Crime ambiental

STF tranca ação penal contra ex-presidente da Petrobrás

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16 de agosto de 2005, 20h35

O Supremo Tribunal Federal decidiu, hoje, pelo trancamento de Ação Penal contra o ex-presidente da Petrobrás Henri Philippe Reichstul. A decisão foi tomada em julgamento da segunda turma.

Reichstul era acusado, na condição de presidente da estatal, de ter violado o artigo 54 de lei 9605/98, que prevê as punições contra atividades lesivas ao meio ambiente. Isso porque, em julho de 2000, um vazamento de aproximadamente 4 milhões de litros de óleo cru provocou a poluição, no Paraná, dos Rios Barigüi e Iguaçu e suas áreas ribeirinhas.

Os ministros acompanharam, à unanimidade, o voto do relator do processo, ministro Gilmar Mendes. Ao conceder o Habeas Corpus, entendeu-se que, diante dos fatos descritos na denúncia apresentada pelo Ministério Público, o ex-presidente da estatal não cometeu nenhum crime.

Gilmar Mendes foi contundente ao criticar a inépcia da denúncia apresentada pelo Ministério Público. “Houvesse relação de causa e efeito entre uma ação ou omissão do ex-Presidente da Petrobrás, deveria o órgão do Ministério Público explicitá-la de modo consistente. E se houvesse consistência, penso, a cadeia causal dificilmente ocorreria diretamente entre um ato da Presidência de Petrobrás e um oleoduto”, apontou.

Leia o voto do relator:

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Henri Philippe Reichstul contra o Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus, em decisão assim ementada, verbis:

“PROCESSO PENAL – CRIME AMBIENTAL – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E INÉPCIA DA DENÚNCIA – INOCORRÊNCIA – ALEGAÇÕES QUE EXIGEM DILAÇÃO PROBATÓRIA – INVIABILIDADE.

– No âmbito deste Colegiado, tem-se consagrado que o trancamento de ação, pela via estreita do writ, somente se viabiliza quando, pela mera exposição dos fatos narrados na denúncia, constata-se que há imputação de fato penalmente atípico ou que inexiste qualquer elemento indiciário demonstrativo da autoria do delito pelo paciente. Tais circunstâncias inocorrem no caso vertente. – Recurso desprovido.” (fl. 20)

O paciente foi denunciado, na qualidade de Presidente da empresa Petrobrás, como incurso no art. 54 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1.998, nos seguintes termos, constantes da denúncia:

“No dia 16 de julho de 2000, a denunciada PETROBRÁS – Petróleo Brasileiro S/A, explorando empreendimento de refino de petróleo em unidade situada no Município de Araucária – Estado do Paraná, denominada Refinaria Presidente Getúlio Vargas – REPAR, juntamente com os denunciados Henri Philippe Reichstul, Presidente da empresa, e Luiz Eduardo Valente Moreira, Superintendente da refinaria, acabaram por poluir os Rios Barigüi e Iguaçu e suas áreas ribeirinhas, por meio do vazamento de aproximadamente quatro milhões de litros de óleo cru, provocando a mortandande de animais terrestres e da fauna ictiológica, além da destruição significativa da flora, porque embora tenham colocado em risco o meio ambiente pela exploração e gerenciamento de atividade altamente perigosa, deixaram em contrapartida de adotar medidas administrativas e de impor o manejo de tecnologias apropriadas – dentre as disponíveis – para prevenir ou minimizar os efeitos catastróficos que uma mera falha técnica ou humana poderia provocar em atividades desta natureza.” (fls. 28/29)

O parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra da Subprocuradora-Geral da República, Dra Delza Curvello Rocha, de fls. 59-71, assim resumiu a controvérsia:

“Contra essa decisão, impetra-se a presente ordem de habeas corpus, insistindo, o impetrante, no pedido de trancamento da ação penal, sob os mesmos argumentos, alegando falta de justa causa para o seu prosseguimento, acrescentando que ‘a propósito do derramamento de óleo ocorrido na dia 18/01/2000, na Baía de Guanabara (Refinaria Duque de Caxias – REDUC), mencionado na denúncia acima transcrita, que, também, aí, o paciente Henri Phillipe Reichstul foi denunciado pelo Ministério Público Federal; que a denúncia foi recebida; que foi impetrada ordem de habeas corpus em favor do paciente, concedida pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região para trancar a ação penal (…)’.

Acrescenta, ainda, que a denúncia imputa ao paciente a prática de um crime omissivo impróprio, alegando que ‘Será humanamente inexigível que o paciente fiscalize a conduta funcional de cada funcionário da Petrobrás…’ e que, é ‘impossível’ atribuir ao paciente, ‘na sua condição de presidente da companhia’, ‘o concreto dever inscrito em uma relação vital, em estreito vínculo com o ‘bem jurídico’ de evitar vazamento em cada centímetro dos 14.627 quilômetros de oleodutos operados pela Petrobrás’ e que, ‘é típico de responsabilização objetiva por fato alheio’ (fls. 14).”



O Ministério Público Federal manifestou-se pelo indeferimento do writ.

O impetrante apresentou memoriais, sustentando que a condenação do paciente configuraria responsabilidade penal objetiva, pois o art. 2o da Lei 9.605, de 1998 se caracteriza como crime omissivo impróprio, independente da existência de relação concreta entre os representantes da pessoa jurídica e seus servidores.

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES — (Relator): Conforme relatei, pretende-se, no caso, a incriminação de ex-Presidente de uma instituição do porte da Petrobrás tendo em vista a ocorrência de derramamento de óleo em determinado empreendimento de refino de petróleo.

Seguindo a perspectiva analítica do crime (fato típico, ilícito e culpável, sendo o fato típico composto por conduta, resultado, nexo de causalidade, e tipicidade), e consideradas as circunstâncias do caso, penso que precisamos aqui realizar um exame cuidadoso da conduta considerada criminosa, assim como a análise do nexo de causalidade entre essa conduta e o resultado considerado lesivo ao meio ambiente.

A conduta

Na referida perspectiva analítica, o primeiro elemento do fato crime é a conduta, que deve ser dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva.

Não há crime sem conduta, essa é uma garantia elementar do direito penal moderno, a afastar qualquer perspectiva de punição do pensamento, da forma de ser, de características pessoais, etc.

Conforme bem advertem Zaffaroni e Pierangeli, não obstante a aparente obviedade do princípio de que não há crime sem conduta, no momento atual não faltam tentativas de suprimir ou de obstaculizar esta garantia. Zaffaroni e Pierangeli, entre outras questões, discutem, especificamente, a legitimidade da responsabilização da pessoa jurídica. (Manual de Direito Penal, Parte Geral, 4a. ed., São Paulo, RT, 2002, p. 409)

Essa não é, certamente, uma discussão pertinente ao presente caso. O que quero enfatizar aqui é que a primeira baliza para a análise do fato crime é a correta percepção da conduta exteriorizada pelo suposto autor do delito.

A conduta, em uma perspectiva finalista, consiste em um comportamento voluntário, dirigido a uma finalidade qualquer. A finalidade da conduta, conforme lições de Rogério Greco, pode ser ilícita – e aqui temos o dolo – ou lícita, hipótese em que a existência de crime estará vinculada a previsão legal expressa no sentido da incriminação de ato culposo (Curso de Direito Penal, 5a. Ed., Rio de Janeiro, Impetus, p 166).

No caso em exame, ao final da denúncia formulada contra o paciente, o Ministério Público afirma que “incorreram os denunciados nas sanções do artigo 54 da Lei 9.605/98”. O referido artigo prevê a incriminação tanto da modalidade dolosa quanto da modalidade culposa. Todavia, a denúncia não explicita em qual modalidade pretende o Ministério Público ver o réu condenado.

Considero necessário, nesse ponto, registrar os trechos da denúncia em que são descritas especificamente condutas do paciente (destaques nossos):

“No dia 16 de julho de 2000, a denunciada PETROBRAS – Petróleo Brasileiro S/A, explorando empreendimento de refino de petróleo em unidade situada no Município de Araucária – Estado do Paraná. denominada Refinaria Presidente Getulio Vargas – REPAR, juntamente com os denunciados Henri Philippe Reichstul, Presidente da empresa, e Luiz Eduardo Valente Moreira, Superintendente da refinaria, acabaram por poluir os Rios Barigüi e Iguaçu e suas áreas ribeirinhas, por meio do vazamento de aproximadamente quatro milhões de litros de óleo cru, provocando na mortandade de animais terrestres e da fauna ictiológica, além da destruição significativa da flora, porque embora tenham colocado em risco o meio ambiente pela exploração e gerenciamento de atividade altamente perigosa, deixaram em contrapartida de adotar medidas administrativas e de impor o manejo de tecnologias apropriadas – dentre as disponíveis – para prevenir ou minimizar os efeitos catastróficos que uma mera falha técnica ou humana poderia provocar em atividades desta natureza.” (fls. 28/29)

“A PETROBRAS está sob o comando do denunciado Henri Philippe Reichstul desde maio de 1999. A sua administração representa um grande paradoxo.

De um lado a PETROBRAS obteve o melhor desempenho econômico de sua história – um lucro líquido de quase 5 bilhões de dólares – e o valor de mercado da empresa quase que triplicou (passou de 9 bilhões de dólares em janeiro de 1999 para 30 bilhões em janeiro deste ano) – (Reportagem da Revista Exame, edição 737, de 04 de abril de 2001 – páginas

46/47).

Em contrapartida, a PETROBRAS se envolveu em três grandes e graves acidentes em pouco mais de quatorze meses: o derrame de óleo combustível na Baia de Guanabara, o derrame de petróleo nos Rios Barigüi e Iguaçu e o acidente na P-36 no campo de Roncador, a 120 Km da costa do litoral fluminense, fora os de menor gravidade, elencados nas informações da Agência Nacional do Petróleo.


[…]

Os acidentes têm ocorrido em progressão geométrica em todo o país não por mero acaso. Todos eles têm relação direta com uma política empresarial preordenada, implantada pelo seu Presidente, buscando em primeiro lugar a auto-suficiência na produção de petróleo. Ocorre que não há como aumentar abruptamente os níveis de produtividade e faturamento numa atividade deste tipo sem comprometer os níveis de segurança. Assume¬-se um risco calculado. […].

O denunciado Reichstul instituiu ‘profunda metamorfose administrativa’ na empresa (reportagem acima citada – p. 47), adotando um planejamento estratégico, dividiu a PETROBRAS em 40 unidades de negócios, que funcionam com metas e resultados próprios. Segundo a reportagem mencionada, com a criação de unidades de negócios voltadas para uma gestão de resultados, não há dúvida de que existe uma pressão para que ocorra um aumento na produtividade na empresa. Afinal, o Presidente da PETROBRAS pretende transformá-la na maior empresa de energia do Hemisfério Sul.” (fls. 41/42)

“DAS MEDIDAS ADOTADAS DEPOIS DOS VAZAMENTOS DA BAÍA DA GUANABARA E DOS RIOS BARIGÜI E IGUAÇU:

Após o vazamento na Baía da Guanabara, ocorrido em janeiro de 2000, o denunciado Henri, Presidente da PETROBRAS, decidiu investir em um projeto ambiental de prevenção de acidentes, batizado de PEGASO – Programa de Excelência em Gestão Ambiental e Segurança Operacional. A medida foi adotada tardiamente, sendo que ainda não alcançou os resultados almejados na prevenção de acidentes. Este fato foi reconhecido por Henri P. Reichstul, quando afirmou em entrevista concedida à Folha de São Paulo em 15 de agosto de 2000, no caderno ‘cotidiano’, em anexo, que a PETROBRAS só alcançará a excelência ambiental em 2003, sendo impossível garantir que novos vazamentos de petróleo não irão ocorrer até lá.

Quando aconteceu o vazamento nos Rios Barigüi e Iguaçu, nova resolução foi tomada pela denunciada PETROBRAS, por meio de seu Presidente denunciado Henri, ou seja, foi criado o programa chamado de vigilância máxima. Com este programa procurou-se colocar em prática desde procedimentos até pequenas obras destinadas a minimizar os efeitos de um vazamento.

Estas medidas deveriam ter sido tomadas anteriormente ao fato, pela empresa denunciada, por meio de seu Presidente Henri P. Reichstul e do então Superintendente da REPAR denunciado Luiz Eduardo Valente Moreira.” (fl. 44/45)

“O vazamento da REPAR é um exemplo claro de que o oleoduto não estava sofrendo manutenção preventiva e controle adequado. O vazamento, portanto, era previsível pelo então Superintendente da REPAR e pelo Presidente da PETROBRAS, que se omitiram em adotar medidas prévias que pudessem evitá-lo, com conhecimento da situação de perigo.

A adoção prévia das medidas até aqui mencionadas pela PETROBRAS, através do então Superintendente da REPAR e pelo seu Presidente, teria evitado o derrame. Ambos tinham o dever de cuidado pelas posições por eles ocupadas na empresa e a responsabilidade de evitar o vazamento, o que não fizeram a fim de atingir a meta de redução de custos com pessoal, segurança e manutenção, assumindo o risco de produzir o resultado, mesmo depois do grande vazamento de óleo ocorrido na Baía de Guanabara, que chamou atenção da empresa para as dificuldades relacionadas ao funcionamento dos oleodutos.

Particularmente, o dever de cuidado do denunciado Henri era ainda mais acentuado na época do fato imputado nesta denúncia, uma vez que ajuste organizacional realizado na PETROBRÁS, em abril de 2000, aprovado pelo seu Conselho de Administração, cumulou na pessoa desse denunciado seis funções corporativas: estratégia corporativa, gestão de desempenho empresarial, desenvolvimento de novos negócios, comunicação institucional, jurídico e meio ambiente (documento procedimento MPF , vol. 2 – fls. 534/535).” (fls. 45/46)

São essas, portanto, as condutas praticadas pelo paciente, nos termos da denúncia.

Estabelecidos os limites das condutas efetivamente praticadas pelo paciente, passo a analisar o nexo de causalidade entre a conduta e o evento danoso.

O Nexo de causalidade

O nexo de causalidade encontra previsão no art. 13 do Código Penal, verbis:

“Relação de causalidade

Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Superveniência de causa independente

§ 1º – A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.


Relevância da omissão

§ 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”

Conforme sintetiza Rogério Greco, dentre as várias teorias que cuidaram da relação de causalidade destacam-se três: a teoria da causalidade adequada; a teoria da relevância jurídica; e a teoria da equivalência dos antecedentes causais, verbis:

“Pela teoria da causalidade adequada, elaborada por Von Kries, causa é a condição necessária e adequada a determinar a produção do evento. Na precisa lição de Paulo José da Costa Júnior,

‘considera-se a conduta adequada quando é idônea a gerar o efeito. A idoneidade baseia-se na regularidade estatística. Donde se conclui que a conduta adequada (humana e concreta) funda-se no quod plerumque accidit, excluindo acontecimentos extraordinários, fortuitos, excepcionais, anormais. Não são levados em conta todas as circunstâncias necessárias, mas somente aqueles que, além de indispensáveis, sejam idôneas à causação do evento’.

No exemplo de Beling, não existiria relação causal entre acender uma lareira no inverno e o incêndio produzido pelas fagulhas carregadas pelo vento.

A teoria da relevância entende como causa a condição relevante para o resultado. Luis Greco, dissertando sobre o tema, procurando descobrir o significado do juízo de relevância, diz que “primeiramente, ele engloba dentro de si o juízo de adequação. Será irrelevante tudo aquilo que for imprevisível para o homem prudente, situado no momento da prática da ação. Só o objetivamente previsível é causa relevante. Mezger vai um pouco além da teoria da adequação, ao trabalhar, simultaneamente, com um segundo critério: a interpretação teleológica dos tipos. Aqui, não é possível enumerar nada de genérico: será o telos específico de cada tipo da parte especial que dirá o que não pode mais ser considerado relevante”. Assim, no conhecido exemplo daquele que joga um balde d’água em uma represa completamente cheia, fazendo com que se rompa o dique, não pode ser responsabilizado pela inundação, pois que sua conduta não pode ser considerada relevante a ponto de ser-lhe imputada a infração penal tipificada no art. 254 do Código Penal.

Pela teoria da equivalência dos antecedentes causais, de Von Buri, adotada pelo nosso Código Penal, considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Isso significa que todos os fatos que antecedem o resultado se equivalem, desde que indispensáveis à sua ocorrência. Verifica-se se o fato antecedente é causa do resultado a partir de uma eliminação hipotética. Se, suprimido mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último.

Pela análise do conceito de causa concebido pela teoria da conditio sine qua non, podemos observar que, partindo do resultado naturalístico, devemos fazer uma regressão almejando descobrir tudo aquilo que tenha exercido influência na sua produção.” (Curso de Direito Penal, 5a. Ed., Rio de Janeiro, Impetus, pp. 241/242)

Na teoria da equivalência dos antecedentes (ou da conditio sine qua non), como visto, afigura-se essencial que a causa seja indispensável na produção do resultado. Para se verificar se o fato é causador do resultado é feito o chamado “teste da eliminação hipotética”. Suprimido mentalmente o fato, se ocorrer uma modificação no resultado, isto evidenciaria que o fato é sim relevante à produção do resultado. Tomemos como exemplo um crime de homicídio praticado com arma de fogo. Admitida a referida teoria, nos contornos até aqui apresentados, chegaríamos à responsabilização não apenas daquele que efetuou o disparo, mas também do próprio vendedor ou mesmo do fabricante da arma.

E aqui surge uma das críticas à teoria, pois ela estaria na verdade a permitir um problemático “regresso ao infinito”.

Mas há uma correção doutrinária para esse problema. Para se evitar a regressão ao infinito, interrompe-se a cadeia causal no momento em que não houver dolo ou culpa por parte daquelas pessoas que tiveram alguma importância na produção do resultado (Greco, cit., p. 244). Voltando ao exemplo do crime cometido com arma de fogo, não se poderia imputar o crime à industria que produziu e vendeu licitamente a arma de fogo.

Essa restrição a uma perspectiva de regresso ao infinito, para fins de responsabilização, também ocorre no campo civil. Lembro-me aqui do conhecido precedente desta Corte no RE 130764, sob a relatoria de Moreira Alves (DJ 7.8.1992). Discutia-se, ali, a responsabilização do Estado por crime praticado por foragidos de estabelecimento prisional. Consta da ementa:


“Responsabilidade civil do Estado. Dano decorrente de assalto por quadrilha de que fazia parte preso foragido vários meses antes. – A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69 (e, atualmente, no parágrafo 6º do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros. – Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também a responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada. – No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, e com base nos quais reconheceu ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, e inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no artigo 107 da Emenda Constitucional n. 1/69, a que corresponde o parágrafo 6. do artigo 37 da atual Constituição. Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido.”

Estamos aqui no âmbito penal, onde os rigores para se alcançar uma punição certamente são maiores.

Olhando especificamente para o caso deste habeas corpus, ainda que pudéssemos conceber hipóteses de responsabilização criminal de um dirigente de uma pessoa jurídica da complexidade da Petrobrás, em razão de um evento danoso ocorrido em um de seus oleodutos, certamente teríamos que, no mínimo, zelar por um compromisso de consistência em relação a esse aspecto elementar do direito penal, que é a vinculação entre fato e autor do fato.

No caso concreto, considerando a palavra “causa” em sua perspectiva penalmente relevante, indago: O paciente praticou fato que constituiu causa para a ocorrência do vazamento?

Com o devido respeito, sequer uma relação causal naturalista está bem descrita na denúncia.

A descrição do evento danoso está clara. Trata-se de um vazamento em um oleoduto da Petrobrás. Tal vazamento teria causado danos ambientais. As causas para a ruptura de um oleoduto podem ser várias. Mas isso não vem ao caso, essa é uma matéria de prova que não me parece necessária na presente discussão.

Mas a relação de causa e efeito entre a conduta do paciente e o vazamento do oleoduto não estão nada claras.

Considerando as circunstâncias do caso, penso que é inevitável, a partir dos elementos de que dispomos nos autos, sobretudo a partir dos fatos descritos na denúncia, perquirir se há essa condição mínima para a persecução penal, qual seja, a descrição de um liame consistente entre conduta e resultado.

Não estamos aqui a discutir responsabilidade de pessoa jurídica. E talvez isso seja um fator para uma certa confusão na peça acusatória, que refere-se conjuntamente à Petrobrás e a seu dirigente.

O problema aqui refere-se aos limites de responsabilização penal dos dirigentes de pessoas jurídicas em relação a atos praticados sob o manto da pessoa jurídica. Essa distinção, que parece óbvia, é importante no caso, tendo em vista a referida confusão estabelecida na peça acusatória.

Trazendo a questão para o caso concreto, precisamos necessariamente conferir um tratamento diferenciado entre pessoa física e pessoa jurídica. A relação Petrobrás-oleoduto não pode ser equiparada com uma relação Presidente da Petrobrás–oleoduto!

A responsabilização penal de pessoa física, não podemos esquecer, ainda obedece àqueles parâmetros legais de garantia que tem caracterizado o direito penal moderno, especialmente a partir do pensamento de Beccaria. E aqui não há espaço para o arbítrio.

Entre outras inúmeras garantias do acusado, remanesce a perspectiva de que não há crime sem conduta, e também não há crime sem que exista um vínculo entre a conduta e o resultado. Nessa linha, indago: podemos equiparar, sem qualquer restrição, no âmbito penal, a conduta de pessoa jurídica com a conduta de seu dirigente? Podemos tratar, do mesmo modo, o nexo de causalidade entre atos de pessoa jurídica e evento danoso, e atos do dirigente da pessoa jurídica e evento danoso praticado em nome da pessoa jurídica?


Não estou excluindo, obviamente, a possibilidade de prática de crimes por parte de dirigentes de pessoas jurídicas justamente na direção de tais entidades. Não é isto! O que quero enfatizar é que não podemos, para fins de responsabilização individual, admitir uma equiparação tosca entre atos de pessoa jurídica e atos de seus dirigentes.

No caso em exame, penso que temos, nos autos, os elementos objetivos para o enfrentamento da questão.

Não me impressiona o argumento utilizado pelo STJ, no sentido de que a apreciação das alegações exigiriam dilação probatória.

Da leitura da denúncia, penso, resta evidente um grosseiro equívoco e uma notória lacuna na tentativa de vincular, com gravíssimos efeitos penais, a conduta do ex-Presidente da Petrobrás e um vazamento de óleo ocorrido em determinado ponto de uma malha mais de 14 mil quilômetros de oleodutos!

A par de um julgamento da gestão do Sr. Reichstul à frente da Petrobrás, não há um elemento consistente a vincular o paciente ao vazamento de óleo.

Precisamos aqui refletir sobre isso. Houvesse relação de causa e efeito entre uma ação ou omissão do ex-Presidente da Petrobrás, deveria o órgão do Ministério Público explicitá-la de modo consistente. E se houvesse consistência, penso, a cadeia causal dificilmente ocorreria diretamente entre um ato da Presidência de Petrobrás e um oleoduto. Imagino que entre a Presidência da Petrobrás, obviamente um órgão de gestão, e um tubo de óleo, há inúmeras instâncias gerenciais e de operação em campo. Não há uma equipe de engenheiros responsável pela referida tubulação? É o Presidente da Petrobrás que examina, por todos os dias, o estado de conservação dos 14 mil quilômetros de oleodutos? Não há engenheiros de segurança na Petrobrás? Obviamente não estou pressupondo uma responsabilização sequer dos engenheiros de segurança. Também para estes há o estatuto de garantias no âmbito penal. O que quero é evidenciar que, se há um evento danoso e se há uma tentativa de responsabilização individual, um pressuposto básico para isto é a demonstração consistente de uma cadeia causal entre o suposto agente criminoso e o fato.

Não vejo, com a devida vênia, como imputar o evento danoso descrito na denúncia ao ora paciente. Caso contrário, sempre que houvesse um vazamento de petróleo em razão de atos da Petrobrás, o seu presidente inevitavelmente seria responsabilizado em termos criminais. Isso é, no mínimo, um exagero.

Penso que, no caso, estamos diante de um quadro de evidente irracionalidade e de má compreensão dos limites do direito penal. Considerando apenas as condutas objetivamente imputadas ao paciente, verifica-se que, no fundo, a única motivação para a denúncia seria uma contestação genérica à gestão do Sr. Reichstul à frente da Petrobrás. E mais, a partir de uma confusão entre atos da pessoa jurídica e atos individuais – e essa distinção me parece fundamental quando estamos falando de direito penal! -, busca-se atribuir ao Presidente da instituição qualquer dano ambiental decorrente da atuação da Petrobrás. E, com isto, chega-se ao exagero de buscar conferir ao ex-Presidente da Petrobrás a pecha de criminoso.

Cabe lembrar que a atuação institucional de uma autoridade que dirige uma instituição como a Petrobrás dá-se em um contexto notório de risco. Lembro-me aqui do pensamento de Canotilho, acerca do chamado “paradigma da sociedade de risco” (Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1991, p. 1304). A possibilidade de erro em tais domínios não causa espanto, e os erros podem ser atribuídos tanto a agentes da instituição quanto à própria instituição. Há mecanismos de controle e de repressão a ambos. E também há gradações. Ainda que desconsideremos as diversas esferas de controle de atos administrativos, olhando o caso concreto, é inevitável indagar: Qual é o erro imputado objetivamente ao ex-Presidente da Petrobrás?! Ou ainda: o dano ambiental atribuído à Petrobrás pode ser imputado, em qualquer hipótese, a seu Presidente?

Com o máximo respeito, acreditar que qualquer dano ambiental atribuível à Petrobrás representa um ato criminoso de seu Presidente afigura-se, no mínimo, um excesso.

Lembro-me aqui, na linha de Canotilho, que um dos problemas fundamentais da sociedade de risco é a assinalagmaticidade do risco. Tal observação é bastante pertinente para uma correta compreensão da atividade desempenhada por uma autoridade como o Presidente da Petrobrás, e também para evidenciar a impropriedade em tentar conferir ao indivíduo e à pessoa jurídica os mesmos riscos.

Enfim, não tenho como aceitável, sobretudo para fins penais, a tentativa de estabelecer uma equação no sentido de que todo e qualquer ato lesivo ao meio ambiente imputável à Petrobrás implica um ato criminoso de seu dirigente.

Conclusão

Concluo meu voto no sentido do trancamento da ação penal em relação ao Sr. Henri Philippe Reichstul, tendo em vista que, diante dos fatos descritos na denúncia, manifestamente não há qualquer prática de crime pelo paciente.

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