Subtetos estaduais

STF não tem monopólio do controle da constitucionalidade

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28 de abril de 2005, 10h27

Milhares de jurisdicionados, servidores públicos aposentados e pensionistas de diversos Estados brasileiros passaram a enfrentar nos últimos meses obstáculo adicional à já combalida efetividade da prestação da tutela de seus direitos pelo Poder Judiciário. É uma situação sem precedentes na história do controle difuso de constitucionalidade das leis do país pelo Supremo Tribunal Federal, em prejuízo do exercício constitucional das garantias públicas, individuais e coletivas, materiais e instrumentais.

Refiro-me aqui, especificamente, aos atos que vêm sendo praticados pela ilustrada Presidência do Supremo Tribunal Federal em relação a centenas de medidas liminares proferidas no âmbito das Justiças estaduais, em mandados de segurança legitimamente impetrados contra a pretendida alteração da forma de aplicação dos chamados subtetos estaduais às aposentadorias e pensões pela Emenda Constitucional 41/2003.

Sob o fundamento do que se veio a denominar-se “efeito multiplicador” das liminares proferidas nos mandados de segurança impetrados perante as jurisdições estaduais, o nobre chefe do Poder Judiciário brasileiro está impedindo que tais decisões judiciais, obviamente contrárias aos interesses governistas, produzam qualquer efeito antes de transitadas em julgado.

Isso significa, para aqueles que estão acostumados aos embates processuais envolvendo entidades públicas, não apenas uma indefinida espera pela efetividade da tutela judicial pretendida, como também a irreversível perda das parcelas remuneratórias suprimidas pela “Reforma da Previdência” durante todos os anos em que os processos ficarem pendentes, já que sujeita sua devolução ao regime do malsinado precatório judicial.

Acolhendo reiteradamente os pedidos das Procuradorias estaduais apresentados sob a forma de incidentes de suspensão de liminar concedida em mandado de segurança individual ou coletivo, o Presidente da Suprema Corte acabou vinculando os efeitos desses processos ao resultado do Mandado de Segurança nº 24.875, cujo relator é o ministro Sepúlveda Pertence.

Nesse mandado, ex-integrantes aposentados do STF postulam a exclusão das vantagens de caráter pessoal do teto de vencimentos imposto pela Emenda Constitucional 41, pendente de julgamento desde junho de 2004, com pronunciamento favorável da Procuradoria Geral da República.

Todavia, ao estreitar o chamado “efeito multiplicador” das decisões legitimamente proferidas dentro das regras de competência disciplinadas pelo sistema processual em vigor, elevando-o a pressuposto — que não é — do incidente de suspensão de liminar ou de segurança previsto na Lei nº 4.348/64, o eminente ministro e presidente do STF invadiu a seara legislativa e instituiu sponte sua nova modalidade de efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Antes, isto era restrito, pelo ordenamento constitucional, somente às decisões definitivas de mérito nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC), e agora, com o advento da EC 45/2004, também nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), em conformidade com a nova redação art. 102, § 2º, da Constituição da República.

Conquanto não haja notícia de ter sido ajuizada qualquer ADC ou ADI no Supremo Tribunal Federal envolvendo o objeto do MS nº 24.875, a vinculação estabelecida pela ilustrada Presidência do STF, para frear o “efeito multiplicador” resultante do poder jurisdicional exercido pelos Tribunais estaduais, revela-se surpreendentemente arbitrária e sem nenhum amparo legal ou constitucional. Por uma circunstância não prevista em lei, impede a produção dos efeitos legais da apreciação da autoridade judiciária competente, em afronta aos princípios da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, inc. XXXV) e do juiz natural (art. 5º, inc. LIII).

Se é certo que a Lei nº 4.348/64 admite, de fato, que a pessoa jurídica de direito público interessada requeira a suspensão da liminar concedida em mandado de segurança, não é menos certo que, para tanto, se faz imprescindível a demonstração inequívoca dos seus pressupostos, ou seja, de que o cumprimento da decisão possa resultar em grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Ocorre que essas hipóteses são impossíveis de ocorrer em relação aos subtetos preconizados pela EC nº 41/2003, sobretudo no que toca à questão orçamentária, porquanto a conseqüente desoneração da folha de pagamento dos inativos e pensionistas, mediante o aumento da carga de descontos sobre benefícios previstos e com recursos financeiros já consignados, nenhum impacto ou projeção poderia ter sobre o exercício fiscal em curso dos orçamentos das entidades públicas estaduais, nem sobre os futuros, por ser inexistente até então a respectiva fonte adicional de receita recém-criada pela alteração da forma de cálculo dos subtetos implementada pela “Reforma da Previdência”.

E a maior evidência de que inexiste hipótese séria de as liminares concedidas pelas jurisdições estaduais impactarem negativamente as finanças de qualquer Estado-membro reside no fato de os despachos liminares de suspensão de segurança estarem calcados, em muitos dos casos, apenas e tão somente no alegado “efeito multiplicador” das irresignações legitimamente submetidas aos Tribunais estaduais, e não, como prevê a Lei nº 4.348/64, no cotejo de condições econômicas específicas e que, por óbvio e evidente, sequer poderiam repercutir, com idêntico impacto, sobre o orçamento de entes políticos com realidades tão distintas uns dos outros.

É bom que se diga que o STF, no sistema constitucional brasileiro, não detém o monopólio do controle da constitucionalidade das leis, podendo ser ele exercido por qualquer juízo ou tribunal no âmbito do chamado controle difuso de constitucionalidade, quando se decide de forma incidente, em qualquer ação judicial, pela inaplicabilidade de determinada lei, por vício de constitucionalidade, na perspectiva de uma determinada relação jurídica, individual ou coletiva, ficando apenas as partes envolvidas obrigadas em torno da decisão. A Constituição da República apenas reserva ao Supremo Tribunal Federal o controle concentrado de constitucionalidade, cujas decisões têm efeito geral e vinculante.

A hipótese, contudo, em que o Supremo Tribunal Federal é instado, através do MS nº 24.875, a decidir acerca da inconstitucionalidade da alteração da fórmula de incidência dos subtetos estaduais, não é apta a produzir nenhum efeito geral vinculante, já que está tão afeita ao controle difuso da constitucionalidade quanto estaria se pretendida em face de qualquer outro juízo ou tribunal se o ato por ele impugnado não proviesse da autoridade do próprio Presidente da Corte Suprema, como é o caso do MS nº 24.875.

Daí porque o aludido “efeito multiplicador” de decisões judiciais proferidas em torno de questões de envergadura nacional, como a “Reforma da Previdência”, conquanto indesejáveis aos governos federal e estaduais, antes de constituir embaraço ao exercício do poder judicante distribuído segundo as competências estabelecidas pela Constituição Federal entre diversos órgãos jurisdicionais, realiza, isto sim, a aspiração maior de distribuição de justiça em uma sociedade pluralista e democrática.

Claro que isso não quer dizer que o Supremo Tribunal Federal não esteja vocacionado a realizar a tarefa de intérprete maior da Constituição Federal. Não apenas está, como também dispõe de instrumentos que lhe permitem impor a autoridade da sua exegese. Contudo, empregar esses instrumentos para além das hipóteses legal e constitucionalmente previstas, emprestando efeito vinculante a processo sujeito a controle difuso sem — o que é pior — decisão definitiva pelo STF para sustar efeitos de decisões judiciais proferidas por qualquer Tribunal de Justiça estadual que considerar inconstitucional, nesse particular aspecto da aplicação dos subtetos, a EC nº 41/2003, é colocar em xeque a independência e isenção do Poder Judiciário.

Proibir, assim, os Tribunais estaduais de fazer valer as decisões por eles proferidas em consonância com o princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV), arrebatando-lhes a função jurisdicional legitimamente exercida no âmbito de sua competência a pretexto de um voluntarioso impulso avocatório despido de fundamento jurídico válido, constitui atitude não apenas abusiva como também antidemocrática, porque inibidora de distribuição de justiça e de pacificação social, incompatível, ademais, com o papel reservado pela Constituição da República ao Supremo Tribunal Federal.

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