de 2006.

Assim, a representação judicial da dívida ativa previdenciária, nesta incluída as execuções fiscais trabalhistas, antes acometida aos Procuradores Federais, passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

A transferência de competência acima disposta é inconstitucional, ilegal e lesiva ao patrimônio público e ao patrimônio social, devendo ser repelida pelo Poder Judiciário. Os atos dos Tribunais Regionais do Trabalho suspendendo a tramitação das execuções das contribuições previdenciárias referidos, já estão causando prejuízos ao patrimônio social dos trabalhadores. Todavia, a amplitude da irregularidade atinge outros setores, como os disciplinados pelo art. 37, inciso II da Carta Constitucional.


A jurisprudência consolidada a partir de julgados da Suprema Corte impede o provimento derivado em cargos públicos e a investidura de servidores em atribuições diversas das chanceladas por concurso público específico.

O art. 14 e seguintes da MP nº 258/05 transferem a complexa competência da Procuradoria-Geral Federal – PGF para a Procuradoria da Fazenda Nacional, sem cuidar de garantir aos Procuradores Federais oficiantes junto ao Órgão de Arrecadação da PGF, a manutenção das atribuições e competências precípuas e para as quais prestaram concurso, foram aprovados, depois treinados e tornaram-se especialistas na defesa dos interesses da Previdência Social.

Os atuais Procuradores Federais em exercício no Órgão de Arrecadação que funciona junto ao INSS guardam, em nome dos interesses da República e da Previdência Social, portanto, a experiência, o conhecimento, a história e a prática da representação judicial e extrajudicial dos interesses da Previdência Social.

Da forma como desenhada, os encargos gerais da Procuradoria-Geral Federal serão transferidos para profissionais treinados em matéria distinta, o que já causou problemas e prejuízos (em vista da suspensão da tramitação das execuções das contribuições previdenciárias, determinada pela maioria dos Tribunais Regionais do Trabalho) e sugere ofensa ao art. 37, II, da Carta Constitucional, como antes comentado.

Os Procuradores da Fazenda Nacional possuem reputação reconhecida para o exercício das suas atribuições. Entretanto, estão recebendo atribuições e tarefas alheias ao seu treinamento e especialidade.

A MP nº 258/05, em seu art. 20, transferiu, para o exercício na Receita Federal do Brasil, os servidores que “se encontravam em efetivo exercício na Diretoria da Receita Previdenciária e na Coordenação-Geral de Recuperação de Créditos do INSS, bem como nas unidades técnicas e administrativas a elas vinculadas”, inclusive os auditores fiscais.

E também transferiu para exercício na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional os servidores do PCC que “se encontravam em efetivo exercício nas unidades vinculadas ao contencioso fiscal e à cobrança da dívida ativa na Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS ou nos órgãos descentralizados e unidades locais da citada Procuradoria Federal”.

Atente-se ainda para a conseqüência da transferência promovida pelos artigos 14 e 16 da MP nº 258/05, que significa profunda alteração na competência privativa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e da Advocacia Geral da União, competência essa fixada pela Lei Complementar nº 73/93.

A inconstitucionalidade formal da mencionada medida provisória, nesse ponto, é evidente, recomendando sejam sustados os efeitos do referido instrumento normativo que pretende modificar disposição de lei complementar.

Ademais, a edição da referida MP nº 258/05 viola o caput do art. 62 da Constituição da República, uma vez que a justificativa apresentada na exposição de motivos anexa à Medida Provisória evidencia a ausência dos pressupostos de relevância e de urgência exigidos para a espécie.

Confira-se a propósito, as razões da exposição de motivos (E. M. Inteministerial nº 094 – MF/MPS/MPOG/AGU:

35. A proposta de edição de Medida Provisória justifica-se diante da relevância e da urgência da medida. Quanto à relevância, está ela mais do que demonstrada à luz dos singulares e relevantíssimos impactos positivos que, como já detalhado nos itens 2 a 4 desta Exposição de Motivos, representa na Administração Pública, em geral, na Administração Tributária Federal, em particular, e, inclusive, na vida de milhares de contribuintes.

36. Sobre a urgência, na sua forma constitucionalmente qualificada, o requisito, no caso concreto, não deixa de parcialmente confundir-se com a própria relevância, na medida em que a relevância dos impactos que ela gera referidos no item anterior, de um lado, aliada à estrita legalidade que orienta as atuações da Administração Tributária, de outro, exige necessariamente suporte em norma de natureza legal desde os primeiros passos conducentes à implementação da nova estrutura.

37. Ademais, a urgência da medida está relacionada, por razões de ordem cultural e política, com o fato de que a atividade de fiscalização tributária, por envolver expressivos aspectos patrimoniais, é altamente sensível a reações adversas dos contribuintes e movimentos especulativos, não sendo conveniente que haja um vácuo jurídico e institucional que de alguma forma coloque em dúvida para o contribuinte a responsabilidade pela execução das atividades de arrecadação, fiscalização, recuperação de créditos e representação, judicial e extrajudicial, resultantes daquela atividade. Os prejuízos decorrentes dessa lacuna podem gerar insegurança jurídica de valor inestimável, motivo pelo qual se entende que há razão suficiente para respaldar a relevância da instituição de norma de aplicação imediata.


Ora, exatamente pela inconveniência “de algum vácuo jurídico e institucional que de alguma forma coloquem em dúvida para o contribuinte a responsabilidade pela execução das atividades de arrecadação” é que a medida provisória constitui instrumento impróprio para a introdução de uma alteração tão profunda no sistema previdenciário.

É de se esperar que alterações desse porte sejam precedidas de um debate amplo com toda a sociedade e que sejam implantadas por meio do instrumento próprio, que é a emenda constitucional.

Além disso, a ausência de urgência resulta da sujeição da vigência do novo esquema arrecadatório à edição de futuro ato regulamentar – art. 37 da MP n° 258/2005.

Em outras palavras, a adoção do regime que não pode esperar a deliberação congressual tem sua vigência obstada por uma vacatio legis. Urgência e vacatio legis são regimes que gozam de radical antagonismo de significado. Mais: as próprias razões que informam a referida medida provisória confessam – arts. 14, §§ 1º e 5º, 15, I, 16 caput, que parte do sistema ora positivado somente deverá entrar em vigor em agosto de 2006, ou seja, dentro de um ano.

Em conclusão, à MP nº 258/05 faltam os pressupostos de relevância – por não consubstanciar providência eficaz aos objetivos pretendidos – e de urgência – em face da alegada sensibilidade temática, da vacatio legis e da estimativa de efetiva implementação fática – exigidos pelo art. 62 da Constituição.

Ademais, cumpre esclarecer que a referida medida provisória prevê, em seu artigo 18, a criação de 1.200 (mil e duzentos) cargos da carreira de Procurador da Fazenda Nacional, justamente para atender a demanda transferida, o que induz à certeza de que a atual estrutura da PGFN não está aparelhada para absorver o imenso número de ações judiciais, resultando em imediata e inquestionável redução da arrecadação previdenciária que refletirá, concretamente, na redução do aporte financeiro para o custeio dos benefícios previdenciários.

Tal assertiva, que não autoriza contestação, corrobora a grave lesão ao patrimônio público e social, na forma já aduzida.

5.3 – Da intervenção abusiva na gestão patrimonial e financeira do INSS

Não bastassem os inúmeros equívocos perpetrados pela MP n.º 258/05, que ocasionam graves lesões ao patrimônio público e social, merece destaque o fato da citada medida provisória intervir em matéria estranha a sua alçada, haja vista que disciplina matéria reservada à lei complementar.

A gestão financeira e patrimonial do INSS, integrante da Administração Pública Federal Indireta, obedece ao princípio preceituado no art. 165, § 9º, da CF:

Art. 165 (…)

§ 9º – Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual;

II – estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos.

Em reforço do acima estatuído, dispõe a Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu art. 68:

Art. 68. Na forma do art. 250 da Constituição, é criado o Fundo do Regime Geral da Previdência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, com finalidade de prover recursos para o pagamento dos benefícios do regime geral da previdência social.

§1º. O Fundo será constituído de:

(…)

III – receita das contribuições sociais para a seguridade social, previstas na alínea ‘a’ do inciso I e no inciso II do art. 195 Constituição;

(…)

§ 2º. O Fundo será gerido pelo Instituto Nacional do Seguro Social, na forma da lei.”

Assim, a transferência da administração da arrecadação das contribuições previdenciárias para a Receita Federal do Brasil, assim como a transferência de bens do INSS para a mesma e para a PGFN resultam em intervenção indevida na gestão financeira e patrimonial da Autarquia Previdenciária, por intermédio de instrumento inapto para tal finalidade, restando maculada a reserva da matéria à lei complementar.

5.4 – Das especificidades das contribuições previdenciárias

A circunstância que justifica a classificação das contribuições de Seguridade Social como espécie tributária autônoma, ou seja, diversa dos impostos, é exatamente a sua finalidade, a qual se destina a custear a Seguridade Social. Preocupou-se o constituinte com sua destinação, enquanto garantia da realização dos direitos sociais a ela vinculados. Paralelamente, o respeito a sua destinação é também a garantia aos contribuintes, pois o regime jurídico diverso que os liga ao Fisco apenas se justifica se as receitas estão sendo efetivamente dirigidas à finalidade constitucionalmente prevista.


Na hipótese específica das contribuições previstas na Lei 8.212/91 há não só a relação da destinação, que une o custeio e a finalidade, mas o inegável fato de os institutos da legislação de custeio e de benefícios serem assentados sobre as mesmas circunstâncias e que demandam ação estatal comum, sendo, portanto, inconstitucional o destacamento da arrecadação em favor de órgão alheio aquele responsável pela gestão dos benefícios.

A vinculação entre contribuinte e segurado é necessária e inafastável no trato da Previdência Social. Não pode a lei fazer uma distinção artificial entre o contribuinte para o fim da arrecadação e segurado para os fins de inscrição, prova de sua inscrição e considerações relacionadas à perda da qualidade de segurado, como se fossem espécies possíveis de separação ou como se não houvesse qualquer repercussão entre os fatos jurídicos da arrecadação e aqueles do sistema de benefícios.

Nas situações das quais decorre a condição de contribuinte/segurado decorre também a de segurado/beneficiário e vice versa, não podendo serem separadas no interesse de uma ou de outra como se fossem situações jurídicas independentes e suficientes.

Para a Previdência Social, o Poder Público tem o dever de arrecadar as contribuições e o dever de pagar os benefícios quando implementadas as situações que os justifiquem. Quando o segurado vai ao Instituto Nacional do Seguro Social, a autarquia previdenciária, quer exatamente saber se cumpriu ele com as obrigações retributivas, quais sejam, os pagamentos das contribuições, que permitam exatamente o acesso dele à prestação pleiteada.

Não se pode sustentar que as obrigações acessórias de preencher livros e registros, bem como de prestar outras informações, relacionadas às contribuições sobre a folha de salários e dos trabalhadores são obrigações apenas pertinentes ao custeio, uma vez que interessam, também para a concessão de benefícios de Previdência Social.

Há então efetiva inconstitucionalidade na legislação que permite ao fiscal de tributos que lavre meramente o auto de infração, sem qualquer consideração ou contrapartida sobre os efeitos que os fatos, os quais ensejaram a autuação, têm sobre o sistema de inscrição e manutenção do vínculo com a Previdência Social.

O acompanhamento do ente público sobre os fatos geradores das contribuições é necessariamente duplo, não podendo ser artificiosamente dividido: deve ele cumprir, simultaneamente, os interesses do custeio e do sistema de benefícios, ou seja, saber se houve o pagamento da contribuição e se foram tomadas as providências para garantir a inscrição do segurado, a prova do vínculo, a visibilidade da situação do trabalhador e seus dependentes junto à previdência.

Não pode haver para a arrecadação da contribuição previdenciária em comento a sua separação do sistema de benefícios, especialmente em um sistema que não tem qualquer cunho contratual, ou seja, em que, como regra geral, a condição de segurado é obrigatória e deve ser fiscalizada pela autarquia previdenciária.

Assim, o conceito de pessoa obrigada ao pagamento do tributo (contribuição previdenciária) é exatamente o mesmo conceito de segurado da Previdência Social.

Quanto à contribuição da empresa, a relação não deixa de existir: “de certa forma seria possível dizer que a empresa é a pessoa que tem segurado a lhe prestar serviço”. E assim as repercussões são óbvias, como na inscrição, na qual “o empregado não precisa se inscrever, pois ao ser registrado na empresa já está automaticamente filiado ao sistema”.

A Previdência como substituto na recomposição da perda da remuneração, tem como interesse não apenas a base de cálculo para a incidência da contribuição, uma vez que a mesma base servirá para o cálculo dos benefícios.

Os prazos de recolhimento não são relevantes apenas para se ter o contribuinte em mora, como também influenciam na própria consideração da condição de segurado.

O Estado não deve apenas arrecadar, mas tem o dever de garantir o acesso das pessoas às prestações previdenciárias, haja vista que o direito previdenciário é um direito social e, portanto, direito fundamental (Titulo II, da Constituição Federal). Os valores em questão não são meramente monetários, mas de garantia da dignidade humana por meio dos benefícios de Previdência Social, os quais passam não apenas pela fiscalização, mas ainda pela conscientização e informação ao segurado/beneficiário, por exemplo.

Ademais, uma situação que seria interessante para a arrecadação, por permitir a entrada de recursos aos cofres públicos, pode ser etapa de uma fraudulenta comprovação de vínculo em desfavor do plano de benefícios e do patrimônio do conjunto dos trabalhadores.


Assim, aquilo que seria simples repercussão tributária, com deveres tributários instrumentais, em razão da vinculação entre custeio e benefício, revela-se também relevante para a atuação da Previdência na gestão dos benefícios e não apenas na arrecadação das contribuições.

As informações constantes da GFIP, documento no qual é informado o salário-de-contribuição de cada trabalhador, servirão como base de cálculo das contribuições devidas, bem como comporão a base de dados para fins de cálculo e concessão dos benefícios previdenciários.

Além disso, as contribuições sociais e os impostos arrecadados pela Receita do Brasil sujeitam-se a diferentes regimes. Por exemplo, a compensação de contribuições previdenciárias permite a utilização de até 30% do valor indevido, a cada competência, permitindo, dessa forma, o pagamento dos benefícios correspondentes ao mês, haja vista que nosso sistema previdenciário é do tipo “repartição simples”. As contribuições arrecadadas no mês são utilizadas para pagamento dos benefícios do mês.

O benefício “salário maternidade” é pago pela empresa à empregada e após a empresa reembolsa o valor, quando do pagamento das contribuições previdenciárias.

Além disso, o art. 68 da Lei de Responsabilidade Fiscal, lei complementar, que, na forma do determinado pela Constituição Federal, cria o Fundo do Regime Geral da Previdência Social, estabelece, em seu § 1.º, III, que o fundo é constituído da receita das contribuições previstas na alínea “a” do inciso I (contribuição da empresa sobre folha) e no inciso II (contribuição do trabalhador), do art. 195 da Constituição.

O Instituto Nacional da Seguridade Social é uma autarquia, sendo, portanto, pessoa jurídica com capacidade para titularizar direitos, inclusive para ser credora de tributos, como efetivamente aconteceu em toda sua história.

Não se pode esvaziar o Instituto Nacional do Seguro Social por ser a autarquia a garantia institucional da realização dos direitos previdenciários. Sobre as garantias institucionais, sustenta Paulo Bonavides:

Não se pode deixar de reconhecer o nascimento de um novo conceito de direitos fundamentais, vinculado materialmente a uma liberdade objetivada, atada a vínculos normativos e institucionais, a valores sociais que demandam realização concreta e cujos pressupostos devem ser criados, fazendo assim do Estado um artífice e um agente de suma importância para que se concretizem os direitos fundamentais da segunda geração (Curso de Direito Constitucional, 11.ª ed., p. 520).

Dessa forma, os direitos estabelecidos na Constituição não dispensam, ao contrário, obrigam o Poder Público que se estruture materialmente de maneira a preservá-los. Pensar a relação de custeio como meramente uma relação de arrecadação é criar, ademais, um distanciamento entre a Previdência Social e o segurado. Citemos o exemplo do segurado “contribuinte individual” conhecido como “bóia fria”: depende ele certamente de um trabalho intenso de educação e de aproximação com a Previdência, pois a legislação previdenciária deposita nele, apesar de sua clara hipossuficiência, a obrigação de separar parte de seus parcos rendimentos e direcioná-la, autonomamente, ao pagamento da previdência social. Nesse caso é clara a relação entre custeio e acesso aos benefícios e não é hipótese que se deve satisfazer com a mera fúria arrecadatória.

Um outro exemplo: na reclamação trabalhista a cobrança das contribuições previdenciárias decorrentes da condenação implica também na necessidade de uma regularização das informações e circunstâncias com relação à Previdência, como fonte pagadora de benefícios. Assim, quando se reconhece e se formaliza a relação de emprego, referida circunstância deve implicar também as devidas alterações no INSS, considerando ou não reclamante como segurado, bem como na dimensão monetária de seus benefícios.

Argumento que pode ser apresentado para justificar a unificação é o eventual ganho de eficiência. No entanto, entendemos que isso não ocorre. As medidas previstas determinam a necessidade de uma série de trâmites burocráticos e compatibilização de rotinas. Além disso, se a questão é equipar o órgão arrecadatório para bem executar sua função, que se faça isso com o INSS. Assim, teremos um órgão ágil não somente para a cobrança, mas também para garantir os direitos previdenciários, eliminando as intermináveis filas que é do conhecimento de toda a população brasileira. Verificamos que o Poder Público está preocupado apenas em cobrar melhor, e não em cobrar melhor para conceder benefícios de maneira mais eficiente. Dessa forma, teremos a efetividade do princípio da eficiência na medida em que, tanto a cobrança das contribuições, como a concessão de benefícios devem ser realizadas de maneira eficaz.


Ademais, a integração de rotinas e procedimentos não depende da encampação da parcela arrecadatória do INSS pela Receita Federal. Não há em direito administrativo brasileiro o vício de que apenas dentro do mesmo órgão pode haver a integração de rotinas. Pelo contrário, a integração entre entes administrativos ou entre órgãos é caminho sempre presente, por meio de convênios, por exemplo, sem a necessidade de se amputar qualquer um deles. Integração essa que a rigor deveria incluir também os órgãos de fiscalização da legislação trabalhista.

A contribuição do inciso II do art. 195 da Constituição Federal é aquela a cargo do trabalhador e dos demais segurados da previdência social. Seu contribuinte é o segurado. Ela revela o aspecto contributivo da Previdência Social, em oposição à Saúde e a Assistência.

Esse caráter contributivo não é, pois, apenas de interesse da legislação de custeio da previdência, mas também de seu plano de benefícios. Assim, não há como afastar a arrecadação e a fiscalização das contribuições, das demais atividades da previdência social.

Assim, o Poder Público deve considerar o trabalhador, tanto como contribuinte, como destinatário de benefícios previdenciários. Nessa linha, o art. 17 da Lei nº 8.213/91 estabelece que o regulamento disciplinará a forma de inscrição do segurado e de seus dependentes. Por outro lado, não existe mero pagamento de tributo, mas obrigatória vinculação da pessoa ao sistema de benefícios.

Assim, o art. 15 da Lei 8.213/91 enuncia que, entre outras situações, o trabalhador mantém a condição de segurado até doze meses após a cessação das contribuições, e que a perda da qualidade de segurado ocorrerá no dia seguinte ao término do prazo fixado pelo Plano de Custeio da Seguridade Social, para o recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados naquele artigo e seus parágrafos. Por sua vez, o art. 25 da mencionada lei determina que carência é o número mínimo de contribuições. O art. 115, I também da lei acima referida, prevê que podem ser descontados dos benefícios contribuições devidas pelo segurado à Previdência Social.

Os artigos legais comentados acima são exemplos de que não se está simplesmente tratando de dispositivos de custeio ou de benefício, mas de ambos, o que demonstra que ontologicamente não pode o ordenamento separar a gestão dos mesmos. Em outras palavras, toda circunstância que afeta a tributação afeta a condição do trabalhador perante o INSS enquanto segurado, não havendo separação possível.

No caso dessas contribuições, então, de forma juridicamente impossível, transmite-se não apenas a capacidade arrecadatória para a criada Receita do Brasil, mas cria indiretamente sérias dificuldades para a concessão e manutenção dos benefícios previdenciários, os quais, como já referido acima, constituem direito fundamentais dos trabalhadores e seus dependentes.

A Constituição Federal, ao desenhar o Estado brasileiro, no art. 1º, estabelece, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho como seus fundamentos. Além disso, o art. 3º enuncia, entre seus objetivos, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais. O art. 6º arrola os direitos sociais, os quais estão no Título II (Dos direitos e garantias fundamentais). Dentre eles temos o direito à previdência social.

A previdência social visa proteger os trabalhadores e seus dependentes nas situações geradoras de necessidades, quando diante da ausência de recursos provenientes do labor do próprio segurado, exigindo uma gestão conjunta na cobrança das contribuições e na concessão dos benefícios.

6 – DO PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA

O art. 12 da Lei de Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/85) estabelece a possibilidade de concessão de liminar, nos casos de possibilidade de dano irreparável ao direito em conflito, decorrente da natural morosidade na solução da lide.

Com efeito, o referido dispositivo tem natureza tanto cautelar, protetivo da eficácia da jurisdição, quanto de antecipação da tutela pretendida.

Sendo assim, com a atual redação do art. 273 do Código de Processo Civil – CPC, essa tutela antecipada vê-se ainda mais consagrada em conjunto com o atual sistema processual civil que alberga, amplamente, a hipótese de concessão do bem da vida ab initio (art. 273, CPC).

Há dois pressupostos básicos que legitimam a tutela antecipatória, quais sejam: verossimilhança da alegação e fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

No caso, a verossimilhança traduz-se nos arts. 10, 167, XI, 195 § 2º e 201, “caput“, todos da Constituição Federal, os quais exigem que a administração do custeio e dos benefícios previdenciários seja efetivada conjuntamente, não permitindo que a arrecadação das contribuições previdenciárias efetue-se por intermédio da recente criada Receita do Brasil.


O receio de dano irreparável justifica-se pelo fato de o patrimônio público e o patrimônio social dos trabalhadores já contabilizarem prejuízos, como por exemplo, na suspensão das execuções das contribuições previdenciárias, bem como na transferência de imóveis do INSS à Secretaria da Receita do Brasil. Assim, a demora no provimento jurisdicional poderá acarretar prejuízos ainda maiores ao patrimônio público (da autarquia previdenciária) e social dos trabalhadores (garantia dos pagamentos de benefícios previdenciários).

Ante o exposto, estando presentes os requisitos impostos pelo art. 273 do CPC c/c art. 12 da Lei n° 7.347/85, requer o Ministério Público Federal, após a providência determinada pelo artigo 3º da Lei nº 8.437/92, ou seja, a oitiva das RÉs no prazo de 72 (setenta e duas) horas, a concessão da antecipação dos efeitos da tutela, com abrangência em todo território nacional, determinando-se as Rés (União, Procuradoria da Fazenda Nacional, INSS e Procuradoria Federal, com atribuições junto ao INSS) que mantenham a arrecadação, a fiscalização e a gestão das receitas decorrentes das contribuições para financiamento da Previdência Social (art. 195, I, “a” e II da CF) e das contribuições de terceiros, no âmbito do INSS; mantenham as atribuições de consultoria, representação judicial e extrajudicial, e a apuração da liquidez e certeza da dívida ativa do INSS, bem como sua representação judicial e extrajudicial no âmbito da Procuradoria-Geral Federal; assegurem a preservação do acervo técnico e patrimonial atualmente empregados pelo INSS e pela Procuradoria-Geral Federal para a sua atuação; e, abstenham-se de tomar quaisquer medidas em relação aos 1.200 (mil e duzentos) cargos de Procurador da Fazenda Nacional e dos cargos em comissão das Procuradorias Seccionais, até julgamento final da presente ação, criados pela Medida Provisória n.º 258/05.

Justifica-se a extensão dos efeitos para todo o território nacional, em vista da natureza do direito em questão e da uniformidade de tratamento judicial, evitando-se a necessidade de reprodução de ações semelhantes (princípio da economia processual) e de apreciações contraditórias (princípio da coerência), pelo que se requer a não-aplicação da restrição territorial trazida pela Lei 9.494/97 ao art. 16, da Lei 4.347/85.

A respeito da natural extensão dos efeitos das decisões em ação civil pública, em razão da natureza do direito em questão, apontam Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery(3): “Não é relevante indagar-se qual a justiça que proferiu a sentença, se federal ou estadual, para que se dê o efeito extensivo da coisa julgada. A questão não é nem de jurisdição nem de competência, mas de limites subjetivos da coisa julgada, dentro da especificidade do resultado de ação coletiva, que não pode ter a mesma solução dada pelo processo civil ortodoxo às lides intersubjetivas.”.

7 – DOS PEDIDOS

Com fundamento nas razões apresentados, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:

a) a procedência do presente pedido, confirmando-se o comando da tutela antecipada, para o fim de manter arrecadação, a fiscalização e a gestão das receitas decorrentes das contribuições para financiamento da Previdência Social (art. 195, I, “a” e II da CF) e das contribuições de terceiros, no âmbito do INSS; manter as atribuições de consultoria, representação judicial e extrajudicial, e a apuração da liquidez e certeza da dívida ativa do INSS, bem como sua representação judicial e extrajudicial no âmbito da Procuradoria-Geral Federal, com atribuições junto ao INSS; assegurar a preservação do acervo técnico e patrimonial atualmente empregados pelo INSS e pela Procuradoria-Geral Federal para a sua atuação; e, reconhecer a nulidade da criação dos 1.200 cargos de Procurador da Fazenda Nacional e dos cargos em comissão das Procuradorias Seccionais previstas na Medida Provisória n.º 258/05.

b) a citação das Rés, por meio de um de seus Procuradores(as), nesta Capital, no endereço já declinado para, querendo, contestar e acompanhar a presente ação;

c) a extensão do decisum a todo o território nacional, sem limitação à circunscrição territorial ou à subseção judiciária (art. 16 da Lei 7.347/85), pelas razões expostas, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial;

d) em caso de comprovado descumprimento às determinações desse MM. Juízo Federal, seja aplicada multa no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por dia de atraso, valor esse destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, com fulcro nos art. 11 e 13 da Lei nº 7.347/85.

e) conforme o desenvolvimento desta relação processual, a produção de provas a serem especificadas oportunamente.

Dá-se à causa, para todos os efeitos legais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil de reais).

Termos em que pede deferimento.

São Paulo, 25 de agosto de 2005.

Fernanda T. S. Domingos Taubemblatt

PROCURADORA DA REPÚBLICA

Márcio Schusterschitz da S. Araujo

PROCURADOR DA REPÚBLICA

Zélia Luiza Pierdoná

PROCURADORA DA REPÚBLICA

Notas de rodapé

1- in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Forense Universitária, 7ª ed., pp. 810; 851.

2- in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Forense Universitária, 7ª ed., p. 276.

3- Nelson NERY JUNIOR e Rosa Maria Andrade NERY, Código de processo civil comentado e legislação processo civil extravagante em vigor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 1.157.

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