Tortura Nunca Mais

Juíza manda ONG Tortura Nunca Mais indenizar policiais

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8 de agosto de 2005, 12h27

O grupo Tortura Nunca Mais, organização não governamental que há 20 anos vive de denunciar práticas de tortura e autoritarismo, foi condenado a pagar R$ 32 mil a quatro policiais federais a título de indenização por danos morais causados por denúncias veiculadas na página que a organização mantém na internet.

A sentença, ainda não publicada no Diário Oficial, foi assinada na quarta-feira, dia 3, pela juíza Maria Helena Pinto Machado Martins, da 42ª Vara Cível do Rio de Janeiro, no processo 2002.001.078946-0. É certo que a ONG vai recorrer da decisão, mas a sentença abre um precedente e passa a ser uma ameaça grande para todas as entidades que lutam pelos Direitos Humanos e denunciam atos de maus tratos e torturas cometidos por autoridades policiais.

O processo movido contra o grupo Tortura Nunca Mais pelo delegado de Polícia Federal Roberto Jaureguiber Prel Junior e pelos agentes federais Luiz Oswaldo Vargas de Aguiar, Luiz Amado Machado e Anísio Pereira dos Santos é uma conseqüência do caso que envolveu o ex-marinheiro da Petrobrás Carlos Abel Dutra Vaz, espancado por agentes federais em agosto de 1996.

Apesar de todo o empenho da vítima, que superou medos e pressões para denunciar seus algozes ao ministério Público Federal, nenhum agente policial sentou no banco dos réus para responder pelos crimes de abuso de autoridade e lesões corporais (um delegado e dois agentes foram apontados como responsáveis pelas agressões), prevaricação (outro delegado e mais dois policiais que não impediram os maus tratos) e falso testemunho (um servidor administrativo que teria dado depoimento mentiroso).

Todos foram beneficiados pela suspensão do processo por meio de um Habeas Corpus concedido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região e mantido pelo Superior Tribunal de Justiça sob a justificativa de que o Ministério Público Federal não podia realizar as investigações que ajudaram a identificar os policiais agressores. O processo foi suspenso, a discussão em torno do caso continua pendente de decisão no Supremo Tribunal Federal e os crimes pelos quais os policiais foram denunciados estão prescritos e, independentemente do que o STF decidir, não haverá mais julgamento.

Duas ações

Para tentar evitar a impunidade dos agressores, o grupo Tortura Nunca Mais adotou o caso e tratou de divulgá-lo — inclusive chamando atenção para a suspensão do processo judicial, o que acabou fazendo com que os principais crimes prescrevessem sem que nenhum agente policial fosse julgado. Na verdade, o único que passou pelo crivo da Justiça acabou sendo a própria vítima, pois o ex-marinheiro Carlos Abel Dutra Vaz também foi denunciado por ter reagido às agressões do delegado Roberto Prel. Carlos Abel não aceitou a suspensão do processo, que tinha sido proposta pelo Ministério Público, fez questão de ser julgado e acabou absolvido do crime de agressão ao delegado.

Além de não terem sido julgados pelos crimes denunciados pela Procuradoria da República, os policiais federais também se viram livres da sindicância administrativa instaurada no Departamento de Polícia Federal. Assim, se sentiram no direito de recorrer à Justiça com ações visando indenizações por alegados danos morais que teriam sofrido por causa das matérias jornalísticas sobre o caso.

Da mesma forma, eles decidiram processar duas vezes o Grupo Tortura Nunca Mais. O primeiro processo, este que agora recebeu a sentença em primeira instância, foi por conta das matérias publicadas na página da ONG na Internet. Numa outra ação (nº 2002.001.134577-1), o delegado Prel pede indenização por conta de uma nota oficial que o grupo Tortura Nuca Mais divulgou criticando sua nomeação para um cargo de chefia na Polícia Federal.

Nessas ações, a defesa dos policiais alega que “o próprio Judiciário incumbiu-se de afirmar que os autores não teriam praticado qualquer violência”, uma vez que “o Tribunal Regional Federal trancou a ação penal contra eles pela prática de delitos de lesão corporal, abuso de autoridade e prevaricação, inexistindo, portanto, qualquer imputação aos autores relativamente ao crime de tortura”. Apegam-se ao fato de que a palavra tortura não foi sequer explicitada na denúncia, uma vez que — nem por ocasião do fato, em 1996, nem quando foi apresentada a denúncia, 1997 — havia lei estipulando o crime de tortura. O Congresso Nacional só aprovou tal lei (nº 9.455) em 1998.

É verdade que a palavra tortura apareceu, como definição do comportamento desses policiais, na decisão da Apelação Criminal 8.596/98 proposta, então, pela defesa do delegado Prel contra uma decisão judicial que lhe negou direito a indenização. No voto proferido na 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, o desembargador Otávio Rodrigues, relator do processo, admitiu, com todas as palavras: “Conforme se verifica dos autos, o Apelante envolveu-se em fatos de ordem penal, o que lhe custou denúncia do Ministério Público Federal. A acusação foi a de que o mesmo abordou um veículo e determinou que os ocupantes descessem do veículo, ocasião em que deu uma joelhada nos órgãos baixos de Carlos Abel além de um tiro para o alto e outros atos não recomendáveis que culminaram com tortura em dependência da Polícia Federal.”

Danos morais

Apesar das palavras do desembargador naquela ação, a juíza Maria Helena Pinto Machado Martins , da 42ª Vara Cível do Rio de Janeiro, neste processo 2002.001.078946-0, considerou que a ONG emitiu “claro juízo de valor negativo sobre o comportamento dos autores”, causando “violação à honra objetiva” quando, na página da Internet, divulgou a seguinte nota: “…Enquanto isso, o delegado Roberto Jaureguiber Prel Junior — um dos que comandavam as torturas contra Carlos Abel — que era titular da delegacia de Repressão a Entorpecentes e Tóxicos da Polícia Federal do RJ, com as denúncias que se tornaram públicas, foi afastado temporariamente. Porém, em abril de 2001, o atual Superintendente da Polícia Federal/RJ, delegado Marcelo Nogueira Itagiba, seguindo informações publicadas em O GLOBO de 17/05, designou o mesmo delegado Roberto Jaureguiber Prel Junior para acompanhar as investigações do atentado sofrido pela Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, em 13/05/02, e para compor, como representante da Polícia Federal do Rio de Janeiro, uma ‘Força Tarefa’ que se pretende criar, em convênio com os governos do estado e o federal, para ‘combater a violência no estado’. Ou seja, policiais que deveriam estar afastados de suas funções públicas, respondendo por suas ações de desrespeito aos direitos humanos, não só continuam impunes e em seus cargos, mas – o mais grave- sendo premiados e assumindo responsabilidades de promover a segurança dos cidadãos e das instituições de nosso estado. Diante desses fatos, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, indignado, exige o afastamento do delegado da Polícia Federal Roberto Jaureguiber Prel Junior de quaisquer tarefas que dizem respeito diretamente à segurança da população. Sua permanência em tais funções só serve para alimentar e adubar a impunidade e as violações dos direitos humanos que, cotidianamente, continuam sendo cometidas, principalmente, pelos agentes do Estado”.

A juíza alega, na sentença, que os policiais “já figuraram como réus em vários processos sem existir condenação em qualquer deles. Em nenhum momento ficou provado que os autores praticaram tortura ou qualquer outro crime. Portanto, a conclusão que se evidencia é que o texto publicado na Internet não foi preciso e fez crer aos leitores que os autores eram comprovadamente torturadores”.

A sentença conclui que a ONG “extrapolou os limites do seu direito de expressão, desrespeitando direito dos autores acerca de sua reputação social. Conforme já versado acima é evidente que o referido texto não se limitou a ensejar apenas aborrecimentos. Enfrentaram os autores deveras ofensas e máculas de cunho moral, haja vista o teor do texto e alcance do mesmo no corpo social eis que a ré, como ela mesma salienta, é referência no cenário nacional”. Assim, a juíza justificou a necessidade da indenização pelos danos morais causados, que ela achou por bem fixar em R$ 8 mil para cada policial.

Independentemente do valor da indenização, que está longe de ser dos maiores, a sentença em si deverá provocar uma interessante discussão judicial e política, principalmente pelo fato de não ter havido julgamento dos crimes imputados aos policiais. Com a prescrição, o processo será extinto, mas isto ocorreu muito tempo depois da nota publicada no site. Na época, ainda que não houvesse sentença condenando-os, havia a possibilidade de o processo ser reaberto por decisão do Supremo Tribunal Federal. A decisão da juíza Maria Helena Pinto Machado Martins ainda vai gerar muita discussão e, assim, manterá à tona a história cuja divulgação tanto aborrece os policiais.

*Texto originalmente publicado no site www.nominimo.com.br.

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