Super-Receita

Liminar da Justiça Federal do Rio suspende a Super-Receita

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16 de agosto de 2005, 18h51

O juiz Hudson Targino Gurgel, da 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro, concedeu nesta terça-feira (16/8) liminar que suspende a criação da Receita Federal do Brasil, conhecida como Super-Receita.

Para o juiz, o Poder Executivo quer transferir para a União parte do patrimônio imobiliário do INSS e a Medida Provisória 258, que criou a Super-Receita, não traz critérios objetivos para resguardar a autarquia previdenciária.

“Nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal, toca ao INSS a gestão do fundo estabelecido em seu artigo 68, que compõe-se, dentre outros, das contribuições que a União pretende cobrar pessoalmente”, decidiu.

De acordo com a liminar, a MP tem finalidade clara de centralizar a arrecadação, fiscalização, administração, lançamento e normatização de tributos federais, violando o princípio da descentralização da gestão administrativa. A decisão do juiz foi tomada em uma ação popular.

Nesta terça-feira, A Anpaf — Associação Nacional dos Procuradores Federais entrou no Supremo Tribunal Federal com Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de liminar contra a Super-Receita.

Leia a íntegra da liminar

2ª Vara Federal

PROCESSO N.º 2005.51.01.016150-4

CLASSE: AÇÃO POPULAR

AUTORA: DORALICE MARIA DA CONCEIÇÃO LIMA

(Título Eleitoral nº05827236045)

ADV.: MÁRCIA SALGADO DA SILVEIRA

(OAB/RJ Nº 104.912)

RÉUS: PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

UNIÃO FEDERAL

MINISTRO DA FAZENDA

MINISTRO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

ADVOGADO GERAL DA UNIÃO

PRESIDENTE DO INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL.

JUIZ: HUDSON TARGINO GURGEL

DECISÃO

Trata-se de Ação Popular ajuizada por DORALICE MARIA DA CONCEIÇÃO LIMA, inicialmente em face do PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL e da UNIÃO, objetivando, em sede de liminar:

“1) que suspenda a transferência da competência para arrecadar, fiscalizar, administrar, lançar e normatizar as atribuições descritas no art. 3º da MP n.º 258, acometida à Receita Federal do Brasil;

2) que se suspenda a transferência da representação judicial da Procuradoria-Geral Federal para Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, prevista no art. 14 da MP 258/2005;

3) que suspenda a transferência do acervo técnico e patrimonial e das dotações orçamentárias do INSS, previstas nos incisos I e II do art. 21;

4) que suspenda a transferência de exercício dos servidores administrativos lotados no INSS, prevista no art. 20 da MP;

5) que suspenda a transferência para o FUNDAF dos recursos decorrentes da arrecadação das contribuições para terceiros, prevista no art. 36;

6) que suspenda a contratação de 1.200 novos procuradores da Fazenda Nacional, prevista no artigo 18;

7) que suspenda a criação das 120 Procuradorias Seccionais da PGFN, prevista no art. 17, caput e dos 120 cargos em comissão previstos no seu parágrafo 1º;

8) que suspenda a transferência dos cargos em comissão prevista no art. 16.”

Com a inicial vieram os documentos de fls. 30 usque 41.

Determinada a citação dos réus às fls. 43 e, bem assim, o retorno dos autos para apreciação de eventual medida liminar.

Emenda à inicial às fls. 51, requerendo a inclusão, no pólo passivo, do Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, Excelentíssimo Senhor Ministro da Previdência Social, do Excelentíssimo Senhor Advogado Geral da União e, bem assim, do Presidente do Instituto Nacional do Seguro Social.

É o relatório. DECIDO.

De início, recebo a petição de fls. 51 como a emenda à inicial.

O art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal estabelece que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (…)”. (grifei)

Conforme a lição de Hely Lopes Meirelles:

“Ação popular é o meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal, ou suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos.

A Constituição vigente, de 5.10.88, mantendo o conceito da Carta anterior, aumentou sua abrangência, para que o cidadão possa ‘anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural’ (art. 5º, LXXIII). Assim, pôs termo à dúvida se abrangeria também os atos praticados por entidades paraestatais (sociedades de economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos e entes de cooperação), além dos órgãos da Administração centralizada.


É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos individuais próprios, mas sim interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão a promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga.

Presentemente a ação popular acha-se regulamentada pela Lei n.º 4.717, de 29.6.65, que lhe dá o rito ordinário, com algumas alterações, visando à melhor adequação aos objetivos constitucionais da legalidade administrativa. Mas observe-se que essa lei é anterior à Constituição de 1967 e à Emenda de 1969, pelo que deve ser entendida à luz do novo texto constitucional.”

(in Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, “Habeas Data”. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 113-115)

Destaque-se, de plano, que o instrumento ora manejado não se presta à impugnação de lei em tese, como, aliás, têm decidido os tribunais pátrios.

Na doutrina, sobreleva a lição de Alexandre de Moraes que esclarece:

“O objeto da ação popular é o combate ao ato ilegal ou imoral e lesivo ao patrimônio público, sem contudo configurar-se a ultima ratio, ou seja, não se exige o esgotamento de todos os meios administrativos e jurídicos de prevenção ou repressão aos atos ilegais ou imorais e lesivos ao patrimônio público para seu ajuizamento.

A Lei da Ação Popular (Lei n.º 4.717/65), em seu art. 4º, apesar de definir exemplificadamente os atos com presunção legal de ilegitimidade e lesividade, passíveis, portanto, de ação popular, não excluiu dessa possibilidade todos os atos que contenham vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos, desvio de finalidade ou tenham sido praticados por autoridade competente (Lei n.º 4.717/65, art. 1º).

Ainda em relação ao objeto, Hely Lopes Meirelles aponta que “hoje é ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência que não cabe ação popular para invalidar lei em tese, ou seja, a norma geral, abstrata, que apenas estabelece regras de conduta para sua aplicação. Em tais casos, é necessário que a lei renda ensejo a algum ato de execução, para ser atacado pela via popular e declarado ilegítimo e lesivo ao patrimônio público, se assim o for.” (1) (grifei) (MORAES, Alexandre de. in Direito Constitucional, 17º ed., Rio de Janeiro, Editora Atlas S.A, 2005, p. 167)

Forte em tal entendimento, aliás, o STJ vem decidindo de forma mansa:

“AÇÃO POPULAR — PROCESSUAL CIVIL — PRESCRIÇÃO — TERMO INICIAL — CONCESSÃO DE USO DE TERRENO PÚBLICO — LEI EM TESE — EFEITOS CONCRETOS.

– A ação popular visa anular ato administrativo lesivo ao patrimônio público. Tem como destinatário ato concreto, ilegal e lesivo ao patrimônio público. Não serve para agredir lei em tese.

– Conta-se o prazo prescricional a partir da lavratura da escritura de concessão de uso sobre terreno público, e não da edição da lei.

(STJ – RESP 337447 – 1ª Turma – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJ 19/12/2003)

“PROCESSO CIVIL — AÇÃO POPULAR — NULIDADE DO FAT (LEI 7.998/90) — ADEQUABILIDADE.

1 – A ação popular pode impugnar ato administrativo e lei de efeito concreto.

2 – Como ação erga omnes, não admite impugnação de lei em abstrato.

3 – Hipótese em que o pedido foi o de decretação de nulidade do FAT e do art. 10 da Lei n.º 7.998/90 que o instituiu.

4 – Recursos especiais providos.”

(STJ – RESP 519356 – 1ª Turma – Rel. Min. Eliana Calmon – DJ 21/06/2004)

“PROCESSO CIVIL — AÇÃO POPULAR — NULIDADE DO FND — FUNDO NACIONAL DE DESESTATIZAÇÃO — LEI 8.031/90 — INADEQUABILIDADE.

1 – A ação popular pode impugnar ato administrativo e lei de efeito concreto.

2 – Como ação erga omnes, não admite impugnação de lei em abstrato.

3 – Hipótese em que o pedido foi o de decretação de nulidade do FND e do art. 9º da Lei n.º 8.031/90, que o instituiu.

4 – Recurso especial provido para extinguir o feito sem julgamento do mérito.”

(STJ – RESP 504552 – 2ª Turma – Rel. Min. Eliana Calmon – DJ 14/06/2004)

Então, infere-se que posto não possa atacar lei em tese, a ação popular pode ser manejada nas hipóteses em que se vislumbram, diante da edição da norma, o surgimento de atos de efeitos concretos.

No caso sub examine, verifica-se, da simples leitura da MP impugnada — em cujo art. 38, curiosamente, estabelece uma “vacatio legis “que, a partir de hoje (15/08/2005), poderão ocorrer atos de efeitos concretos, como, por exemplo: a transferência da competência para arrecadar, fiscalizar, administrar, lançar e normatizar as atribuições descritas no art. 3º da MP; a transferência do acervo técnico e patrimonial e das dotações orçamentárias do INSS, previstas nos incisos I e II do art. 21; a transferência de exercício dos servidores administrativos lotados no INSS, prevista no art. 20 da MP; e, em especial, a transferência para a União dos imóveis pertencentes ao INSS, na forma do art. 23.


Diante dessas constatações, observa-se, num juízo de cognição sumária, que, na hipótese dos autos existem atos de efeitos concretos necessariamente decorrentes da MP impugnada (o que supera eventual preliminar de carência de ação) e que, eventual subsunção às hipóteses da Lei de Ação Popular, particularmente lesividade ao patrimônio público, é questão de mérito.

Deste ângulo de visada, pois, admissível a presente ação popular.

Da análise da documentação anexada aos presentes autos, ficou comprovado que a autora popular (que demonstra sua condição de eleitora) efetivamente tem interesse no feito, sendo, portanto, legitimada para figurar no pólo ativo da presente ação.

Quanto à legitimidade passiva, dispõe o art. 6º da Lei de Ação Popular (Lei n.º 4.717/65) que“a ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”

A propósito, o STJ proferiu a seguinte decisão:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POPULAR. ANULAÇÃO DE PORTARIAS QUE CONCEDERAM PENSÃO VITALÍCIA A EX-PREFEITOS. LEGITIMADOS PASSIVOS. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO.

1 – Há litisconsórcio passivo necessário, na ação popular, entre as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, e os beneficiários diretos do mesmo que deram ensejo efetivo ao malsinado ato. Desnecessária é a citação de membros dos Tribunais de Contas.

2 – Sendo o objeto da demanda popular a anulação de portaria que concedeu, com base em lei posteriormente declarada inconstitucional, pensão vitalícia a ex-prefeitos, descabe incluir os membros da Câmara Municipal que votaram o respectivo projeto.

3 – Recurso não conhecido.

(STJ – RESP 171317/ RJ – 5ª Turma – Rel. Min. Edson Vidigal – DJ 29/03/1999)

Assim, pois, além da União e do Presidente da República, tem razão a autora popular quando requer seja emendada a inicial para incluir no pólo passivo o Excelentíssimo Senhor Ministro da Fazenda, o Excelentíssimo Senhor Ministro da Previdência Social, o Excelentíssimo Senhor Advogado Geral da União e, bem assim, o Ilustríssimo Senhor Presidente do Instituto Nacional do Seguro Social.

No que concerne à competência para o julgamento do feito, destaque-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que compete à Justiça Federal de 1ª Instância decidir as ações populares quando a matéria se insere nos termos do art. 109 da Carta Magna, ainda que o Presidente da República seja litisconsorte passivo necessário, fixado na decisão seguinte:

“AÇÃO ORIGINÁRIA. QUESTÃO DE ORDEM. AÇÃO POPULAR. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: NÃO-OCORRÊNCIA. PRECEDENTES.

1. A competência para julgar ação popular contra ato de qualquer autoridade, até mesmo do Presidente da República, é, via de regra, do juízo competente de primeiro grau. Precedentes.

2. Julgado o feito na primeira instância, se ficar configurado o impedimento de mais da metade dos desembargadores para apreciar o recurso voluntário ou a remessa obrigatória, ocorrerá a competência do Supremo Tribunal Federal, com base na letra n do inciso I, segunda parte, do artigo 102 da Constituição Federal.

3. Resolvida a Questão de Ordem para estabelecer a competência de um dos juízes de primeiro grau da Justiça do Estado do Amapá.”

(STF – AO 859 QO / AP – Rel. Min. Ellen Gracie – Órgão Julgador: Tribunal Pleno – DJ 01-08-2003)

Acrescente-se que a possibilidade, em tese, de deferir a liminar pleiteada encontra-se expressamente prevista na Lei n.º 8.437, de 30/06/1992, art. 1º, § 2º.

Pois bem, a questão posta nos autos exige o exame dos dispositivos legais que regem a matéria.

O tema em questão é tão relevante que a Constituição Federal dedica capítulo inteiro à Seguridade Social (arts. 194 a 204), estabelecendo, no art. 195, § 2º, verbis:

“Art. 195 -A Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

……………………………………………………….

§ 2º -A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos.” (grifei)


Com base nessa determinação, a Lei Complementar n.º 101/2000 estabeleceu, para o caso que interessa, dois dispositivos extremamente relevantes, quais sejam:

“ CAPÍTULO VIII

DA GESTÃO PATRIMONIAL

Seção I

Das Disponibilidades de Caixa

Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação serão depositadas conforme estabelece o § 3o do art. 164 da Constituição.

§ 1o As disponibilidades de caixa dos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos, ainda que vinculadas a fundos específicos a que se referem os arts. 249 e 250 da Constituição, ficarão depositadas em conta separada das demais disponibilidades de cada ente e aplicadas nas condições de mercado, com observância dos limites e condições de proteção e prudência financeira.

§ 2o É vedada a aplicação das disponibilidades de que trata o § 1o em:

I – títulos da dívida pública estadual e municipal, bem como em ações e outros papéis relativos às empresas controladas pelo respectivo ente da Federação;

II – empréstimos, de qualquer natureza, aos segurados e ao Poder Público, inclusive a suas empresas controladas.”

……………………………………………………….

“Art. 68. Na forma do art. 250 da Constituição, é criado o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, com a finalidade de prover recursos para o pagamento dos benefícios do regime geral da previdência social.

§ 1o O Fundo será constituído de:

I – bens móveis e imóveis, valores e rendas do Instituto Nacional do Seguro Social não utilizados na operacionalização deste;

II – bens e direitos que, a qualquer título, lhe sejam adjudicados ou que lhe vierem a ser vinculados por força de lei;

III – receita das contribuições sociais para a seguridade social, previstas na alínea a do inciso I e no inciso II do art. 195 da Constituição;

IV – produto da liquidação de bens e ativos de pessoa física ou jurídica em débito com a Previdência Social;

V – resultado da aplicação financeira de seus ativos;

VI – recursos provenientes do orçamento da União.

§ 2o O Fundo será gerido pelo Instituto Nacional do Seguro Social, na forma da lei.” (grifei)

Assim, depreende-se — numa análise ligeira — que a gestão dos recursos da Seguridade Social é garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000), seja destacando as disponibilidades de caixa do Regime de Previdência Social (Geral e Próprio dos Servidores Públicos) das disponibilidades dos demais entes da Federação, seja instituindo fundo específico (Fundo do Regime Geral de Previdência Social), gerido pelo INSS com vistas a “prover recursos para o pagamento dos benefícios do regime geral da previdência social”.

Ocorre, entanto, a exposição de motivos da MP nº 258/05 destaca o seguinte aspecto:

“5. Neste propósito, os arts. 1o a 3o estabelecem que a administração tributária e aduaneira passa a ser centralizada no Ministério da Fazenda, mediante a transformação da Secretaria da Receita Federal em Receita Federal do Brasil, transferindo-se para este órgão as competências do Ministério da Previdência Social para arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do parágrafo único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, das contribuições instituídas a título de substituição e das contribuições devidas a terceiros, bem como as demais competências correlatas e decorrentes, inclusive as relativas ao contencioso administrativo-fiscal. Registre-se que estas modificações não alteram a destinação exclusiva dos valores arrecadados ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social, nem haverá prejuízos nas transferências de informações entre o INSS e o órgão que está sendo criado (arts. 3o, § 2o, 5o, 6o e 14, § 6o).”

Vale salientar que dispõe o § 2º do art. 3º da MP em questão:

“§ 2o – O produto da arrecadação das contribuições sociais de que trata o caput, mantido em contabilidade e controle próprios e segregados dos demais tributos e contribuições sociais, será destinado exclusivamente ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”

Em que pese a literalidade do dispositivo supracitado, observa-se que, se por um lado ele salientou aspectos desnecessários (como a destinação exclusiva dos valores arrecadados para o pagamento de benefícios previdenciários), por outro não esclareceu que o depósito deve se dar em conta apartada e à disposição do INSS, o que permitiria a gestão dos recursos na forma exigida pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Realmente, nos termos da citada Lei de Responsabilidade Fiscal, toca ao INSS a gestão do fundo estabelecido pelo seu art. 68, que, aliás, compõe-se, dentre outros, das contribuições que a União pretende cobrar pessoalmente.


Observe-se que para atingir tal desiderato, a MP em questão autoriza o Poder Executivo a transferir do INSS e do Ministério da Previdência Social para o Ministério da Fazenda (órgão obviamente fora do Sistema de Seguridade Social) pessoal, recursos, remanejar dotações orçamentárias etc.

Então, até aqui, parece haver, de fato, forte violação à autonomia da gestão dos recursos da Seguridade Social que, convém reprisar, é um dos pilares estabelecidos pela Carta Política à Ordem Social.

Não é só. A cobrança de tais contribuições (que, à força da Lei de Responsabilidade Fiscal, são receitas do INSS) viola, igualmente, a Lei Complementar n.º 73/93, que confere à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional competência para tratar da dívida ativa própria da União (2) e, aos órgãos jurídicos das Autarquias e das Fundações Públicas, a cobrança de suas respectivas dívidas (3).

Não se diga que as contribuições em questão são da União, porque, a prevalecer tal entendimento, já deveriam estar sendo cobradas pela Fazenda Nacional, o que não ocorre. De mais a mais, a Lei de Responsabilidade Fiscal, como já reprisado, destina ao INSS a gestão de tais recursos.

Foi tal limitação de competência da Procuradoria da Fazenda Nacional, aliás, que provavelmente inspirou a regra contida no § 5º do art. 14 da MP n.º 258/05, que transfere para a União “a dívida ativa do INSS …”

Impõe-se consignar, ainda, que a Medida Provisória em questão transfere à União os “imóveis pertencentes ao INSS, identificados pelo Poder Executivo como necessários ao funcionamento dos órgãos a que se referem os arts. 1º e 14, caput, que, na data da publicação desta Medida Provisória, não estejam vinculados às atividades operacionais do INSS” (art. 23).

No artigo em comento, salta aos olhos que o Poder Executivo, a seu talante, busca transferir para a União parte do patrimônio imobiliário do INSS, bastando que entenda necessário ao desempenho da nova função a que se propõe, sem que a MP traga sequer critérios objetivos de modo a resguardar a Autarquia Previdenciária.

Este é apenas o primeiro problema jurídico no que atine a tal transferência.

O mesmo art. 23 teve seu parágrafo único assim redigido:

“Art. 23 – ……………………………………….

Parágrafo único – A União, no prazo de até cinco anos, compensará financeiramente o Regime Geral da Previdência Social, para os fins do art. 61 da Lei n.º 8.212, de 1991, pelos imóveis transferidos na forma do caput, observada a avaliação prévia dos referidos imóveis nos termos da legislação aplicável.”

Além da clara violação da personalidade jurídica própria do INSS e de seu direito de propriedade, o dispositivo em questão estabelece, aparentemente, como que uma desapropriação ao arrepio das normas que regem a matéria, incluindo-se aí as insertas na Carta Constitucional (direito a justa e prévia indenização, e.g.).

De mais a mais, prevê unilateralmente prazo de cinco anos para a compensação financeira da Seguridade Social, novamente vulnerando a Constituição Federal e a LRF.

De fato, ocorre que a multicitada Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece que exatamente tais imóveis compõem o fundo referido no § 1º do art. 68 (4) e, em razão disto e de tudo o mais já argüido, resta que, juridicamente é descabida sua transferência para o patrimônio da União por meio de mera Medida Provisória, que está claramente afrontando dispositivo de lei complementar.

O artigo 23 em questão, assim, dá um “cheque em branco” a que o Poder Executivo transfira imóveis do INSS, que estão, como dito, à força de Lei Complementar, afetos ao pagamento de benefícios.

Prosseguindo.

Oportuno destacar da Exposição de Motivos da mesma MP que a sua finalidade clara é centralizar a arrecadação, fiscalização, administração, lançamento e normatização de tributos federais, o que, além dos óbices acima apontados, viola também o princípio da descentralização da gestão administrativa da Seguridade Social, que, a propósito, está claramente estampado como objetivo constitucional de observância obrigatória pelo Poder Público (5).

Apenas à guisa de registro, sublinhe-se que o princípio da descentralização da gestão dos recursos da Previdência Social vem sofrendo uma série histórica de violações que, embora não venha ao caso, de modo algum justifica que se prossiga com o processo.

A Medida Provisória impugnada reputa-se, pois, inconstitucional e ilegal, diante das constatações supracitadas.

Tal situação, evidentemente, não bastaria para o deferimento da medida liminar em sede de ação popular não fosse a percepção de que os atos administrativos de efeitos flagrantemente concretos decorrentes desta MP conduzem à lesividade do patrimônio da Seguridade Social e, em especial, do INSS (entidade autárquica), nos termos do artigo 1º da Lei n.º 4.717/65.


Com efeito, além da transferência de patrimônio e de dotações orçamentárias em favor do Ministério da Fazenda (o que, por si só justificaria a medida), a centralização pretendida, violando a gestão descentralizada e democrática, gera políticas fiscais dissociadas dos valores idealizados pelo constituinte relativamente à Seguridade Social.

Ademais, assiste razão à autora popular quando afirma que o § 2º do art. 3º da MP impugnada não garante o respeito à competência para gerir o Fundo de que trata o art. 68 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao contrário, a arrecadação dos recursos por órgão fora do sistema evidentemente desrespeita a gestão atribuída ao INSS.

Há, claramente, uma relação entre o binômio débitos e créditos, cujo equilíbrio resta vulnerado na medida em que o órgão responsável pela concessão dos benefícios não tem controle sobre a política de arrecadação, incluindo-se, aí, os recursos que seriam dirigidos ao 2º Conselho de Contribuintes.

Sublinhe-se que os recursos interpostos referentes às contribuições sociais transferidas via MP passam, agora, a ser examinados pelo 2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, de modo que a Seguridade Social perde o controle sobre a tramitação e a decisão dos recursos que redundarão no recebimento ou não dos valores necessários à consecução de seus fins, o que vulnera, seguramente, o conceito de auto-gestão, tudo como assegurado pela Carta Constitucional.

É inegável que o responsável pela gestão de algum empreendimento exerce controle sobre os créditos e sobre os débitos, inclusive do ponto de vista normativo. Este é, segundo entendo, o sistema estabelecido pela lex legum e, bem assim, pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Por último, a violação da Lei Complementar n.º 73/93, art. 17, como já demonstrado, pode, em tese, implicar severos prejuízos aos cofres da Previdência na medida em que as peças sejam assinadas por quem não detém competência legal para tanto.

Destarte é que, de modo solar, vislumbram-se a fumaça do bom direito e o periculum in mora que ensejam a medida vindicada, especificamente quanto aos aspectos acima tratados.

No mais, não vislumbro, numa visão de cognição sumária, nenhum outro ato que justifique a concessão de medida liminar.

Ante o exposto, impõe-se a concessão parcial da liminar pleiteada para que os réus abstenham-se de editar qualquer ato ou, caso já tenham editado, suspendam sua execução, relativamente: à transferência da competência para arrecadar, fiscalizar, administrar, lançar e normatizar as atribuições descritas no art. 3º da MP n.º 258, acometida à Receita Federal do Brasil; à transferência da representação judicial e extrajudicial da Procuradoria-Geral Federal para a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, prevista no art. 14 da MP 258/2005; à transferência do acervo técnico e patrimonial e das dotações orçamentárias do INSS, previstas nos incisos I e II dos artigos 21 e 23; à transferência de exercício dos servidores administrativos lotados no INSS, prevista no art. 20 da MP; e, enfim, à transferência dos cargos em comissão prevista no art. 16.

Intimem-se e oficie-se com urgência, inclusive o MPF.

Dê-se ciência desta decisão aos relatores das ADIs em curso.

P. I

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2005.

Hudson Targino Gurgel

Juiz Federal Substituto no exercício da titularidade da 2ªVara

SHR

Notas de rodapé

(1) MEIRELLES, Hely Lopes. “Estudos e pareceres de direito público.” São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 369. v. 9.

(2) “Art. 12 (…) I – apurar a liquidez e certeza da dívida ativa da União de natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança, amigável ou judicial; II – representar privativamente a União, na execução de sua dívida ativa de caráter tributário; (…)

(3) “Art. 17 – Aos órgãos jurídicos das autarquias e das fundações públicas compete:

I – a sua representação judicial e extrajudicial;

II – as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos;

III – a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial.” (grifei)

(4) “Art. 68 (…) § 1o O Fundo será constituído de:

I – bens móveis e imóveis, valores e rendas do Instituto Nacional do Seguro Social não utilizados na operacionalização deste; (…)

(5) “Art. 194 (…) Parágrafo único – Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: (…) VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com a participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (Redação dada pela EC n.º 20/98).”

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