Cabo de guerra

Prerrogativas provocam conflito entre MP Estadual e Federal

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23 de agosto de 2005, 17h54

Ficam em zona cinzenta, hoje, as funções institucionais do Ministério Público. Não se conhece exatamente a origem dessa espécie de Corporação, sabendo-se, entretanto, que os promotores de Justiça foram, em passado não muito remoto, advogados do rei de França, valendo notar que em “Scaramouche”, o fazedor de reis, escrito por Rafael Sabatini (meu livro de cabeceira), a principal disputa do advogado misto de saltimbanco era com o procurador-geral, já existente na Corte francesa.

De qualquer maneira, cuida-se de uma comunidade saudável na história da nação, com eventuais desacertos, porque errar é humano, criando-se, às vezes, grande perplexidade nas lideranças quando há, em razão de turbilhões ideológicos, riscos à manutenção do Estado Democrático de Direito. Não há quem se livre, nesses contextos dramáticos, do desequilíbrio da bússola que aponta as garantias de direitos individuais, porque o poder é sempre o poder, tornando-se complicado, eventualmente, o livramento dos grilhões maiores.

Dentro do regime federativo, os Estados-Membros conservam independência na regulamentação do comportamento dessa importantíssima agregação, sendo importante realçar, também, o atrelamento da legislação estadual à Lei Orgânica Federal do Ministério Público, cuidando-se, é bom dizer, de Lei Complementar.

Partindo-se do intróito, já se pode ver, no aspecto estritamente processual (quiçá procedimental), a saia justa em que se põem, no complexo acidente ligando um cidadão sem prerrogativas e um Ministro de Estado, os dois segmentos da mesma Instituição, o Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal, o primeiro deles tendo à frente alguns promotores de justiça de primeiro grau e o outro, até o momento, solitariamente pontificado na palavra do procurador-geral da República.

Entenda-se que o subscritor da crônica, fiel ao pudor com que examina aspectos jurídicos de procedimentos penais em tramitação, não quer e não deve pesquisar o nódulo do grave conflito ainda em começo de ebulição, sendo importante aduzir, mais ainda, que o processo penal, hoje ferido de morte pelo desprezo com que se conduzem os artífices, entusiasma pouco os dogmatas clássicos. Entretanto, há, é qualidade dos antigos, uma espécie de premonição.

Os velhos processualistas penais deste país, episodicamente, têm a sensação de ser espécimes daquele personagem, o “Yoda”, bicho esquisito posto a dormitar e acordando, raramente, para emitir um ponto-de-vista qualquer respeitante à andadura de Darth Weider. A visão do futuro, ali, era fatal, como importante é aqui, também, a relação de causalidade entre as pretensões do Ministério Público Estadual e o hipotético resguardo de prerrogativas do Ministério Público Federal, prevendo-se, no nascedouro, uma temperatura mais elevada no reboliço do confronto entre as duas águas.

Realmente, há algumas preliminares a destacar:

a) O segmento maior do Ministério Público brasileiro, tempos atrás, usou desmesuradamente a televisão e a imprensa para bem dimensionar as imputações feitas e as investigações que tramitavam, ferindo em profundidade culpados e inocentes, mas produzindo machucados que a grande maioria, ainda não condenada, carregará no peito como se fosse a mancha escarlate de uma personagem de filme cujo nome sempre escapa ao cronista, embora a imagem seja de uma linda mulher (Demi Moore?);

b) No episódio entrelaçando o Ministro da Fazenda e antigo assessor seu, o Ministério Público estadual fez o mesmo, espalhando aos quatro ventos, todos acolitados pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, as particularidades do fenômeno apelidado “delação premiada”, transformando-se a divulgação num tormento para o poder central e para os setores que dependem, sempre, da maior credibilidade do Governo;

c) Vem o Procurador-Geral da República, agora, reivindicando discrição e muita prudência na divulgação de notícias atinentes à espécie, censurando a atitude dos promotores de justiça do Estado de São Paulo;

d) Em seguida, a associação que congrega nacionalmente os membros da Instituição parte em defesa dos investigadores, elogiando-os pelo comportamento persecutório, não se resguardando a disputa no silêncio, porque, inclusive, não há sigilo decretado;

e) Coroando tudo isso, o Poder Judiciário é lançado ao quintal, constando que um doleiro, preso em penitenciária de segurança máxima, teria sido conduzido dali a outro local, mediante o uso de helicóptero, sem consulta ou autorização judicial, ressaltando-se que tal criatura estaria sob Jurisdição Federal, não se sabendo, nas circunstâncias, se a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo poderia ou não movimentar o recluso sem consulta ao juiz que o condenara.

Os aspectos alinhavados são o máximo a que se pode ir, constituindo apenas ínfimo corolário do problema que, muito mais do que jurídico, é político, isolando-se, particularmente, a extrema dependência entre o desnudamento dos fatos com as eleições que vêm por aí. A bem dizer, o dramático fenômeno, bem trabalhado, embora não seja essa a pretensão do Ministério Público paulista, sempre voltado, diga-se de passagem, à aferição pura e simples de comportamentos ilícitos, caracteriza autêntico “filé mignon” na disputa à Presidência da República.

Além de tais considerações, há intricado aspecto jurídico a ser desbastado, cuidando-se, então, de autêntico jogo de cabo-de-guerra entre o Ministério Público Federal e o Estadual, se e quando não houver, abaixo da superfície, atividade diplomática separando e definindo os caminhos dos dois segmentos da Instituição. Insulado no contexto, vê-se que um, o Ministro, teria foro privilegiado, enquanto o outro, mero cidadão, restaria na vala comum.

Em princípio, a situação seria simples, mas não é tão límpida assim, na medida em que a conexão instrumental, se e quando havendo concurso de agentes, é absoluta, justificando-se, então, o requisitório da plenitude pelo procurador-geral da República, surgindo, no entremeio, um problema tático, uma questão política e uma angústia adequada ao receio das conseqüências de tal requisição pois, consumada esta, se haverá como certo que o Ministro se teria posto sob investigação, acrescendo-se então mais um pedregulho na encosta em desmoronamento. Além disso, há o fato da ligação estreita entre o Supremo Tribunal Federal e o trato específico a ser outorgado a Ministro de Estado posto, eventualmente, sob procedimento investigatório.

A melhor solução, sob a renitência do Ministério Público Estadual, seria a remessa do todo ao Supremo Tribunal Federal, havendo, em arredondamento, outra questão curiosa, pois o Ministério Público do Estado de São Paulo, querendo ou não querendo, não poderá deixar de remeter ao Poder Judiciário, a tempo certo, inquérito policial instaurado a respeito, cabendo ao Juiz, então, deferir prazo para continuação, ou, ele próprio, admitindo a incompetência da Justiça estadual, remeter os autos ao destinatário natural, tolhendo, então sim, a persecução individualizada sobre o antigo assessor, a menos que, em comportamento não ortodoxo, o “Parquet” estadual persista no procedimento, reinstaurando-o com o aproveitamento da peças já auferidas, sempre com objetivo persecutório, mas com as inevitáveis seqüelas de natureza política.

Acrescente-se, por último, que a suspeita de conduta ilícita se estende a municípios diferentes, envolvendo, por hipóteses, prefeitos e ex-prefeitos diversos, investigando-se os procedimentos a poder de atuação de promotores de justiça de primeiro grau, sabendo-se que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na plenitude dos 25 desembargadores, acordou inexistir prerrogativa de foro para ex-prefeito, isso contra posicionamento expresso do Superior Tribunal de Justiça, entendendo aquela Corte que a Lei respectiva, enquanto não declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, constitucional é, devendo ser obedecida.

Percebe-se, tocante às filigranas do Processo Penal, a existência de um campo sedutor para os especialistas, restando, a ser valorizado, apenas o desastre do poder central político, constituindo tal resultado, quem sabe, o desaguadouro último da conjuração.

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