Concorrência sem lei

Cade tenta superar falta de legislação concorrencial adequada

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8 de agosto de 2005, 14h49

O presente artigo destina-se a descrever, esclarecer e opinar acerca de recentes práticas do Cade — Conselho Administrativo de Defesa Econômica, autarquia vinculada ao Ministério da Justiça e autoridade concorrencial brasileira, bem como demais órgãos integrantes do SBDC — Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.

Limitando-nos ao período mais recente da história do SBDC, pretendemos analisar a tendência interpretativa do Cade com relação à lei e o modo pelo qual tem agido, no intuito de superar as dificuldades impostas a sua atuação, decorrentes da imperfeição legislativa do marco legal concorrencial. Adicionalmente permitimo-nos traçar comparativos com as legislações européia e norte-americana, as quais vivenciaram, ou ainda vivenciam, dificuldades semelhantes às enfrentadas pelo Cade.

A Letra da Lei

Em tentativa de adaptação e introdução de marco legal para o tratamento preventivo dos atos de concentração, verificamos que a legislação brasileira foi fortemente influenciada pelo teste substancial da restrição da concorrência norte-americano (the test of substantial lessen of competition). Contudo, entendemos que elementos atinentes ao teste da dominância (the dominance tes”) erigido pela normativa da Comissão Européia, da mesma forma, encontram-se incorporados no dispositivo legal brasileiro, dando-nos a impressão de adoção de uma legislação mais abrangente, que visou a recepcionar elementos presentes em ambos os testes mencionados. Dessa forma, o marco legal brasileiro — Lei 8.884/94 (Lei de Defesa da Concorrência) que trata, entre outros temas concorrenciais, da análise substancial de concentrações, prevê:

“Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.

(…)

§ 3o Incluem-se nos atos de que trata o caput àqueles que visem a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, que implique participação de empresa ou grupo de empresas resultante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais).

§ 4º Os atos de que trata o caput deverão ser apresentados para exame, previamente ou no prazo máximo de quinze dias úteis de sua realização, mediante encaminhamento da respectiva documentação em três vias à SDE, que imediatamente enviará uma via ao CADE e outra à SEAE.”

Para fins da presente análise, deve-se ter em vista os dois incisos acima transcritos, os quais tratam dos thresholds (patamares inicias) necessários para que se dê a obrigatoriedade de notificar à autoridade concorrencial brasileira, tratamento misto alternativo dado pelo texto legal.

Dessa forma, verificamos que toda e qualquer operação de concentração econômica que implique participação de empresa, ou grupo de empresas, resultante em 20 por cento de mercado relevante, implicará em obrigatoriedade notificatória. Alternativamente, a legislação brasileira erigiu critério mais objetivo para configuração da referida obrigatoriedade, qual seja o registro de faturamento bruto anual mínimo, de qualquer dos participantes, no último exercício social, de R$ 400 milhões.

Diversas são as críticas que se poderia traçar ao referido marco legal. A iniciar-se pelo critério de presunção de dominância em mercado relevante, cabe menção ao artigo de José Inácio Gonzaga Franceschini, expoente na área do direito concorrencial 1 , em crítica ao dispositivo legal. Franceschini aponta o desacerto da legislação brasileira ao presumir posição dominante de um agente em patamar de 20%, bem como aponta a antecipação da definição do mercado relevante (que frisamos trata-se de responsabilidade das autoridades de defesa concorrencial e não das partes envolvidas) para fins de avaliação acerca da necessidade da notificação. Como podemos imaginar, diversos são os problemas decorrentes da análise do referido dispositivo, conforme discussão adiante.

Vale, contudo, ressaltar a diferença entre dominância, para fins jurisdicionais (de fixação da obrigação notificatória) e dominância, para fins de avaliação dos efeitos da operação. Em conformidade com Richard Whish 2 , em citação à legislação vigente na Comunidade Européia para tratamento de fusões, apesar de requisição para apresentação de informações sobre mercado relevante que represente patamares iguais ou superiores a 15 por cento em concentrações horizontais, market share resultantes da operação que não excedam 25% no mercado comum em parte substancial desse mercado indica compatibilidade com referido mercado comum 3 . Contudo, vale ressaltar que, para avaliação da obrigação notificatória, o critério levado em consideração baseia-se no faturamento das partes.


Por sua vez, a legislação americana, da mesma forma que a legislação da Comunidade Européia, fixa seus critérios jurisdicionais no faturamento das empresas envolvidas. No que tange a avaliação dos efeitos concorrenciais, a legislação norte-americana busca dar grande ênfase ao Index Herfindahl-Hirschman (HHI). Por fim cabe citar o critério jurisdicional erigido pelo Reino Unido em seu recente ato legislativo 4 . Inicialmente, poderíamos vislumbrar de critério semelhante ao brasileiro, que requer verificação de faturamento mínimo de £ 70 milhões ou que represente 25% das vendas ou aquisições de produtos e serviços pela entidade objeto da operação (critério conhecido como share of supply). Contudo, o referido sistema legal, ao contrário do brasileiro, não prevê notificação compulsória, mas tão somente possibilidade de “referência” da autoridade concorrencial local — Office of Fair Trade a outra autoridade concorrencial responsável pela investigação dos efeitos concorrenciais da operação — Competition Commission.

Dessa forma, notamos que o critério para fixação da obrigação notificatória nos Estados Unidos e Comunidade Européia funda-se em critérios de faturamentos e regras de exceção de minimis, sendo que a verificação da concentração do mercado e market share das partes envolvidas se dá em momento posterior à fixação da referida obrigação de notificar, sendo determinante da qualidade/quantidade de informação a ser apresentada.

Por sua vez, com relação ao critério share of supply do Reino Unido, trata-se de espécie de reserva legal da autoridade concorrencial para investigação de operações não alcançadas pelo faturamento, mas que potencialmente ensejam preocupações com relação a operações com definição de mercado relevante restrita ou mercados geográficos reduzidos. Verificamos, portanto, substancial diferença entre o sistema brasileiro e os sistemas acima mencionados com relação a esse critério.

Fato notório é que definição de mercados relevantes envolve alguma complexidade, sendo que sua definição em operações anteriores não vincula operações e partes futuras, mas tão somente partes envolvidas na operação sob análise, o que requer que especificidades de cada caso sejam consideradas. Inegável, dessa forma, a insegurança jurídica do critério para fixação da obrigação de notificar baseado em market share mínimo. Ainda mais se considerarmos a inevitável queda de braço travada entre as partes e as autoridades concorrenciais para definição desse mercado.

Portanto, o teste de market share mínimo, pelas dificuldades geradas na sua antecipação, não nos parece ser critério satisfatório para verificação da necessidade de notificação de operações de concentração. Adicionalmente, qualquer argumento no sentido de flexibilização dessa primeira avaliação de mercado relevante, dispensando-se profunda e precisa análise, com o propósito de estabelecer a jurisdição do Cade, em nada contribui para suavizar a insegurança jurídica acima mencionada.

Em vista dessas críticas, poderíamos argumentar que o segundo critério erigido pela legislação brasileira — o critério do faturamento, sugere maior objetividade e segurança jurídica ao se avaliar a obrigatoriedade da notificação. Não obstante, outros são os problemas decorrentes, conforme passamos a expor.

A primeira preocupação causada pelo dispositivo legal decorre da definição do sujeito ativo cujo faturamento deverá ser considerado. O parágrafo 3 do artigo 54 da Lei de Defesa da Concorrência dispõe que a notificação será necessária quando “qualquer dos participantes” atingir referido faturamento. Contudo, em momento anterior, ao referir-se ao critério de market share, o dispositivo trata como sujeito ativo da obrigação “empresa ou grupo de empresas”. Em interpretação teleológica acerca do dispositivo, nos parece sensato assumirmos que a definição de “participantes” engloba qualquer empresa ou grupo de empresas. Também nos parece que essa tenha sido a vontade do legislador quando da edição da lei, indo ao encontro da acertada interpretação dada pelo Cade acerca do dispositivo.

A segunda preocupação que levantamos sobre o dispositivo é a ausência de qualquer critério jurisdicional/territorial estipulado. Não há menção no dispositivo a fim de definir ou esclarecer o conceito de faturamento, o que gera questionamento sobre a aplicabilidade do faturamento exclusivamente em território nacional ou sua extensão regional ou global. Ainda que reconheçamos que a preocupação acerca da jurisdição possa estender-se ao critério do market share (como no caso de mercado relevante geográfico definido como internacional), nos parece polêmica a preocupação com relação ao critério de faturamento. Em decorrência do gap legislativo mencionado, o Cade adotou interpretação conservadora em sua recente história, no sentido de computar-se o faturamento global para fins notificatórios.


Discutidas as preocupações acerca do parágrafo 3 do artigo 54, passemos a breve análise do subseqüente parágrafo 4 da mesma Lei, que dispõe acerca da fixação do prazo para notificação das operações de concentração econômica. Conforme transcrição acima, o dispositivo prevê que os atos de concentração deverão ser apresentados às autoridades previamente ou no prazo máximo de quinze dias a contar de sua realização. Novamente cabe-nos tecer algumas preocupações com a adequação do referido dispositivo legal.

A legislação brasileira é uma das poucas a autorizar o fechamento de operação anteriormente à sua notificação. Em tese, tal fato deveria proporcionar maior comodidade às partes no que tange ao prazo de notificação e, diante das demais jurisdições internacionais (em caso de concentrações globais) que exigem notificação prévia ao fechamento da operação, a notificação à jurisdição brasileira viria a posteriori em relação às demais. Curiosamente, o oposto tem-se verificado na prática. Notificações às autoridades concorrenciais brasileiras têm sido motivo de preocupação em operações multi-jurisdicionais, verificando-se, na grande maioria dos casos, como a primeira jurisdição a ser notificada.

Tal fato se verifica como decorrência de outra imprecisão legislativa, qual seja a definição do termo “realização”. À primeira vista, nos parece que o termo sugere que o prazo para notificação deva ser contado a partir do fechamento da operação. Não obstante, nos parece que o Cade optou por afastar uma interpretação textual do termo em vista das dificuldades que seriam geradas ao seu funcionamento, dificuldades essas talvez erroneamente balanceadas pelo legislador em vista da teórica comodidade proporcionada às partes.

Ao editar a Resolução 15/98, o Plenário do Cade, em exercício de sua competência, estipulou que:

“Art. 2º. O momento da realização da operação, para os termos do cumprimento dos §§ 4º e 5º do art. 54 da Lei 8.884/94, será definido a partir do primeiro documento vinculativo firmado entre as requerentes, salvo quando alteração nas relações de concorrência entre as requerentes ou entre pelo menos uma delas e terceiro agente ocorrer em momento diverso“.(nosso grifo).

Dessa forma, o Cade, através dos poderes conferidos por lei a seu plenário, definiu que o momento da realização da operação será o do primeiro documento vinculativo entre as partes, contando-se daí o prazo para notificação, o que por sua vez não pacificou a questão, mas, ao contrário, tratou de gerar maior insegurança jurídica do que se poderia prever, devido à imprecisão de novo termo disposto: “documento vinculativo”.

Muito se argüiu entre advogados e Conselheiros a fim de pacificar interpretação acerca do tema. No ato de concentração 173/97 o Cade entendeu que “Tratando-se de operação mundial, a data de realização do negócio, para os fins de cômputo do prazo para submissão da transação ao CADE, ocorre quando da transferência do controle do negócio no país.”

Já no Ato de Concentração 08012.000431/98-07, a decisão do Cade veio no sentido de que a data da realização da operação de que trata o parágrafo 4º do artigo 54 da Lei nº8.884/94 é aquela em que se verifique a união dos centros decisórios. Finalmente, no Ato de Concentração 08012.002941/98-56 encontramos outra construção jurisprudencial do Cade: “Para fins de determinação do dies a quo para apresentação do ato de concentração ao CADE, a data de realização do negócio coincide com a de seu fechamento quando os aspectos essenciais da operação a tenham como referência, sem que do contrato conste qualquer previsão de participação da compradora nas atividades de administração e gerenciamento dos negócios antes do closing.” Não é difícil percebermos a insegurança que a falta de unidade conceitual acarreta aos administrados.

Critérios jurisdicionais

Em vista de todo o exposto acima, cabe rememorar a linha interpretativa adotada pelo Cade até recentemente. Com relação ao critério de faturamento, o Cade tinha sedimentado entendimento acerca da consideração de faturamento global das empresas com relação a todo grupo econômico envolvido. Já com relação ao momento da operação, o Cade editou Resolução a fim de esclarecer que o momento da realização da operação e conseqüentemente, o momento no qual se começa a contar o prazo de quinze dias para notificação das Autoridades Brasileiras de Defesa da Concorrência seria definido a partir do primeiro documento vinculativo entre as partes.

Analisadas as imprecisões legais e a linha de interpretação adotada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, devemos passar a análise dos efeitos decorrentes para os administrados ou, em outras palavras, o efeito notificatório gerado nas operações de concentração.


Primeiramente, verificamos que os critérios elencados pela legislação brasileira e a construção jurisprudencial levada a efeito pelo Cade são insuficientes para fornecer satisfatório tratamento aos atos de concentração. Raramente o critério de market share é invocado para justificar apresentação as autoridades concorrenciais; na esmagadora maioria dos casos a justificativa para a notificação encontra-se no faturamento apresentado pelas partes. Fácil repararmos, ainda, a inadequação do “threshold” de R$ 400 milhões considerados em nível global para justificar uma análise concentracional por parte do Cade.

O resultado é que muitas operações ocorridas entre empresas no exterior com subsidiárias no território brasileiro ensejam a obrigatoriedade notificatória, independentemente da consideração da produção substancial de seus efeitos. Adicionalmente, operações alienígenas com mínima expressão no mercado nacional, por exemplo, no caso de ingresso de mercadoria através de importações, qualquer que seja seu valor, ensejariam, da mesma forma, obrigatoriedade notificatória às partes.

O resultado disso é o enorme montante de notificações dirigidas às autoridades concorrenciais brasileiras, desprovidas de qualquer relevância para o sistema concorrencial nacional. Vislumbramos, ainda, que o efeito gerado pelo montante de notificações não importantes acarreta gastos desnecessários aos administrados que, porque não o dizer, convertem-se em “welfare losses” para os administrados.

Finalmente, a ocupação alocada ao sistema para a análise de atos concentracionais irrelevantes contribui para desviar o foco das autoridades com relação a problemas mais complexos do sistema concorrencial que, sem sombra de dúvida, são merecedores de maior atenção, a citar a investigação de cartéis e condutas colusivas de agentes oligopolistas.

Nova linha de interpretação

Felizmente as percepções acima expostas coincidem com as percepções do Cade, que muito tem se esforçado, principalmente através de sua nova presidente e demais conselheiros em cargo para superar os problemas decorrentes do marco legal. Não obstante encontrar-se em pauta projeto de reforma de Lei de Defesa da Concorrência, que mereceria outros artigos a fim de contribuir ao desejável processo democrático de debate, não há previsão para sua votação e aprovação.

Dessa forma, a fim de superar os problemas acima mencionados enfrentados no seu dia-a-dia, o SBDC tem perseguido inovações legislativas e interpretativas, sobre as quais passamos a expor. A primeira inovação legislativa foi promovida conjuntamente pelas SDE — Secretaria de Direito Econômico e Seae — Secretaria de Acompanhamento Econômico, demais órgãos integrantes do SBDC, que editaram a Portaria Conjunta nº 1, em 18 de fevereiro de 2003, introduzindo o procedimento sumário para análise dos atos de concentração não potencialmente lesivos à concorrência, tais como, exemplificativamente, franquias, joint-ventures, reestruturações societárias sem alteração de controle, aquisição de empresas fora dos pais e outros, ressalvadas certas exceções. Tais atos seriam objeto de parecer simplificado e prazo reduzido de análise em ambas as Secretarias.

Mais recentemente o Cade também alterou sua linha de interpretação com relação a dois pontos polêmicos da Lei 8.884/94. O primeiro deles trata da conceituação de faturamento e o segundo do momento da apresentação da operação.

Dessa forma, em 19 de janeiro de 2005, por ocasião do julgamento do ato de concentração nº 08012.002992/2004-14, envolvendo as empresas ADC Telecommunications, Inc. e Krone International Holding Inc., o Conselheiro Roberto Pfeifer (conselheiro investido no seu segundo mandato) decidiu não conhecer da operação notificada, extinguindo o processo sem julgamento do mérito, por verificar faturamento das requerentes no território nacional inferior a R$ 400 milhões, bem como market share inferior a 20 por cento do mercado relevante identificado. O voto do Conselheiro foi seguido pelos demais integrantes do Plenário presentes na ocasião.

Trata-se, portanto, de primeiro precedente julgado na recente história do Cade em que o threshold analisado para fixação da obrigação notificatória leva em conta, exclusivamente, o faturamento da empresa e respectivo grupo econômico no território brasileiro. Apesar de não se tratar de qualquer novidade, haja vista votos anteriores proferidos por antigos membros do Cade e pelo próprio Conselheiro, não nos resta dúvida de que a nova composição do Cade foi fator incisivo na decisão adotada. Dos seis Conselheiros investidos atualmente, três possuem formação econômica, dois possuem formação em direito, e um possui ambas as formações. Tal fato poderia sugerir maior ênfase em aspectos econômicos relativos às decisões do que aspectos meramente jurídico-formalísticos.


As justificativas para a decisão vão ao encontro das críticas acerca da relevância para o sistema concorrencial brasileiro da análise de operações com efeito substancial verificado no exterior e que, por mero formalismo, requerem notificação ao Cade. Um dado estatístico levantado para que o Conselheiro suportasse sua decisão aponta que, do total de atos de concentração aprovados com alguma restrição pelo Cade nos últimos três anos, jamais se observou qualquer impacto anti-concorrencial de operações entre empresas com faturamento inferior a R$ 400 milhões ou com parcela inferior a 20 por cento do mercado relevante.

Outra inovação promovida pelo Cade diz respeito ao momento da realização da operação. Em outro julgado recente o Cade afirmou que as empresas devem começar a contar o prazo de quinze dias úteis para notificação a partir do documento no qual fecham o negócio. Conforme mencionado anteriormente, essa interpretação nos parece guardar maior conformidade com a vontade do legislador disposta no parágrafo 4 do artigo 54. Também cabe mencionar que com a referida interpretação encerram-se as especulações promovidas pelas partes acerca do conceito de “documento vinculativo”, que tanto contribuíram para a insegurança jurídica disseminada no sistema.

Procedimento de adaptação

Por um lado, as referidas decisões, em especial a que mudou o threshold de R$ 400 milhões, podem representar aos administrados, em particular à iniciativa privada internacional, avanço, na medida em que restringem drasticamente a necessidade de notificação de operações internacionais com efeito insignificante no Brasil. Adicionalmente, podem representar ao sistema concorrencial brasileiro a re-alocação de recursos de análises preventivas para análises repressivas de condutas, causadoras de maiores prejuízos à coletividade.

Por outro lado, não obstante a boa-vontade demonstrada pelo Cade para levar a efeito as mudanças mencionadas, indagamos sobre a pertinência de se promover alterações de pontos tão sensitivos da Lei da maneira pela qual têm sido promovidas.

O motivo de maior preocupação tange à alteração interpretativa dada ao momento da realização da operação que confronta diretamente com dispositivo legal editado pelo Plenário (artigo 2 da Resolução 15/98). Não se verifica qualquer forma de lacuna legislativa preenchida pelo Cade, nem tampouco interpretação extensiva ou qualquer outro instrumento jurídico usado em interpretações legais. Pelo contrário, trata-se de aplicação contra-legem de norma cogente, fato inadmissível em um ordenamento jurídico. Ao se promover alteração jurisprudencial confrontante com dispositivo legal abre-se caminho a contestações sobre a validade e legitimidade da decisão proferida, sendo imperativo e urgente que se de a alteração da resolução cujo dispositivo a decisão confronta.

Portanto, é imperativo que se dê a normatização das decisões reiteradamente proferidas pelo Conselho através de resolução que vise a revogar os efeitos do artigo em discussão que traz disposição confrontante. Ao contrário do que ocorre em países de common law que pautam suas decisões em precedentes, o ordenamento jurídico brasileiro baseia-se no sistema de civil law, que requer direito positivado para que se dê a validade e legitimidade normativa e, conseqüentemente, decisória.

Outra preocupação decorre da segunda alteração interpretativa promovida pelo Cade. A consideração exclusiva de faturamento das empresas e grupos econômicos envolvidos em território nacional. O perigo que vislumbramos decorre de contestação futura de operações presente, principalmente decorrente de novas composições do Conselho que privilegiem o devido processo legal. Vale frisarmos que referida interpretação não tem sido unânime dentro do próprio plenário do Cade.

Apesar do respaldo de princípios de direito constitucional e administrativo, como o da irretroatividade normativa, nos parece que referido princípio encontra-se de certa forma fragilizado por tratar-se de irretroatividade interpretativa, e não dispositiva, haja vista a motivação decisória encontrar-se baseada na interpretação da letra da lei. Enfim, sem adentramos muito na discussão, nos preocupa a nova posição adotada em vista de futuras contestações. A segurança jurídica dos administrados nos parece, novamente, colocada em risco.

Devemos reiterar que não nos resta qualquer dúvida de que o mérito das alterações interpretativas promovidas pelo Cade são completamente acertados. O que nos causa preocupação é o procedimento pelo qual têm sido conduzidas. Também não nos resta dúvida de que parte importante da culpa desses desencontros recai sobre o Congresso Nacional, que há anos carrega em sua pauta o compromisso de votação de projeto de lei acerca da reforma do sistema concorrencial brasileiro. O fato é que o Cade, a exemplo do que ocorre em geral com administradores de sistemas democráticos de direito imprecisos, cansou de esperar boa vontade política e “arregaçou as mangas”. Resta-nos saber se sua prática não causará efeitos colaterais ao SBDC, ou mesmo, se tal prática poderá contribuir para o despertar do nosso Congresso Nacional.

Notas de rodapé

(1) Boletim Latino-Americano de Concorrencial, Novembro 2004, No. 19, pág. 61.

(2) Whish, Richard, Competition Law, 5th Edition, Lexis Nexis, pag. 837-8.

(3) Não obstante referida presunção, market share abaixo do percentual indicado pode ainda ensejar dominância coletiva. A dominância de fato tem sido estabelecida em patamares pouco superiores. Em REWE/Meinl a dominância foi estabelecida pela Comissão Européia em 37 por cento; em Hutchinson/ECT/RMPM em 36 por cento e em Carrefour/Promodes, em menos de 30 por cento.

(4) Enterprise Act 2002, Part III, Sect. 23.

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