Na forma da lei

Excesso de formalismo jurídico torna a Justiça injusta

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27 de abril de 2005, 12h57

Regras processuais servem para que a causa seja bem julgada e não devem se sobrepor a ela, ao menos em tese. Na prática, o excesso de apego a regras meramente burocráticas por parte de juízes faz com que a Justiça, muitas vezes, cometa injustiças. Mas com o acúmulo de processos, esse formalismo acaba se tornando mais um artifício para baixar o estoque.

Há duas semanas, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal deu exemplo de desapego à letra fria da lei. Por maioria de votos, foi derrubada decisão do ministro Joaquim Barbosa, que rejeitou recurso por falta da assinatura do advogado na petição.

No julgamento da matéria, os ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie consideraram que a ausência de assinatura na petição de recurso não poderia ser sanada por se tratar de defeito que acarreta a inexistência do próprio recurso. Trocando em miúdos, se o advogado não assinou a petição, o recurso não existe.

O entendimento, contudo, caiu. Os demais ministros da Turma, Carlos Velloso, Celso de Mello e Gilmar Mendes, decidiram que a jurisprudência do STF, “de modelo defensivo” em relação ao tema, deveria ser superada.

Os ministros ressaltaram que, no caso, o advogado interveio imediatamente para suprir a falta de assinatura e que não havia qualquer dúvida quanto à sua identificação, já que possuía procuração nos autos.

A decisão do STF vem ao encontro do anseio de advogados. Para Mário Luiz Oliveira da Costa, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados, “é muito mais razoável intimar o advogado a regularizar a situação e, somente se não for cumprida a intimação, o recurso deixe de ser conhecido, para que a parte não seja injustamente prejudicada”.

Limites indefinidos

A questão é recheada de antagonismo e polêmica. Quando o apego ao formalismo é necessário e quando se trata de mero capricho judicial? As regras são necessárias para regular o processo, mas o papel da Justiça é buscar a verdade efetiva, e nessa busca deve afastar o formalismo na medida do possível.

“Há uma tendência nos tribunais, assoberbados de recursos, de que qualquer questão que não siga o exato formalismo estabelecido seja rejeitada”, afirma o advogado Eduardo Telles, do escritório Tauil, Chequer & Mello Advogados/Thompson & Knight LLP. “O formalismo é ainda mais observado nos agravos apresentados aos tribunais superiores”, diz.

Levantamento feito pela revista Consultor Jurídico mostra que 783 decisões das seis turmas do Superior Tribunal de Justiça sobre agravos regimentais foram publicadas no Diário da Justiça, em fevereiro. Do total, aspectos formais levaram à rejeição de 62 recursos. Ou seja, em 8% dos casos a causa ficou em segundo plano. A embalagem pesou mais do que o conteúdo.

Dos 62 agravos, 13 foram rejeitados por falta de cópia de decisão ou do acórdão recorrido e outros 13 por falta de procuração ou assinatura do advogado. Problemas que poderiam ser sanados caso os advogados fossem intimados a regularizar a situação. “Apenas a intempestividade de recurso (quando ele é ajuizado fora de prazo) ou sua deserção não deveriam comportar regularização posterior”, diz Mário Costa.

No levantamento, saltam aos olhos dois dados. Cinco agravos foram rejeitados porque a chancela do tribunal de origem não estava legível. Em uma só semana, a ministra Nancy Andrighi sepultou dois recursos com essa alegação. Outro agravo foi para a cova porque uma certidão não continha a assinatura do serventuário. A parte não deve responder por falha da própria Justiça. Ou não deveria.

Segundo Mário Costa, a ausência de peça processual também leva à rejeição de muitos recursos tribunais afora. “A questão é que a falta de documentos pode ter decorrido de falha dos próprios funcionários do Poder Judiciário, no momento da juntada do recurso aos autos. Por isso, a intimação para que o advogado regularize a situação é importante”, frisa.

Dois minutos

As decisões sobre aspectos formais dos processos invariavelmente se chocam. No Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, a jurisprudência já se firmou no sentido de que diferença ínfima no valor do recolhimento de custas judiciais não é motivo para rejeição do recurso. Por analogia, o mesmo entendimento é aplicado para outros julgamentos, como nos casos em que a Corte relevou cinco minutos que excedem ou sucedem a marcação de ponto de trabalhadores.

Contudo, em decisão recente, o TST se recusou a analisar uma causa porque o recurso foi ajuizado dois minutos depois do prazo. No dia 20 de abril de 2004, o pedido foi protocolado no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, em Porto Alegre. Segundo a advogada, às 18h os funcionários distribuíram senhas para quem estava na fila do protocolo. O recurso recebeu a chancela do tribunal às 18h02.


O pedido esbarrou na Resolução Administrativa 13/2002 do TRT gaúcho, que prevê que o protocolo só funciona até às 18h. O guichê, porém, ainda estava aberto. A advogada entrou com Agravo de Instrumento no Tribunal Superior do Trabalho. Sem sucesso.

O relator do Agravo, ministro Barros Levenhagen, aplicou ao caso, por analogia, a Orientação Jurisprudencial 161 da Corte, “segundo a qual cabe à parte comprovar, quando da interposição do recurso, a existência de feriado local que justifique a prorrogação do prazo recursal”.

Para Eduardo Telles, “é complicado estabelecer os limites. Se o recurso fosse protocolado às 18h15 seria razoável à rejeição?”, questiona. “O juiz deve afastar aspectos formais sempre que possível baseado no único parâmetro que temos para dirimir essas dúvidas: o bom senso”.

Menor valor

Há mais de 22 anos, Oswanderley Alves Ataíde viu ruir sua casa com o rompimento de uma adutora da Sabesp — Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo. A partir daí, começou a maratona jurídica em busca do reparo pelo incidente. A decisão que condenou a estatal a indenizá-lo transitou em julgado.

Na execução da sentença, houve divergência entre os valores apresentados. Ataíde pediu mais de R$ 1 milhão, a Sabesp queria pagar R$ 622 mil e o juiz de primeira instância determinou o pagamento de R$ 387 mil, valor inferior ao que foi confessado pela companhia, apurado pelo perito.

Ao tentar reverter a decisão, o advogado Gustavo Lorenzi de Castro, do escritório Viseu, Castro, Cunha e Oricchio Advogados, trombou com o apego dos julgadores à formalidade. Por não ter anexado a certidão de publicação do acórdão recorrido, o agravo apresentado ao Superior Tribunal de Justiça foi considerado intempestivo. Vinte e dois anos de luta em busca da Justiça não foram levados em conta diante da falta de um papel no processo.

No caso, o advogado alega que se o recurso fosse realmente intempestivo, a questão teria sido chamada à baila na primeira análise da Corte sobre o litígio. O que não ocorreu. Os argumentos de que a decisão “arranha os mais comezinhos princípios” do direito, como o da “razoabilidade e o da efetividade do processo” não surtiram efeito.

Detalhes superados

Mas há casos em que tribunais superiores demonstram desapego a regras e expressões processuais e dão vazão ao bom andamento da ação, derrubando o formalismo registrado em decisões de segunda instância. O Tribunal Superior do Trabalho tem três exemplos recentes.

Em fevereiro, a 1ª Turma do Tribunal decidiu que o erro no preenchimento do código da Receita Federal na guia de recolhimento de custas judiciais não pode ser um obstáculo ao julgamento da causa. Os ministros acolheram o recurso de um aposentado da Petrobras e determinaram que o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, no Rio de Janeiro, analise o mérito da questão.

“A declaração de irregularidade no recolhimento das custas representa rigor excessivo, se na guia é possível identificar a data do recolhimento, o valor arbitrado na sentença, os nomes das partes e o número do processo”, afirmou o relator do recurso, ministro Emmanoel Pereira.

Noutro caso, a Corte Trabalhista entendeu que a declaração de pobreza para obtenção de justiça gratuita dispensa excesso de rigor como a obrigação de conter a expressão “sob as penas da lei”. Tal declaração pode ser feita de próprio punho por quem requer a assistência judicial gratuita.

Com a decisão, a 4ª Turma do Tribunal acolheu recurso de um ex-empregado da Volkswagen e mandou o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, ultrapassar o detalhe processual e julgar a matéria.

Em outra recente decisão, o TST também concedeu licença-adoção de 120 dias a uma médica paulista. A licença havia sido negada porque no pedido o advogado da médica utilizou a expressão licença-maternidade, no lugar de adoção.

O relator da questão no TST, juiz convocado Guilherme Caputo Bastos, afirmou que “as partes devem postular de modo certo e determinado e que é vedado a alteração da causa de pedir, porém, não se pode eleger um fim em si mesmo no processo, deixando muitas vezes em segundo plano o próprio direito material”.

Exemplo de cima

A interpretação fria de detalhes processuais quase levou o Hospital das Clínicas de Porto Alegre à bancarrota. O hospital, condenado a pagar uma dívida trabalhista de mais de R$ 30 milhões, teve seguidos recursos negados porque ao contestar a decisão, a defesa se referiu à sentença de primeira instância, e não ao acórdão do Tribunal Regional. Por esse motivo, teve seus pedidos extintos sem o julgamento do mérito.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, dirimiu a questão e ordenou que o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região examine ação rescisória proposta pela defesa da instituição hospitalar.


A ação contesta acórdão que deferiu a servidores do hospital o pagamento de diferenças salariais referentes ao IPC de junho de 1987 (Plano Bresser) e às URPs de abril e maio de 1988. Publicada a decisão regional, o Hospital das Clínicas da capital gaúcha começou uma verdadeira via crucis.

Em sua defesa, o hospital alegou que “o apego demasiado ao tecnicismo, isto é, a uma palavra, no seu sentido restrito, que nem o legislador e a doutrina o fazem, é pretender jogar fora, não só o princípio da singularidade que predomina no Direito do Trabalho, como o da razoabilidade, o qual é muito mais uma regra interpretadora do que informadora”. E argumentou também que “o acórdão, no caso dos presentes autos, é espelho da sentença, isto é, acolheu-a integralmente”. Dessa forma, o efeito final seria o mesmo.

Os dois embargos de declaração propostos pelo hospital em segunda instância foram rejeitados. O mesmo ocorreu no Tribunal Superior do Trabalho, que rejeitou um recurso ordinário e dois embargos de declaração. Em todos os casos, o argumento foi igual: impossibilidade jurídica do pedido.

No recurso apresentado ao STF, o Hospital das Clínicas, além de criticar o apego a um termo, argumentou que, mantida a decisão, a União teria de desembolsar mais de R$ 30 milhões “para pagar a condenação em diferenças salariais em razão dos planos econômicos, onde já há decisão dessa Alta Corte, que não há direito adquirido aos mesmos”.

Os argumentos foram acolhidos pelo ministro Gilmar Mendes, que criticou o excesso de formalismo com que o caso foi tratado. Segundo ele, a ação rescisória não poderia ter sido extinta pelo simples fato de a defesa ter utilizado o termo sentença em lugar de acórdão. Gilmar Mendes afirmou que isso configura “uma manifestação extremada do formalismo que afeta a proteção judicial efetiva. Assegura-se a preservação de uma situação contrária ao entendimento completamente dominante nesta Corte em nome do atendimento de uma exigência formal”.

A questão da interpretação da lei em favor da sociedade é a tônica do relatório do ministro Marco Aurélio numa polêmica questão ainda pendente de julgamento pelo Supremo: se aplica-se à união estável a extinção da punibilidade prevista no Código Penal para os crimes de estupro quando o estuprador se casa com a vítima.

Em seu voto, o ministro escreveu que “as leis são elaboradas para servir aos homens que, em nenhum caso, podem se curvar à formalidade excessiva, a um rigoroso dogmatismo, sob pena de, tornando-se escravos de vetustas regras, eles próprios desvirtuarem o sentido das leis criadas para beneficiá-los”.

No caso específico, o acusado, condenado a sete anos de reclusão pelo crime de estupro, teve relações sexuais com uma menor de 14 anos, com quem mantém união estável e tem um filho. A legislação considera estupro o sexo com menor de 14 anos, mesmo quando não há violência ou constrangimento.

Para Marco Aurélio, “ao Estado cumpre proteger o mais frágil nessa história, o filho que resultou dessa relação”. Caso contrário, será desprezado o princípio segundo o qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado. “O filho do casal acabará apenado, suportando a parte mais dura da pena, pondo-se em risco a própria sobrevivência da família como unidade”, afirmou.

Um pra lá, dois pra cá

Da mesma forma que a interpretação judicial das leis é fator determinante para o desenvolvimento da cidadania, pode ser um fator de retrocesso.

Para lembrar um caso, foram sedimentadas pelo Superior Tribunal de Justiça as primeiras decisões que permitiram aos portadores do vírus da Aids sacar o FGTS para custear tratamento médico. Até então, só era permitido sacar o dinheiro do Fundo em caso de demissão sem justa causa e para a aquisição da casa própria.

A realidade social falou mais alto e os portadores do HIV e de outras enfermidades graves podem utilizar o dinheiro para bancar seus tratamentos. Hoje, a jurisprudência sobre a questão tomou forma e o entendimento é praticamente pacífico nos tribunais.

Mas no papel de moldar o comportamento social, a Justiça também dá maus exemplos. Numa causa julgada no Juizado Especial da Lapa, em São Paulo, uma juíza entendeu que, como cabe ao Poder Público a conservação e limpeza de áreas públicas, o responsável por sujar a praça não poderia ser apenado.

A decisão foi tomada em processo em que um morador do bairro do Morumbi entrou na Justiça pedindo que seu vizinho fosse obrigado a limpar a praça em frente à sua casa. Motivo: o vizinho estava reformando a residência e utilizava a praça como depósito de entulho, lixo e restos de material da obra.

A juíza atestou e confirmou a prática de crime ambiental, já que fora atirado material químico na praça e no córrego que a corta. Mas, disse ela, o responsável pela sujeira não poderia ser obrigado a limpar a praça porque a “conservação, limpeza e vigilância da área compete ao proprietário, que, no caso, é a Pessoa Jurídica Pública do Município, através da Administração Regional”. Como a prefeitura não funciona, recorre-se à Justiça.

Mas, mesmo tendo conhecimento da prática de crime por um cidadão, a juíza ateve-se à norma legal. Assim como se poderia inocentar uma pessoa de ter matado outra a tiros por ter-se constatado que o assassinato foi a facadas.

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