Faxina geral

Dois mil advogados do Rio são suspeitos de falta disciplinar

Autor

1 de agosto de 2005, 10h52

Mais de dois mil advogados estão sendo investigados pelo Conselho de Ética da Seccional da OAB no Rio de Janeiro. Eles são acusados de desrespeitar o Código de Ética dos advogados, figurando entre as acusações casos de desvio de conduta por participação no tráfico de entorpecentes. Esse alto índice de falta de profissionalismo é atribuído, por especialistas, às falhas na formação dos advogados. Muitos cursos não priorizam o debate sobre a ética profissional.

Na área de atuação da OAB do Rio de Janeiro, nos últimos dois anos, 42 advogados tiveram cassadas suas autorizações para o exercício da profissão, 13 dos quais por ligações com o crime organizado. Investigações em curso na Polícia Civil, contudo, mostram que a OAB-RJ poderá ter ainda mais trabalho pela frente. As informações são de reportagem do jornal O Globo, do domingo (31/7).

Uma escuta telefônica feita em agosto pela DRE — Delegacia de Repressão a Entorpecentes, com autorização da Justiça, flagrou um advogado recolhendo dinheiro da venda de drogas a mando de bandidos do Complexo da Maré. Joel Lisboa dos Santos Filho, de 46 anos, também é suspeito de emprestar o telefone para traficantes organizarem a distribuição das drogas. Além de associação para o tráfico, Lisboa — que teve a prisão decretada e está foragido — tem outras quatro anotações na polícia por falsificação de documento e apropriação indébita.

Os desvios de conduta são sempre uma dor de cabeça para a OAB. Em 2003, chegaram à entidade cerca de três mil denúncias contra advogados. Desse total, 40% foram considerados procedentes. Esse percentual se repetiu ano passado, quando houve 2.179 registros. Para alguns advogados, o resultado da apuração tem sido a punição. Nos últimos dois anos, 1.577 profissionais foram suspensos e outros 300 receberam censura (punição que, se repetida, transforma-se em suspensão). Os tipos de desvios são os mais variados: vão desde o desrespeito a colegas até a apropriação de dinheiro de clientes, além da tentativa de aliciar pessoas que eram defendidas por outros advogados, chegando à participação no crime organizado.

Embora considere pequeno o envolvimento de advogados com o tráfico, a OAB tem procurado fazer campanhas sobre a importância do cumprimento do código de ética da profissão. Outra medida é cobrar nas provas mais conhecimento sobre ética. As campanhas, no entanto, não têm evitado que universitários, ainda sem a carteira da OAB, sejam flagrados em crimes.

Um estudante de Direito está sendo procurado pela polícia, acusado de fazer parte de uma quadrilha especializada em assaltos a residências. Há cerca de duas semanas, o recém-formado em direito Bruno Marini, de 25 anos, foi detido junto com uma quadrilha acusada de tráfico de drogas pela internet. Numa interceptação telefônica feita pela polícia, Marini foi flagrado fraudando a prova da OAB. O pai do jovem, o advogado Fernando Mendes, que também apareceu na gravação, já foi notificado pela OAB e terá que se explicar.

Para o presidente da OAB-RJ, Octávio Gomes, os advogados envolvidos com crimes e desvios de conduta têm má-formação de caráter e isso não estaria restrito aos profissionais do direito. Gomes diz que a Ouvidoria da Ordem (2272- 2002) recebe diariamente vários tipos de denúncias, mas muitas também não se confirmam.

— Somos implacáveis e, se for o caso, cortamos na própria carne. Essas pessoas têm sérios desvios de caráter, mas não acredito que seja devido à profissão que exercem. O mais importante para um advogado é jamais confundir a defesa processual com as atitudes ilícitas dos seus clientes. Quando se misturam esses dois campos, ocorre um grave problema ético — analisa Gomes.

O titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), Rodrigo Oliveira, responsável pela investigação que flagrou Joel Lisboa negociando com bandidos, diz que há hoje dois tipos de advogados que mantêm ligações com o tráfico de drogas. Os primeiros são os que atuam defendendo traficantes de facções criminosas instaladas nas favelas. De acordo com o delegado, alguns desses advogados acabam se envolvendo em ações ilícitas. O segundo grupo seria formado por estudantes de direito e advogados recém-formados que não têm clientes. Eles saem das faculdades e entram para quadrilhas que vendem drogas fora dos morros.

— Os advogados começam defendendo os bandidos da favela. Eles fazem muitas promessas aos bandidos, mas não conseguem cumprir. Diante disso, passam a ter que fazer favores para as quadrilhas, transformando-se em mais um traficante. Os outros advogados que atuam fora dos morros entram para o crime por escolha própria — diz o delegado.

As investigações que flagraram o advogado Joel Lisboa dos Santos Filho em conversas com traficantes começaram em 2003. Há quatro meses, a DRE pediu o indiciamento de 22 acusados, entre eles Marcus Santana da Silva, que seria um dos chefes do tráfico na Maré. Ele e outros 13 bandidos ainda continuam foragidos. A primeira gravação ocorreu em 16 de agosto passado, por volta das 20h45m.

O advogado conversou com um traficante e aceitou recolher o dinheiro da venda de drogas numa localidade conhecida como Barbante. Em outro trecho da gravação, Joel cobra de um traficante o dinheiro que tinha sido emprestado a um outro bandido:

— Tá tranqüilo. Escuta só. Eu tenho que apanhar aí o do Babinho (traficante), R$ 300. Eu emprestei a ele, quer dizer, dei a ele na visita, que ele tava sem dinheiro lá (na favela) — disse Joel.

Alguns casos recentes

Casos recentes de advogados envolvidos com o crime organizado e desvios de conduta provocaram embaraços na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Um dos que mais chamaram a atenção foi o do advogado Paulo Roberto Pedrini Cuzzuol, que defendia o traficante de drogas Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Ele foi preso no início do ano passado por agentes federais na Rodovia Presidente Dutra (Rio-São Paulo) com US$ 320 mil. Para a polícia, o dinheiro pertencia ao traficante e era proveniente de negociações de cocaína na Colômbia, distribuição de drogas no Rio de Janeiro e seria destinado a remessa de dólares para o exterior.

Cuzzuol, que foi expulso da OAB, foi condenado em dezembro passado pelo juiz Cássio Murilo Granzinoli, da 5 Vara Federal Criminal do Rio, a oito anos, três meses e dez dias de prisão em regime fechado.

Há dois meses, o advogado Laerte Gomes de Carvalho foi preso por policiais da 36 DP (Santa Cruz). Segundo a polícia, ele tentou subornar policiais civis com R$ 50 mil para libertar o seu cliente, o traficante Márcio Batista da Silva, conhecido como Dinho Porquinho. Ao receber voz de prisão, o advogado tentou fugir e homens que estavam num carro próximo à delegacia — possivelmente integrantes da quadrilha — chegaram a trocar tiros com policiais.

Em junho do ano passado, o estudante de direito Ricardo Costa, que fazia estágio no núcleo de Bangu da Defensoria Pública, foi preso por policiais da 34 DP (Bangu). Ele foi flagrado quando extorquia R$ 50 da faxineira Rosinéia Avelino Melo, de 29 anos. De acordo com a polícia, o estagiário havia cobrado R$ 70 de Rosinéia para agilizar seu processo.

Falhas no ensino

Professores de universidades públicas consideram os desvios de conduta de advogados um problema que tem origem nas faculdades. Para eles, muitos cursos de direito não têm priorizado a discussão sobre a ética na profissão. Colaboram também, segundo os professores, os péssimos exemplos que têm surgido envolvendo profissionais em casos de desvios de conduta. Os especialistas dizem ainda que a cada dia aparecem mais jovens que entram para os cursos apenas com a preocupação de tirar vantagens do exercício da profissão.

Professor titular do curso de Direito da Uerj, Nelson Massini acredita que a crise na advocacia já deveria ter provocado uma reestruturação dos cursos de Direito. O caso do jovem tentando burlar a prova da OAB é, para Massini, um exemplo do despreparo dos estudantes, que perderam a noção da ética na profissão.

— Existem muitas faculdades que não dão embasamento ético, não têm responsabilidade com o aluno. O caso desse estudante que tentou passar na prova da OAB é exemplar.

Massini explica que o advogado normalmente trabalha em situações complicadas e, por isso, precisa saber os limites de sua atuação. É essa confusão, segundo o professor, que tem levado profissionais e estudantes a se envolverem com crime organizado:

— Toda situação extrema, como defender traficantes, por exemplo, pode levar o profissional a se envolver com o crime. Quando há uma boa formação, preocupada com a ética, esses advogados sabem quais são os seus limites. Acho que a advocacia é uma profissão diferenciada, pois tem o poder de decidir muitas questões.

Professor de Direito constitucional da UFF e chefe do Departamento de Direito de Estado da UFRJ, José Ribas faz uma avaliação ainda mais dramática sobre os desvios de conduta de advogados. Ribas diz que está havendo uma tendência entre os profissionais a buscar o sucesso a qualquer custo e isso tem levado à falta de debates nas universidades sobre a ética no direito.

— A situação é muito preocupante. Muitos alunos entram para os cursos de direito querendo “se dar bem” na profissão. Só estão interessados em passar em concurso, ganhar dinheiro, deixando de lado o interesse pela ética — avalia Ribas.

Para o professor, o despreparo dos alunos não se restringe à ética. De acordo com Ribas, a próprio conceito de direito foi deturpado, criando embaraços, inclusive dentro das universidades.

— Existe nas faculdades uma briga de alunos contra os professores. Os estudantes chegaram ao ponto de recorrem à Justiça para mudar a nota de suas avaliações. Isso é uma distorção do direito — observa o professor.

Reportagem de Fábio Vasconcelos publicada em O Globo de 31/7/2005

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!