Responsabilidade civil

Especialistas discutem as mutações da responsabilidade civil

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21 de agosto de 2005, 22h20

Nos últimos dez anos, o volume de ações por dano moral que chegou ao Superior Tribunal de Justiça multiplicou-se por 41. Ou seja, partiu de 19 recursos protocolados por mês em 1996 para 779 até meados de julho de 2005. Para ter uma dimensão desse crescimento seria como se a população brasileira, que era de 157 milhões de habitantes em 96, fosse hoje de 6,4 bilhões — mais do que a população mundial.

Esse crescimento e seus motivos foram examinados no seminário “A evolução do conceito da Responsabilidade Civil”, promovido pela revista Consultor Jurídico na sexta-feira (19/8). Três craques na matéria — um juiz, um advogado e um representante do Ministério Público — debateram o fenômeno, suas explicações e tendências: o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal; o professor Arnoldo Wald; e o procurador de Justiça José Maria Leoni Lopes de Oliveira.

Para Gilmar Mendes, que analisou a ampliação do conceito da Responsabilidade Civil do estado e a febre de ações por dano moral, a responsabilização é positiva, “mas seria mais adequado pensar que o valor, a dignidade da pessoa, a honra, podem e devem ser protegidos, tanto quanto possível, por outros meios”. A responsabilização judicial é apenas um desses meios. “Normas de organização e procedimento que estabelecessem regras de condutas de servidores públicos, mídia, poderiam evitar a infração que vai resultar em dano moral”, afirma o ministro.

Leoni Lopes de Oliveira, o procurador, analisou a Responsabilidade dos profissionais liberais. No mundo da advocacia, ele repeliu a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, invocando precedentes do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais estaduais do Paraná e do Rio Grande do Sul. O procurador, contudo, elegeu os profissionais da medicina, pela riqueza de situações que cerca a atividade, como paradigma de análise da responsabilização profissional.

Arnoldo Wald, que foi presidente da Comissão de Valores Mobiliários, integrante do Conselho Monetário Nacional e a maior autoridade brasileira em direito financeiro, historiou a evolução do conceito da responsabilidade civil e as peculiaridades de sua aplicação no sistema bancário. O professor examinou os riscos de se estender a relação de causalidade entre, por exemplo, empréstimos feitos por um banco e a finalidade dada ao dinheiro.

Seguradora universal

Segundo o ministro Gilmar Mendes, os temas responsabilidade civil e dano moral ganham novas configurações a cada período e estão cada vez mais presentes na sociedade brasileira. A conscientização social sobre direitos, e a evolução das relações da sociedade, contribuíram para o aumento do número de ações na Justiça e a ampliação do conceito.

O direito brasileiro nem sempre aceitou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. O entendimento é recente. Mas o ministro teme a generalização e questiona se isso significa a responsabilidade do Poder Público por qualquer fato ou ato, ação ou omissão no qual esteja envolvido direta e indiretamente. Ele responde a pergunta:

“A União é uma ficção, na verdade quem está pagando é o contribuinte. O conceito de responsabilidade civil do Estado não pode ser generalizado, a União não é uma seguradora universal”, defendeu Gilmar lembrando que meros desconfortos não podem ser indenizados e as perdas não podem ser generalizadas — sob pena de desvirtuar-se a finalidade e o papel do estado.

Para o ministro é necessário identificar no Estado Democrático de Direito a formação do interesse público calcado em interesses universalizáveis e publicamente justificáveis. Segundo Gilmar, o que “lamentavelmente” tem ocorrido é a usurpação de instrumentos normativos destinados à proteção da cidadania para proteger privilégios. “A tarefa de todos, nesse contexto, é desenvolver uma percepção crítica, para permitir-se a identificação e a denúncia das tentativas ilegítimas de apropriações indevidas de recursos da sociedade brasileira”, afirma.

Profissional liberal

A questão da responsabilidade civil dos profissionais liberais foi o foco da palestra do procurador de Justiça José Maria Leoni Lopes de Oliveira. O professor, que é autor de onze obras no campo do direito civil, foi enfático quanto à importância de informar o cliente sobre todos os riscos que uma operação, cirurgia, transação ou qualquer outra iniciativa oferece.

Leoni explanou sobre as diferenças entre a responsabilidade objetiva e a subjetiva com suas respectivas caracterizações. Na responsabilidade objetiva, aquela que acontece independente de culpa, explicou, existe o fato, ou vício do produto ou serviço. E na responsabilidade subjetiva apenas o fato do produto ou serviço.

O fato do serviço ou produto é aquele que ocasiona dano patrimonial ou moral. Quando uma geladeira explode incendiando uma casa, por exemplo, é fato do produto. Vício do produto ou serviço é aquele que não atende às expectativas do consumidor. Uma geladeira que não gela, por exemplo, é um caso de vício do produto. Leoni entende que tanto o fato, como o vício do produto ou serviço são enquadrados na responsabilidade objetiva.

Segundo o procurador de Justiça, no Código Internacional de Medicina não existe cirurgia com risco zero. Mas a responsabilidade nesse campo tem lá as suas curvas. Leoni exemplificou com um caso recorrente, que são os instrumentos esquecidos dentro do corpo de um paciente. Segundo especialista, o controle e responsabilidade sobre os instrumentos é do instrumentador.

Para Leoni, a existência de seguro de responsabilidade civil profissional por parte do médico estimula o paciente a buscar reparação judicial. Outro complicador seria a desconfiança de um paciente de se submeter aos cuidados de profissional que, antecipadamente, admite que pode cometer erros.

O procurador explicou que, no caso dos médicos, uma medida absolutamente necessária é o “consentimento informado” previsto no artigo 15 do novo Código Civil. O consentimento informado é um documento em que o cliente ou paciente declara estar ciente de todos os riscos a que está submetido e que, ainda assim, autoriza a operação a que se sujeitará. No caso médico, deve ser apresentado ao paciente antes de ele se entregar a um tratamento ou intervenção cirúrgica. Ele deve ser redigido pelo médico de forma clara; assinado pelo cliente; o consentimento não poderá ser um texto padronizado, de modelo: deve ser um para cada cliente.

O consentimento informado deve informar se o tratamento ou cirurgia oferece risco de vida, ou se pode determinar efeitos colaterais graves, como a quimioterapia, por exemplo. Deve informar também se existe outra técnica de tratamento ou cirurgia diferente daquela que ele vai empregar. Ainda é preciso que o médico deixe claro os cuidados pós-cirurgia.

Há também outra diferenciação a ser feita, quanto a obrigação de meio e de resultado. Na obrigação de meio, o devedor só se livra do vínculo obrigacional se entregar o resultado ideal. E na obrigação de resultado, ele deve fazer tudo o que for possível para alcançar o resultado ideal.

No caso de cirurgia plástica estética, o entendimento é de que existe obrigação de resultado. Diferente de uma operação de apendicite, onde existe a obrigação de meio. À cirurgia estética o paciente se submete por vontade de ficar mais bonito e não por necessidade, como no caso de uma cirurgia de apendicite.

Advogados em ação

A responsabilidade civil dos advogados é de meio, como regra geral, mas também de resultado em algumas hipóteses, como por exemplo, um contrato de locação mal elaborado, que venha a lesar o seu cliente.

Para a advocacia, existe o instituto “perda de uma chance”, que se aplica, aliás, a todos os profissionais liberais. Quando o advogado deixa de tomar alguma medida que poderia beneficiar o seu cliente, ele incorreu na “perda de uma chance”. A perda de prazo para contestação, a ausência de requerimento de uma perícia, a não interposição de um recurso.

Porém, os advogados não estão sujeitos à aplicação do Código de Defesa do Consumidor e sim ao Estatuto da OAB. Ou seja, os advogados não estão submetidos à relação de consumo.

“A obrigação profissional será sempre de meio ou de resultado, mas a de meio pode se converter em resultado pela vontade da parte. O advogado que promete ao cliente que vai ganhar a causa pode transformar a sua obrigação de meio em resultado”, alerta Leoni.

Sistema financeiro

“Liberdade e responsabilidade estão unidos e a responsabilidade teve de evoluir com a sociedade e o direito moderno”. Foi assim que o professor Wald entrou nos caminhos da Responsabilidade Civil no sistema financeiro.

O caso concreto é que vai determinar a legislação geral e especial a ser aplicada. A Constituição Federal, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei das Sociedades Anônimas.

De acordo com o professor Wald, a responsabilidade da empresa está especificada no artigo 931 do novo Código Civil: “ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”.

Segundo Wald a culpa continua sendo a regra geral na responsabilidade civil, que pode ser aplicada no caso concreto em relação às empresas. Exceto se não houver relação de causalidade ou por força maior (prevista no novo Código Civil artigos 393 e 636).

O Código de Defesa do Consumidor também impõe a sua regra ao setor financeiro, no artigo 14: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.

Conforme a Lei da Sociedades Anônimas, a responsabilidade do administrador é subjetiva. O artigo 158 especifica que o administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade. Porém responde civilmente pelos prejuízos que venha a causar. Isso quando agir dentro de suas atribuições e poderes, com culpa ou dolo, ou violar lei ou estatuto.

Wald explica que o administrador tem os deveres da diligência, lealdade e de informar. Porém o juiz poderá excluir a responsabilidade do administrador se entender que ele agiu de boa-fé e visando o interesse da companhia.

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