Briga em família

Viúva não tem direito a imóvel comprado antes do casamento

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2 de agosto de 2005, 13h32

Viúva não tem direito a imóvel comprado pelo marido antes do casamento e registrado depois do matrimônio. A decisão, unânime, é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

A questão começou a ser discutida na Justiça em uma ação da sogra contra a nora — viúva do proprietário do imóvel, morto em novembro de 1997. A mãe afirmou que o filho foi casado sob o regime de comunhão parcial de bens, de fevereiro de 1994 até a data em que morreu. O imóvel foi comprado em 1993. Contudo, o registro só foi feito em 6 de junho de 1995. A informação é do STJ.

A primeira instância negou o pedido da mãe. Ela recorreu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal. A segunda instância reconheceu a incomunicabilidade do bem, garantido o direito da mãe sobre o imóvel de seu filho morto. A viúva apelou ao STJ. Alegou que os documentos que foram apresentados não servem como prova, pois não têm valor jurídico.

Afirmou também que não há título que comprove que o imóvel foi comprado antes do casamento, tampouco termo ou condição na escritura pública de compra e venda “lavrada um ano e três meses depois do casamento e em sua plena vigência, assegurando, desta forma, a comunicabilidade do imóvel”.

A ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, considerou que não é possível ao STJ apreciar se os documentos apresentados servem ou não como prova. Em relação à questão central do recurso, a ministra entendeu que não havia o que ser corrigido na decisão do TJ do Distrito Federal.

Para embasar seu voto, a ministra citou doutrina de Pontes de Miranda, para quem todas as conseqüências de ações que nasceram antes do casamento são pertinentes aos bens incomunicáveis.

A relatora citou, ainda, voto do ministro Eduardo Ribeiro, também da 3ª Turma, que embora não trate do caso específico, discute questão semelhante: “Incomunicabilidade do bem, em virtude da norma contida no artigo 272 do Código Civil, uma vez que a escritura de venda, feita após o casamento, traduziu o cumprimento da promessa a ele anterior e a parcela paga naquele ato o foi por doação de terceiro e os bens assim havidos não se comunicam”.

Leia a íntegra da decisão

RECURSO ESPECIAL Nº 707.092 – DF (2004⁄0169577-6)

RECORRENTE: VIVIANE VIEIRA NIEHOFF

ADVOGADO: INIMA JOSÉ VALENTE

RECORRIDO: JULIETA RODRIGUES DE SOUZA

ADVOGADO: LUIZ FILIPE RIBEIRO COELHO E OUTROS

Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RELATÓRIO

Recurso especial interposto por VIVIANE VIEIRA NIEHOFF, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJDF.

Ação: declaratória de direito de propriedade sobre imóvel, ajuizada por JULIETA RODRIGUES DE SOUZA, ora recorrida, em face de VIVIANE VIEIRA NIEHOFF, ora recorrente.

A recorrida, mãe de Paulo Ventura Júnior – falecido em 30⁄11⁄1997, o qual fora casado com a recorrente desde 25⁄02⁄1994 até a data do óbito, sob o regime de comunhão parcial de bens-, afirma que seu filho adquiriu imóvel situado na QRSW 02, Bloco A-6, apto. 305, Brasília-DF, em dezembro de 1993, conforme atestam o contrato de cessão de direitos em promessa de compra e venda de imóvel (fls. 31⁄33) e o recibo de compra e venda de imóvel (fls. 12 e 37). No entanto, a escritura pública de compra e venda de dito imóvel só foi levada à registro em 06⁄06⁄1995 (fl. 20), isto é, durante a constância do matrimônio.

Sentença: o pedido foi julgado improcedente, ao fundamento de que “se a escritura foi lavrada durante a constância de casamento regido pela comunhão parcial de bens, tem a esposa direito à meação do imóvel” (fl. 87).

Acórdão: conferiu provimento ao recurso de apelação interposto pela recorrida, com a seguinte ementa:

(fl. 131) – “Direito Processual Civil e Direito de Família. Questão exclusivamente de direito. Correto o julgamento antecipado da lide (CPC, art. 330, I). Regime de comunhão parcial de bens. Imóvel adquirido antes do casamento. Transcrição no registro imobiliário depois das núpcias. Incomunicabilidade. Inteligência do art. 272 do CC de 1916.”

Embargos de declaração: rejeitados (fl. 153).

Recurso especial: alega a recorrente violação aos arts.:

i) 384 e 385 do CPC, diante da imprestabilidade das provas documentais que serviram como supedâneo para o provimento da apelação e conseqüente reforma da sentença. Sustenta que impugnou referidos documentos em 1º e 2º graus de jurisdição e que os considera destituídos de qualquer valor jurídico;

ii) 271, inc. I do CC⁄16 (correspondência: 1.660, inc. I do CC⁄02), por inexistência de título aquisitivo do imóvel anterior ao casamento, tampouco termo ou condição na escritura pública de compra e venda “lavrada um ano e três meses depois do casamento e em sua plena vigência, assegurando, desta forma, a comunicabilidade do imóvel”;


iii) 370, inc. II do CPC, ao argumento de que “se porventura tivessem qualquer valor probante, como efetivamente não têm, as datas lançadas nos aludidos papéis de fls. 12 e 31⁄33 não poderiam ser opostas à recorrente, a qual é terceira em relação a eles, os quais, se lhes fosse possível conferir qualquer valor jurídico, considerar-se-iam datados da morte do seu falecido marido Paulo Ventura” (fl. 163).

Sustenta ainda violação aos arts. 530, inc. I do CC⁄16 (correspondência: 1.245 do CC⁄02); 82 do CC⁄16 (correspondência: 104 do CC⁄02); 134 do CC⁄16 (correspondência: 108 do CC⁄02); 215 do CC⁄02; 859 do CC⁄16; 368, parágrafo único, e 383 do CPC.

Aduz dissídio jurisprudencial, contudo, não traz à colação nenhum julgado paradigma.

Parecer do MPF: opinou pelo não conhecimento do recurso especial (fls. 179⁄183).

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 707.092 – DF (2004⁄0169577-6)

Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

VOTO

O cerne da controvérsia consiste na comunicabilidade ou não de imóvel adquirido antes de casamento realizado sob o regime de comunhão parcial de bens, cuja transcrição no registro imobiliário ocorreu na constância da relação conjugal.

– Da fundamentação deficiente

(violação aos arts. 530, inc. I do CC⁄16 – 1.245 do CC⁄02;

82 do CC⁄16 – 104 do CC⁄02; 134 do CC⁄16 – 108 do CC⁄02;

215 do CC⁄02; 859 do CC⁄16; 368, parágrafo único, e 383 do CPC

e do dissídio jurisprudencial)

Quanto aos dispositivos legais acima elencados, não aduz a recorrente de que forma se dariam as violações.

No que concerne ao fundamento pela alínea “c” do permissivo constitucional, não colacionou a recorrente qualquer julgado paradigma a fim de demonstrar a divergência jurisprudencial.

Dessa forma, inviável a análise do especial, no particular, porque deficiente em sua fundamentação.

– Do prequestionamento

(violação ao art. 370, inc. II do CPC)

A matéria jurídica versada no art. 370, inc. II do CPC não foi debatida pelo acórdão recorrido, o que impede a discussão do tema nesta via recursal.

– Do reexame de provas

(violação aos arts. 384 e 385 do CPC)

Sustenta a recorrente que impugnou os documentos que serviram como sustentáculo para a reforma da sentença, os quais reputa imprestáveis e sem qualquer valor jurídico.

O TJDF, contudo, por meio de exaustiva análise do substrato fático-probatório do processo, assim concluiu:

(fl. 135) – “O casamento de Paulo Ventura com a apelada, Viviane Vieira, foi realizado sob o regime de comunhão parcial de bens (f. 10), em 25.02.1994. Já o contrato de cessão de direitos de promessa de compra e venda de imóvel, entabulado entre Paulo Vieira (sic) e a antiga proprietária, Benedita de Fátima Menezes, foi celebrado em 29.12.1993. Importa, ainda, assinalar a data de registro do título de aquisição da propriedade do imóvel: 16.06.1995 (f. 13-14).”

(fls. 135⁄136) – “Refiro-me às seguintes importantes evidências: a) o instrumento de quitação subscrito por Benedita de Fátima Menezes em 30.12.1993 (f. 12), que, a despeito de não haver sido registrado em cartório, tem seu conteúdo reafirmado por ela própria, desta feita, com firma devidamente reconhecida (f. 16); b) o contrato de cessão de direitos celebrado entre Benedita de Fátima Menezes e Paulo Ventura é contemporâneo ao recibo mencionado, data de 29.12.1993 (f. 33); c) a declaração de Georges Kammou de que teria emprestado à apelante certa quantia pecuniária, destinada à compra do bem (f. 15 e 75); d) a posterior restituição desse numerário que Julieta Rodrigues de Souza, ora apelante, fez à Georges Kammou (f. 72).”

(fl. 136) – “Sublinho que os documentos de que se podem extrair essas conclusões jamais tiveram sua autenticidade formalmente questionada, salvo determinação judicial para que se autenticassem (f. 22), o que foi atendido (f. 71). A apelada limitou-se a reputá-los ‘imprestáveis’, ‘incompleto e insuficiente para a criação de direito real’ (f. 120), argumentos os quais entendo não bastam para elidir a força probante do conjunto desses documentos, já que não foram submetidos ao rito do CPC, arts. 372 e 390-395”

(fl. 136) – “Repare-se que, in casu, a despeito da transcrição tardia do título respectivo, os vínculos obrigacionais, cujo objeto é o imóvel guerreado, forma travados antes da celebração matrimonial. A realidade que se depreende dos autos é a de que, em data anterior ao casamento de Paulo Ventura e da apelada, aquele obrigou-se a pagar um preço a Benedita de Fátima Menezes e esta, por sua vez, obrigou-se a lhe transferir o domínio do bem objeto de disputa nesses autos.”

(fl. 137) – “In casu, outrossim, tudo faz crer que para a aquisição do imóvel, em nada concorreu a ora apelada. Como registrei alhures, o contrato de cessão de direitos travado entre Paulo Ventura e a antiga proprietária do imóvel tem data anterior a seu casamento; o recibo do preço pago também é anterior; as declarações da apelante de que teria se socorrido de um empréstimo para auxiliar o filho na compra é absolutamente plausível diante dos documentos que revelam a declaração conforme do mutuante e a restituição do valor emprestado.


Reitero, ademais e ainda, que a fidedignidade desses documentos não restou formalmente atacada. A apelada limitou-se a discretas questiúnculas, sem os impugnar nos termos do código processual, razão pela qual devem ser considerados consoante o disposto no CPC, art. 131.”

Assim, a modificação do julgado pretendida pela recorrente importaria no reexame do conjunto de provas trazido aos autos, o que não se tolera em sede de recurso especial.

– Da incomunicabilidade de imóvel adquirido antes do matrimônio por um dos cônjuges já falecido somente levado a registro na constância do casamento (violação aos arts. 271, inc. I do CC⁄16 – 1.660, inc. I do CC⁄02)

Chegado o debate principal, importa fixar se o imóvel adquirido em data anterior ao casamento, cuja transcrição no registro imobiliário ocorreu na constância da sociedade conjugal, é ou não comunicável ao cônjuge sobrevivente, quando o regime de bens eleito foi o da comunhão parcial.

O TJDF decidiu a questão à luz do art. 272 do CC⁄16 (correspondência: art. 1.661 do CC⁄02), no sentido de que “o imóvel disputado resta incomunicável porquanto sua aquisição tem por título causa anterior ao casamento”.

O fundamento legal utilizado pelo acórdão recorrido exige interpretação acurada, como abaliza a doutrina de Pontes de Miranda, nos seguintes termos:

“Diz o art. 272: ‘São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento’. A investigação da causa, temporalmente, leva a questões de certa sutileza. (…) Sendo a causa anterior, nenhuma importância tem a condição, nem o termo. Se há direito herdável, antes do casamento, a causa é anterior ao casamento e, pois, incomunicável o bem.

(…) Se já havia direito, ainda expectativo ou formativo, o art. 272 incide.

Todas as conseqüências de ações que nasceram antes do casamento, são pertinentes aos bens incomunicáveis. O que decide é o momento em que nasceu a ação. Mas, se a ação nasceu depois, e a causa foi anterior, incomunicáveis são as conseqüências. O já ter nascido a ação é condição suficiente, se bem que não seja necessária. (…)

Outro critério para se saber se é incomunicável o bem (corpóreo ou incorpóreo) é verificar-se se, tendo morrido antes do casamento o cônjuge, seria herdável. Se positiva a resposta, é anterior a causa. Mas advirta-se que, não sendo co-extensivos direito e herdabilidade, o ser herdável também é condição suficiente, e não necessária.”

(Miranda, Pontes in Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo VIII, 3ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 337⁄338).

A respeito de hipótese semelhante à em julgamento, Caio Mário alude que “(…) o que determina a exclusão é o fato de o título aquisitivo ser anterior ao casamento, embora a aquisição se aperfeiçoe na constância do casamento, como no caso de uma promessa de compra e venda celebrada antes e somente executada depois das núpcias.” (Pereira, Caio Mário da Silva in Instituições de Direito Civil, V. V, Direito de Família, 15ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 218).

Silmara Juny Chinelato, ao exemplificar causas de incidência do art. 1.661 do CC⁄02, desenvolve tema encetado por Zeno Veloso, intimamente relacionado ao caso trazido a debate neste processo:

“Trata-se de promessa de compra e venda celebrada antes do casamento, mas com escritura definitiva depois dele. (…)

Para Zeno Veloso, quando o art. 272 do Código de 1916 alude a ‘título’ refere-se ao ato jurídico que deu origem à aquisição, ato jurídico. O momento da aquisição, o fator temporal, é que importaria para o deslinde da questão.

Sustenta que é bastante o título ser apto, idôneo, hábil para servir de base ou de fundamento para a futura transmissão da propriedade, enfatizando que a promessa de compra e venda – que gera uma obrigação de fazer – é suficiente para tanto.

(…)

Considerando que, em nosso sistema, a transmissão da propriedade ocorre não só por força do contrato de compra e venda, mas pela transcrição (registro) do título de transferência no Registro de Imóveis (arts. 530, I, 533, 620, 676 e 1.122 do CC de 1916), se alguém celebrasse contrato de compra e venda de um imóvel, no estado de solteiro, vindo a casar e, só então, registrasse a escritura, o bem se comunicaria, solução que lhe parece inaceitável e a mim também.”

(Chinelato, Silmara Juny in Comentários ao Código Civil, Parte Especial – Do Direito de Família, V. 18, São Paulo: Saraiva, 2004. p. 331⁄332).

Nesse contexto, a própria jurisprudência deste Tribunal tem abrandado a cogência da regra jurídica que sobreleva a formalidade em detrimento do direito subjetivo perseguido. Para tal temperamento, contudo, é necessário que a forma imposta esteja sobrepujando a realização da Justiça. É o exemplo da Súmula 84 do STJ que admite a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro.

Por fim, embora ausente jurisprudência do STJ a respeito do caso específico em análise, transcreve-se parte da ementa do REsp 62.605⁄MG, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ de 03⁄05⁄1999, que solveu problemática semelhante a dos autos:

“Incomunicabilidade do bem, em virtude da norma contida no artigo 272 do Código Civil, uma vez que a escritura de venda, feita após o casamento, traduziu o cumprimento da promessa a ele anterior e a parcela paga naquele ato o foi por doação de terceiro e os bens assim havidos não se comunicam.”

Assim sendo, ausentes as violações aos dispositivos de Lei mencionados, nada há para se corrigir no acórdão recorrido.

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO do recurso especial.

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