Entrevista

Represamento de recursos entupiu a Justiça em SP

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15 de agosto de 2005, 14h34

“O juiz ideal seria alguém com mais de trinta anos, casado, com filhos, com boa formação jurídica e cultural (para não dizer erudito), que tenha viajado bastante pelo mundo e tenha boa situação financeira, de preferência com casa própria e tudo o mais”. Esta frase foi escrita em um artigo publicado em outubro de 2003 pela Consultor Jurídico e assinado pelo juiz José Tadeu Picolo Zanoni. No artigo, Zanoni continuava: “Isso é uma provocação. Não existe ninguém com esse perfil disposto a começar uma carreira no interior, sem vitaliciedade e ganhando o salário atual”.

Dois anos depois do artigo, não seria exagero dizer que Zanoni está muito próximo da definição de juiz ideal que ele teceu. Sem entrar em consideração sobre aquelas informações que dizem respeito apenas a ele mesmo e à Receita Federal, pode-se dizer que ele construiu ao longo de mais de dez anos uma sólida carreira de juiz estadual, a figura dentro da estrutura do Judiciário brasileiro que de maneira mais direta e universal encarna o papel de agente da Justiça junto à população.

Nesta entrevista à ConJur, Zanoni tece considerações sobre as grandes questões que envolvem a vida de um juiz: as dificuldades do trabalho (“Fora da capital, se quisesse trabalhar com computador, tinha de usar o meu”), das disputas entre juiz e advogado (“Se o mandado de busca em escritório tem mandado não é invasão”) das disputas entre Justiça Estadual e Federal (“O juiz estadual é o primo pobre da Justiça”), da maneira mais justa de fazer Justiça (“O juiz precisa se convencer do que é justo e depois buscar a fundamentação jurídica”).

Formado em 1989, pela USP, Zanoni se tornou delegado de polícia no ano seguinte. Foi designado para a 98ª DP, no Jardim Miriam, divisa de São Paulo com Diadema, um lugar com alto índice de criminalidade. Ao longo de 1 ano e 9 meses como delegado passou por outros bairros barra pesada, como o centro da capital, Santo Amaro e Capão Redondo.

Em 1992, aprovado no concurso da magistratura, iniciou nova carreira como juiz. Desta vez, seguindo os caminhos naturais da magistratura paulista, começou em Araraquara e foi pulando de comarca em comarca, até chegar à terceira entrância e voltar à capital. Hoje está em Cotia, na área metropolitana de São Paulo.

Participaram da entrevista com Zanoni, o diretor de redação Márcio Chaer, o editor executivo Maurício Cardoso e os repórteres Leonardo Fuhrmann, Luciana Nanci e Maria Fernanda Erdelyi.

Leia a entrevista

ConJur — As condições de trabalho do juiz da primeira instância são satisfatórias?

Zanoni — A gente ainda tem problema de estrutura física, espaço. Por exemplo, os cartórios não são adequadamente projetados para a pessoa trabalhar de forma produtiva. A estrutura de salas de audiência, de gabinete ainda não é a ideal. O ideal talvez seja o que a gente tem no Fórum Criminal Mario Guimarães, na Barra Funda, em São Paulo: sala de audiência, pequeno gabinete, uma estrutura para você entrar com os presos e fazer os reconhecimentos pessoais.

ConJur — Tem um projeto de lei que debate a fundamentação das sentenças. Ela não pode ser muito longa e técnica porque daí a parte não entende, e não pode ser muito curta e superficial porque vai faltar fundamentação. Onde fica o meio termo?

Zanoni — Isso é muito complicado. Uma solução seria o Conselho Nacional de Justiça pegar uma sentença e falar: “olha, isso é uma boa fundamentação para um caso assim. Mais do que isso é excessivo”. Do jeito que está hoje é impossível falar isso.

ConJur — Quanto mais simples melhor. Ou não?

Zanoni — Tem gente que coloca como um grande problema da Justiça a prolixidade, mas não vejo isso no dia-a-dia como um problema. Eu não vejo decisões extensamente fundamentadas. Tem gente que se esmera. Existem sentenças que eu vejo e fico impressionado como a pessoa escreve com aquela linguagem. Mas isso é raridade.

ConJur — É um comportamento dos juizes mais antigos?

Zanoni — Juiz novo que escreve assim também. Um colega vivia falando que os juízes têm de se aproximar da imprensa, têm de se aproximar do povo… Um dia vi uma sentença dele e falei “meu deus, que coisa, que linguagem de antanho”. A forma como ele escrevia era contraditória com o que ele pregava.

ConJur — Dá para estabelecer um modelo?

Zanoni — Não se pode dentro do nosso modelo de Poder Judiciário falar “olha, agora tem que ser assim. Então quem escrever mais está sendo exagerado, quem escrever menos está sendo relapso”.

ConJur — A sentença deve ser redigida de tal forma que a parte consiga entender?

Zanoni — Não necessariamente porque quem lê a sentença é o advogado. A sentença não é feita para a parte ler e entender. Porque também é uma coisa complicada ficar pensando nisso. Eu me pergunto até que ponto uma pessoa comum entende o noticiário econômico nos jornais? A parte pode ter o mesmo problema ao ler a sentença.


ConJur — A imprensa tende a simplificar as coisas do Direito e da Justiça. Qual é o efeito disso?

Zanoni — Por exemplo, a toda hora se coloca que o procurador-geral da República determinou… Ora, procurador-geral é parte. Ele pode determinar a instauração de um inquérito civil, mas se estamos falando de processo ele pode apenas pedir. Quem determina, quem decide, é Tribunal, é juiz. Esse é o tipo de coisa que acaba confundindo as pessoas.

ConJur — Para a população em geral é complicado entender a Justiça.

Zanoni — Tem uma questão de nomenclatura que atrapalha. Procuradoria-Geral da República, Procuradoria da Fazenda, Procuradoria de Justiça do Estado, Procuradoria-Geral do Estado, é uma grande confusão. Procuradoria-Geral do Estado é um órgão do Poder Executivo que atua na defesa do estado nos processos. Ao passo que a Procuradoria da República, Procuradoria-Geral de Justiça Estadual são órgãos do Judiciário com independência, autonomia e papéis diferentes no processo.

ConJur — Levantamento feito pelo Supremo Tribunal Federal mostra que, em São Paulo, a Justiça de primeira instância é altamente produtiva enquanto a segunda instância é lenta, defasada, tecnologicamente atrasada. Como o senhor vê isso?

Zanoni — No que se refere à primeira instância a gente vê com felicidade o reconhecimento de algo que já imaginava. Já em relação à segunda instância, a gente fica triste por ver que o Judiciário de São Paulo não é o que mais produz no Brasil. E aí a gente diz “puxa, o que está acontecendo?”. A minha resposta é que isso foi acumulado por causa do represamento na distribuição. Existia uma cota que era distribuída semanalmente. Enquanto isso os agravos continuavam entrando diariamente.

ConJur — O levantamento mostrou também que o problema da Justiça não é o número de juizes.

Zanoni — A gente ouve falar: “tem tantos juízes por habitante, tem tantos processos por habitantes”. Mas tem uma comparação que ninguém faz: o nosso sistema jurídico é semelhante ao de qual país? A gente sabe que é um sistema derivado do direito romano assim como de outros países europeus. Sim, mas lá você não tem uma sociedade como a nossa, você não tem uma concentração populacional como aqui em São Paulo, com 40 milhões de habitantes. Isso gera, em São Paulo, um grande número de processos e a impressão de que talvez o Judiciário não esteja com pessoal suficiente. Agora, em 2005, primeiro ano da reforma do Judiciário, tivemos a unificação dos tribunais e um pequeno aumento de mais ou menos vinte cargos de desembargadores. Daqui a uns dois anos vai ser preciso pensar em um aumento do número de desembargadores.

ConJur — Como o senhor avalia a extinção dos tribunais de alçada?

Zanoni — Extremamente positiva. A unificação dos tribunais em São Paulo está aprovada desde 1999, através de emenda à Constituição do estado. Logo em seguida essa emenda foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal e ninguém falou mais nisso. Aí a discussão voltou durante a reforma do Judiciário e foi implantada agora.

ConJur — Como a unificação dos tribunais contribui para o melhor funcionamento da Justiça?

Zanoni — Os tribunais de alçada foram criados, em 1940, para evitar o crescimento exagerado dos tribunais de Justiça. A idéia era que o juiz seria promovido a juiz de alçada para examinar questões menos complexas do que as que iria encontrar no Tribunal de Justiça. Mas com o tempo a coisa não ficou assim. O que os juízes de alçada examinavam era tão complexo quanto o que ia para o Tribunal de Justiça. A divisão não tinha mais razão de ser. Aqui em São Paulo tínhamos três tribunais de alçada. Primeiro e Segundo Tribunal de Alçada Civil e Tribunal de Alçada Criminal. A soma dava mais de duzentos juízes. E o Tribunal de Justiça tinha 132 desembargadores. Isso significava um gargalo para o pessoal chegar ao fim da carreira.

ConJur — Uma das maiores alegações da falta de eficiência do TJ é a falta de informatização. Como é isso na primeira instância?

Zanoni — A questão da informatização está avançando. Temos agora um convênio com a Nossa Caixa que está bancando os custos da informatização. Cotia, onde estou desde junho do ano passado, foi o primeiro lugar, além da capital, em que não precisava trabalhar com meu próprio computador. No Fórum João Mendes já há uma informatização que propicia ganhos para o cartório. Havia rotinas específicas para implementação do sistema e tudo mais. Agora isto está sendo estendido para o estado inteiro. Tem rotinas específicas para alimentação dos dados do sistema, já é possível acompanhar pela internet. Isso vai propiciar um ganho bem grande.

ConJur — O novo sistema de distribuição no Tribunal de São Paulo parece que não deu muito resultado ainda.

Zanoni — Eu acho que está cedo para falar. O prazo para zerar a distribuição é de seis meses. E existem projetos que ainda não foram para os gabinetes. Quando forem, vai ser possível ver melhor o resultado.


ConJur — De que forma esse gargalo na segunda instância afeta o trabalho da primeira?

Zanoni — Você dá uma sentença e fica quatro, cinco anos esperando o resultado do julgamento do recurso. Eu já ouvi advogado comentando que quando o processo chega a julgamento ele tem que pegar no arquivo para se lembrar do que se trata.

ConJur — Qual é a sua expectativa em relação ao Conselho Nacional de Justiça?

Zanoni — Estou entre os que têm uma boa expectativa para o Conselho.

ConJur — O que o senhor espera do CNJ?

Zanoni — Orientação e planejamento.

ConJur — Na área administrativa?

Zanoni — Na área administrativa. Se ficar só nisso já é um grande papel.

ConJur — O senhor acha que devia ser unificado o sistema de computadores na parte de programas para que o acompanhamento processual de São Paulo, na Bahia e no Amazonas sejam padronizados, por exemplo?

Zanoni — No longo prazo talvez seja interessante. Mas do jeito como está estruturada a Justiça brasileira, com a separação e autonomia dos estados, talvez seja complicado.

ConJur — O Conselho não deveria ser o instrumento para essa padronização?

Zanoni — Talvez seja essa a idéia. O Conselho pode dar publicidade às boas experiências para que sejam adotadas e copiadas.

ConJur — Por enquanto tem sido mais ressaltado o papel disciplinar do Conselho. O senhor acredita que ele deva ser atuante também nesse aspecto?

Zanoni — Não dá para transformar o CNJ numa super-corregedoria. Já temos as corregedorias estaduais instaladas e operando. Elas é que devem ser procuradas, não o Conselho. Mas estão abusando da munição.

ConJur — Qual a sua percepção do conflito entre Justiça Federal e Justiça Estadual em Catanduva, no interior de São Paulo?

Zanoni — Foi uma coisa horrível. Os processos foram da Justiça Estadual para a Federal. A Federal devolveu sem suscitar conflito de competência e usando uma escolta da Polícia Federal que é um negócio fora da realidade. Se você tem um processo para mandar para a Justiça do Trabalho você manda pelo funcionário, pela alçada da Justiça. Você nunca pede uma viatura da Polícia Militar ou da Polícia Civil para acompanhar.

ConJur — O senhor já requisitou força policial para cumprir alguma ordem?

Zanoni — Muitas vezes a gente requisita. Vai lá a pessoa e vai o oficial de justiça e certifica que é preciso força policial e a gente requisita.

ConJur — Mas não contra outra instância.

Zanoni — Num contexto como esse, nunca.

ConJur — O juiz de primeiro grau é o que está mais próximo da população. Ele tem um papel muito importante e é onde nós temos o maior laboratório de teses novas que depois de algum tempo acabam mudando o entendimento das outras cortes. Às vezes, com essa prática, a primeira instância chega a antecipar a aplicação de leis que ainda nem foram aprovadas, como é o caso da lei de falências. O senhor acha isso uma idéia válida?

Zanoni — O caso da lei de falências foi por causa da necessidade prática, porque a lei antiga já estava superada.

ConJur — O que senhor respeita mais o direito ou o justo?

Zanoni — Eu diria que seria o justo mas sempre sou tentado a procurar o fundamento no Direito escrito.

ConJur — O ministro [do Supremo Tribunal Federal] Marco Aurélio disse que primeiro ele tenta ver quem tem o direito e depois ele vai buscar na legislação uma forma de dar razão a quem tem direito. O que o senhor acha disso?

Zanoni — É a mesma coisa que eu falei: primeiro é preciso ver o que é justo e depois tentar achar a fundamentação.

ConJur — Esse é o mecanismo, a receita utilizada pelos juízes?

Zanoni — É, boa parte é.

ConJur — Muitas vezes o juiz não reconhece o direito de quem tem, porque a lei diz diferente. Não é assim?

Zanoni — Talvez ele entenda que a pessoa não tinha direito e foi buscar a fundamentação.

ConJur — Falando da proximidade do juiz de primeiro grau com a população: com a Súmula Vinculante, o STF fixa uma norma de conduta para os juízes que são na verdade os que vêem o que as pessoas fazem. Como o senhor vê esse mecanismo?

Zanoni — Quando se lembra que na Reforma do Judiciário, fizeram um projeto substitutivo prevendo Súmula Vinculante com punição para quem desobedecesse, a gente percebe que a Súmula Vinculante era mais do que a lei. Hoje a lei é essa, se eu não aplico a lei em um julgamento cabe recurso, não cabe punição. Agora, a Súmula Vinculante, do jeito que está, tem de ser aprovada por dois terços do STF e não prevê punição. Eu tenho impressão que pode levar a bons resultados. Muita gente torce para que seja bem aplicada e vai ajudar.


ConJur — Falando dessa questão da importância do juiz de primeiro grau. O senhor acha que precisaria ter um apoio técnico para assuntos específicos sobre os quais não tem formação?

Zanoni — Vamos imaginar um caso de uma imperícia médica. Seria interessante ter um mecanismo de o juiz buscar uma informação sem causar uma celeuma processual. O juiz dá um despacho e fala: “Olha, eu preciso que venha um especialista e me esclareça isso”. Não seria para fazer uma perícia. Seria para esclarecer uma dúvida técnica. “É assim que se faz, assim está correto”. Um corpo de assessores especialistas para auxiliar o Judiciário também seria útil.

ConJur — Como o senhor resolve esse problema hoje?

Zanoni — Eu acredito que a maioria deve resolver informalmente. Você liga para um profissional da área que você conheça e pergunta informalmente.

ConJur — Mas não seria a obrigação do juiz pedir os levantamentos, os estudos? Porque existe uma outra questão que é o custo adicional que uma medida destas pode acarretar.

Zanoni — Um corpo de especialistas pode ser constituído por consultores que estão na própria universidade. O próprio tribunal trataria de encaminhar as consultas. O fato é que a Justiça atende a demandas que correspondem à complexidade da vida que é muito maior. Isso exige uma gama de conhecimento que o juiz não tem e não pode dispor em sua pequena estrutura de trabalho.Cada vez mais ele precisa do suporte de especialistas.

ConJur — Qual o distanciamento que os juízes devem ter da ação? Ele dá a decisão e esquece para não se arrepender? Como o senhor lida com isso?

Zanoni — Em geral, depois que se dá a sentença, não se volta mais nela. Até mesmo porque a sentença esgota a prestação jurisdicional do juiz. Ou seja, depois da minha decisão, só o Tribunal.

ConJur — O senhor já se arrependeu de alguma decisão?

Zanoni — Arrepender eu digo que não, mas tem coisas que você avalia depois de um bom tempo e pensa que poderia ter feito de outra forma. Acho que é mais uma questão de maturidade.

ConJur — O que o senhor acha da proposta de acabar com o embargo declaratório?

Zanoni — Seria interessante. Porque muitas vezes eu observo que os embargos de declaração têm o caráter de infringir. A pessoa quebra a reforma da decisão. Porque o senhor fala: “Quero reformar essa decisão, mas não quero perder tempo com o recurso. Vamos tentar”. E esse “vamos tentar” faz o processo demorar mais. Então nesse aspecto pode ser um bom passo.

ConJur — Mas ao mesmo tempo existe uma linha que defende que a extinção dos recursos é uma violação do direito fundamental de buscar o que você acha que é direito.

Zanoni — Por isso a questão do número grande de recursos ainda vai levar muito tempo para chegar numa solução.

ConJur — E quanto a impedir que a execução seja um segundo processo.

Zanoni — Também é uma idéia interessante. A fase de execução hoje é um outro processo e talvez até mais lento que o processo original.

ConJur — Que medidas poderiam ainda ser aplicadas para aumentar a celeridade da Justiça?

Zanoni — Quem sabe uma revisão nos prazos.

ConJur — Julgamento em turmas, câmaras não seria interessante também?

Zanoni — Em primeiro grau, eu não acredito. Quem defende a idéia diz que as turmas julgam mais democraticamente, fazem uma Justiça mais qualificada. Mas pelo menos em primeiro grau você precisa de uma rapidez que só o exame individual pode dar.

ConJur — Existe um antagonismo natural entre as posições do juiz e da advocacia. O advogado tem uma predominância numérica no Congresso que é onde se fazem as leis. O senhor diria que as leis processuais são predominantemente feitas para favorecer o ponto de vista do advogado?

Zanoni — Diria que sim. A gente precisa ouvir toda a sociedade. É impossível fazer qualquer coisa sem levar em conta a diversidade de opiniões e levar em conta as discordâncias. Pega aí um exemplo, a lei do juizado especial. Diria que ela é uma lei com pouca penetração no pensamento do advogado e talvez por isso seja tão criticada por eles.

ConJur — Por que no fórum tem elevador privativo para juízes e promotores? Estacionamento privativo. Daqui a pouco vai ter um banheiro só dele, uma escada onde só ele pode andar. O juiz não pode encontrar com as pessoas?

Zanoni — Eu vou dar varias explicações e o pessoal vai ler e vai falar: “Ele está mentindo, ele está distorcendo”. Mas aqui em Pinheiros não tem elevador privativo. Agora você pega lá no João Mendes: tem vinte elevadores, um para juiz e promotor, outro para advogado, e os outros para o público em geral.

ConJur — Mas isso não é o resquício de uma estrutura muito antiga, de um tempo em que não havia computador, em que tudo estava organizado de uma maneira diferente? A Justiça não é uma entidade conservadora, por sua própria natureza?

Zanoni — Com certeza, se a gente partir de uma consideração republicana de que todos são iguais perante a lei, ao pé da letra, não tinha elevador privativo.


ConJur — Tem um outro assunto que é a reestruturação das entrâncias no estado. O que isso vai significar para o juiz?

Zanoni — Para o juiz significa uma redução dos degraus na carreira. Para quem está começando, significa um salário inicial maior. Esse é um ponto importante. O estudante recém-formado fala: “Bom, o salário inicial de juiz estadual é esse”. Ao redor de R$ 5 mil. O salário do juiz federal, de juiz do trabalho, do delegado da Polícia Federal é tanto. Puxa, que mau negócio é ser juiz estadual, não é? A reclassificação de entrância é uma reclamação das comarcas grandes. O pessoal de Ribeirão Preto é interessadíssimo em que Ribeirão Preto vire entrância final no mesmo pé de São Paulo, de forma que se possa ir direto da comarca para o Tribunal sem precisar passar por São Paulo. Não só Ribeirão como Santos, Guarulhos, Campinas, Sorocaba, São José dos Campos, São José do Rio Preto, Bauru.

ConJur — Em prol do cidadão isso afeta alguma coisa?

Zanoni — Não.

ConJur —Qual sua opinião sobre a quarentena dos juízes estabelecida pela reforma?

Zanoni — Foi mais uma conquista dos advogados do que dos juízes. O lado bom da quarentena é que se o sujeito aposentou no tribunal, não vai advogar naquele tribunal porque havia a suspeita de que isso pode gerar algum tipo de influência nefasta.

ConJur — Como o senhor viu o conflito entre a OAB e os advogados contra o Judiciário e a Polícia Federal por causa das operações de busca e apreensão em escritórios de advocacia?

Zanoni — É uma coisa para ser analisada com muito cuidado. Como o pessoal falou: a Polícia Federal cumpriu uma ordem judicial e ponto final. Então agora cabe uma discussão mais dentro do caso específico.

ConJur — A questão é se a ordem judicial estava correta? O problema é da polícia ou é do juiz?

Zanoni — Tem os limites da atuação, como foram feitas as buscas e apreensões, as prisões. Isso é uma discussão.

ConJur — O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, falou para o presidente da Fenapef [Federação Nacional dos Policiais Federais] que não tinha que se condenar a atuação da Polícia Federal porque ela só cumpria uma ordem judicial. Mas um dos grandes questionamentos é justamente a correção das ordens judiciais. É o caso, por exemplo, do mandado expedido em um estado para ser cumprido em outro.

Zanoni — Essa é uma discussão que tem que ser feita, a validade desse tipo de procedimento. Agora, no que se refere à Policia Federal, o Marcio Thomaz Bastos falou o que era esperado dele. A Polícia Federal cumpriu a ordem.

ConJur — A OAB reclamou muito da questão de se estar violando prerrogativas do advogado.

Zanoni — O acesso aos autos, o acesso ao teor da decisão, isso tudo é fundamental e necessário.

ConJur — O senhor concorda com o termo invasão de escritório?

Zanoni — Eu não concordo muito não. Se houve um cumprimento a uma ordem, não é invasão.

ConJur — Os juízes federais são mais unidos do que os juízes estaduais?

Zanoni — Eu tenho essa impressão. Talvez seja porque o número deles é bem menor.

ConJur — Eles são mais corporativos?

Zanoni — Talvez sejam.

ConJur — Eles ficam mais fortes para reivindicar.

Zanoni — Eles ficam mais fortes para reivindicar direitos até porque eles decidem as causas da União. Isso é fundamental.

ConJur — A Justiça Estadual é o primo pobre aos olhos do governo?

Zanoni — Considerando o número de processo que são julgados pela Justiça Estadual, não resta dúvida de que ela deveria receber mais atenção. Já que se fala cada vez mais de números, tem que ser lembrado o peso da Justiça Estadual no volume de processos decididos no país.

ConJur — Agora, com a federalização, aumentam os julgados pela Justiça Federal.

Zanoni — O único pedido de federalização feito até agora foi indeferido. É interessante. Apesar dos muitos pedidos encaminhados ao procurador-geral da República, ele só encaminhou um caso para o Superior Tribunal de Justiça e perdeu. Foi o caso da freira no Pará, que não foi passado para a esfera federal.

ConJur — São Paulo está próximo de criar uma Defensoria Pública. O que o senhor acha? Sob a ótica do juiz vai melhorar?

Zanoni — Eu diria que qualquer ganho na prestação da assistência judicial para a população representa uma melhora.

ConJur — O senhor sente esse problema no dia-a-dia?

Zanoni — Sinto porque boa parte dos processos, por exemplo, do Direito de família, são tocados por profissionais da assistência judicial. Há a necessidade de mais estrutura para eles. E acaba se refletindo no Judiciário porque a pessoa pode ter uma assistência, uma orientação jurídica de melhor qualidade.


ConJur —Existe uma indústria do dano moral?

Zanoni — O dano moral está se incorporando ao Direito, ao dia-a-dia do Judiciário. As pessoas estão pedindo indenização por danos que acreditam terem ocorrido. A gente ainda está caminhando para uma pacificação sobre o que é dano moral, onde acontece o dano moral e quanto vale o dano moral.

ConJur — É difícil quantificar o dano moral?

Zanoni — É difícil.

ConJur — Como o senhor faz para calcular?

Zanoni — Basicamente a gente vai para a jurisprudência. Pega casos parecidos e fixa. Agora, na questão dos Juizados Especiais há uma margem maior porque os danos às vezes não são tão graves. Então você fixa. Qual o dano causado por um aparelho elétrico que não funcionou direito depois de ser concertado. Então os valores são muito baixos.

ConJur — Um aparelho que não funciona é dano moral? Dano moral é quando tem uma ofensa à intimidade da pessoa, à dignidade e à honra dela. Se minha máquina de lavar quebrar vai ofender a minha honra ou a minha dignidade?

Zanoni — Talvez não. Agora, existe caso em que você atribui um dano pela dor e sofrimento causados. Às vezes é uma indenização pelo descumprimento de uma expectativa.

ConJur — Um advogado acusou o Juizado Especial de estar concedendo danos morais para todo mundo, às vezes por um mero incomodozinho.

Zanoni — Por isso eu digo que a gente ainda está caminhando para uma estabilização da jurisprudência. O que é dano, o que não é dano? Tem uma linha que fala que isso é mero aborrecimento, não é dano. Daqui a um tempo, daqui a uns dez anos, sei lá, a gente vai ter uma lista: isto aqui não causa dano, isto aqui causa dano…

ConJur — A imprensa se preocupa porque está sempre sofrendo ações por dano moral.

Zanoni — A imprensa reage um pouco desproporcionalmente quando avalia casos contra órgãos de imprensa. Em muitos casos os órgãos de imprensa ganharam; em outros, perderam. Eu tenho até medo de falar. A Folha de S. Paulo foi processada por três pessoas por causa de uma charge do Angeli. Mas foram três pessoas dentro de uma categoria profissional de 15 mil pessoas. Isso diz o quê? De 15 mil pessoas potencialmente ofendidas por aquele desenho só três entraram com a ação. Puxa, talvez estas três estejam erradas. Se não me engano elas perderam. Num outro caso, houve um abuso policial em uma ação em Diadema e um órgão de imprensa divulgou o fato. Todos ou quase todos os policiais daquela cidade entraram com ação contra aquele órgão de imprensa. Estão perdendo. Poucos, pouquíssimos ganharam. É o tal negócio: o povo sabe separar o joio do trigo. Não é porque você é policial em Diadema que você é abusado. Certo? Não é assim.

ConJur — O trabalho da imprensa pode atrapalhar o trabalho da Justiça?

Zanoni — Acredito que não. A velocidade das coisas é que é diferente. A imprensa trata com o acontecimento do dia, a apuração e a divulgação são imediatas. Na Justiça a coisa é mais lenta. Como esse caso dos irmãos Cravinhos [Christian e Daniel, presos sob acusação de serem os executores do assassinato do casal Manfred e Marisia Richthofen]. Tem gente acreditando que eles não vão ser soltos porque têm um advogado mais barato que o advogado da moça [ Suzanne Richthofen, filha do casal, acusada de ser a mentora do assassinato e já libertada em função de um Habeas Corpus apresentado pelo advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira] . Mas eu ainda acredito que eles vão ser soltos depois. Então falta um pouco essa informação de que eles podem ser soltos. Se eles forem soltos no mês que vem não é porque o relator do caso teve uma visão espiritual e soltou eles, mas porque seguiu o rito normal da Justiça.

ConJur — Você pode ter mais ou menos chance de conquistar o que pleiteia na Justiça de acordo com quanto pode pagar para o advogado?

Zanoni — O quanto você pode pagar significa uma avaliação de qualidade. Você paga mais pelo que é melhor. O que é melhor produz melhores resultados. Se a gente aceitar esse raciocínio então a resposta é positiva. Agora, às vezes você pode ter bons resultados também pagando menos.

ConJur — O jornalista deve estar sujeito ao sigilo de Justiça?

Zanoni — Em princípio, não. Agora, se o jornalista teve conhecimento de um processo que corre em segredo de Justiça, lê e publica sem observar algumas regras, ele deve ser responsabilizado.

ConJur — O senhor quer dizer o que com isso? Sem observar as regras da Justiça ou do jornalismo?

Zanoni — O que eu quero dizer é que ele possa narrar o fato sem revelar os envolvidos. Mas não é o caso de punir. Até mesmo porque o jornalista pode ter ficado sabendo disso por uma pessoa que contou o caso sem ter acesso aos autos.

ConJur — E o sigilo de fonte?

Zanoni — É essencial. Eu acho que realmente deve ser observado. Mas é curioso que a discussão surgiu nos Estados Unidos e não aqui no Brasil.

ConJur — É preocupante isso.

Zanoni — Extremamente preocupante. Quando eu ouvi a decisão da Justiça americana eu fiquei decepcionado.

ConJur — Porque era um direito intocável.

Zanoni — Era, até agora era.

ConJur —O que pode significar essa decisão?

Zanoni — Pode significar o enfraquecimento da observância das liberdades democráticas lá. O que é danoso para o resto do mundo. Os Estados Unidos eram um exemplo de respeito ao direito de expressão para o resto do mundo.

ConJur —Temos a impressão de que em nome da proteção contra o terrorismo existe uma tendência a ser menos tolerante em relação às liberdades individuais. A morte do brasileiro em Londres, confundido com um terrorista, é bem característica. A polícia pode ter errado, mas ela seguiu o manual dela.

Zanoni — Exatamente. Ele foi morto com base em uma hipótese. E se ele fosse um terrorista e tivesse detonado a bomba?

ConJur — Isso justifica?

Zanoni — Pra mim, não. Mas para eles está justificando.

ConJur — Mas quando vemos, cada vez com mais freqüência e mais facilidade, a quebra sigilo bancário ou de sigilo telefônico não há também um avanço sobre os direitos individuais?

Zanoni — Mas se isso é feito legitimamente em uma investigação, não há quebra da ordem.

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