Adoção de fato

Sobrinha criada como filha tem direito a pensão do INSS

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22 de abril de 2005, 7h42

Sobrinha criada como filha pelos tios pode receber pensão por morte, ainda que não tenha sido adotado legalmente. O entendimento é do juiz Vilian Bollmann, do Juizado Especial Federal Previdenciário de Itajaí (SC), que condenou o INSS — Instituto Nacional do Seguro Social a pagar o benefício a uma adolescente de 13 anos. O tio que a criou como pai morreu. O INSS pode recorrer.

Segundo o juiz, foi comprovada a existência de uma “adoção de fato”, que gera direitos análogos aos dos filhos e demais dependentes. As informações são da Justiça Federal de Santa Catarina.

A ação foi proposta no final de novembro do ano passado. Representada pela tia, no caso a mãe de criação, a sobrinha recorreu à Justiça depois que o INSS negou, em março de 2004, o pedido de pagamento da pensão. O INSS alegou que sobrinhos não podem ser considerados beneficiários do Regime Geral de Previdência Social na condição de dependentes dos segurados.

Para o juiz, o rol de dependentes não inclui expressamente os sobrinhos, mas dá aos enteados e menores tutelados o mesmo tratamento dado aos filhos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, confere ao menor sob guarda — posse de direito — a condição de dependente, inclusive para fins previdenciários. E a Constituição Federal proíbe qualquer discriminação entre filhos naturais e adotivos.

Bollmann considerou que as provas não deixam dúvidas sobre a relação de dependência, econômica e afetiva, entre a sobrinha e os tios. “Este magistrado, que conduziu as audiências de instrução, pode afirmar, categoricamente, que a menina tratava a tia como se mãe fosse”, ressaltou. A menina foi acolhida pelos tios desde quando era recém-nascida por causa da situação econômica da mãe biológica.

Assim, uma vez provada a situação de fato, a pensão pode ser concedida, aplicando-se ao caso a analogia. “Se for dada primazia aos fins, e não aos meios, a analogia não só é possível, como também desejável, pois cumpre o papel de atingir os fins visados”, disse o juiz.

Bollmann também citou “a busca de uma solução que reflita o ideal de Justiça perseguido pelo Direito”. Para ele, “ao contrário da Economia, que é baseada em juízos de relação custo-benefício estritamente monetários, o Direito é fundado em juízos de Justiça”.

Leia a íntegra da sentença

Processo: XXXXXXXXXXXXXX-X

Autor: XXXXXXX XXXXXXXXXX

Réu: Instituto Nacional do Seguro Social

SENTENÇA

Vistos, etc.

Dispensado o relatório (art. 38, da Lei n. 9099/95), passo a decidir. Trata-se de ação previdenciária em que a autora, pessoa que estava na guarda de fato de segurado do RGPS, seu tio, alega dependência econômica em relação a ele, buscando a investidura no respectivo pensionamento.

O INSS, examinando administrativamente a questão, indeferiu a mercê, nestes termos: “Falta de qualidade de dependente” (cf. fl. 12 — comunicado de decisão). Passo a decidir.

Orientada pela nova perspectiva democrática que lhe deu origem, a Constituição da República Federativa do Brasil (CR), promulgada em 1988, comete, expressamente, ao Estado os objetivos de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3o, I, da CR) e “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3o, III, da CR).

A partir desses resultados que devem ser buscados, o constituinte traçou diversos institutos, igualmente inscritos na Carta Constitucional, que visam determinar a atuação estatal.

Dentre eles, destaca-se o reconhecimento de que a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada (ART.201, I, CF).

No plano infraconstitucional, os princípios supra declinados plasmaram-se na Lei 8.213/91 que, em seu art. 74, dispõe :

“A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data do óbito ou da decisão judicial, no caso de morte presumida”.

São requisitos indispensáveis para concessão desta espécie de benefício: (1) a filiação do de cujus à Previdência e (2) a dependência econômica.

1.1. Qualidade de segurado do de cujus

A pensão por morte somente será devida se à época do óbito o falecido mantinha a qualidade de segurado, nos termos do art. 102, § 2º, da Lei 8.213/91.

Conforme deixa claro todo o processado, a vinculação do falecido é matéria incontroversa.

1.2. A dependência econômica

A prova da dependência econômica é presumida para os dependentes da primeira classe – cônjuge, companheira/companheiro, filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido. Para os demais dependentes, o autor deverá comprová-la, nos termos do § 4º do artigo 16 da Lei n. 8.213/91.


No rol previsto do art. 16 não consta a figura do menor sob guarda de fato.

Com efeito, colhe-se do referido artigo de lei:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95) (..)

§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)

Como se vê, há disposição que, por analogia, dá aos menores tutelados e aos enteados o mesmo tratamento dos filhos.

Pode-se, contudo, questionar a constitucionalidade de interpretação restritiva deste.

De início, destaco que, de acordo com a lição doutrinária, é já clássica distinção entre heterointegração da autointegração. A (1) heterointegração ocorre quando, presente uma lacuna normativa, ela é suprida (1.i) por outro ordenamento, como o direito natural, ou (1.ii) outra fonte, como os costumes, direito judiciário (= poder criativo do juiz) ou doutrina. A (2) autointegração, por sua vez, ocorre quando são utilizados o mesmo ordenamento e a mesma fonte para suprir lacuna, podendo ser (2.i) analogia ou (2.ii) princípios gerais do direito. Na analogia, há criação da norma jurídica para alcançar elemento não abrigado que possui uma semelhança relevante com o normatizado; essa semelhança é finalística em relação à norma que será aplicada por analogia; essa criação é que difere a analogia da interpretação extensiva. Os princípios gerais do direito, de outra banda, são normas gerais e podem ser expressos ou não expressos; são normas por dois motivos (a) são derivadas e derivam outras normas e (b) cumprem a mesma função; isto é, regulam formas de conduta (BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, Tradução de Cláudio de Cicco e Maria Celeste C.J. Santos. São Paulo: Polis; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1989. p. 146/160).

Ora, a interpretação da norma é ato de reconstrução desta, a partir da racionalidade inerente ao ato de exegese do intérprete/aplicador, que insere seus valores e fins no resultado, ao escolher um dentre os possíveis derivados do sistema normativo; esse agir interpretativo pode ser sujeitado a certos limites intrínsecos à idéia de interpretar, dentre eles os limites impostos à interpretação e (re)construção da norma está a obediência a uma hierarquia constitucional e a certos postulados normativos.

Porém, estas restrições não podem ser feitas por uma interpretação restritiva de forma geral e abstrata, mas sim no caso concreto, ao se fixar a norma jurídica individual, de forma a manter a compatibilidade desta com a Constituição. Este exame casuístico é operado com base em validação finalística do direito não econômico subjacente ao caso concreto, especialmente para se preservar o direito à dignidade da pessoa humana, o que inclui a possibilidade, ainda que excepcional, de analogia para abrigar situação fática não vislumbrada genericamente na hipótese de isenção formulada abstratamente pelo legislador.

Ou seja: ao aplicar o próprio ordenamento mediante analogia, há um “trazer para fim desejado” consistente na regulação de fato similar à hipótese de incidência já regulada. Em outras palavras, abrigar, por analogia, um fato a uma norma consiste, de certa forma, em fazer cumprir o desejo traçado pelo legislador. Logo, se for dada primazia aos fins, e não aos meios, a analogia não só é possível, como também desejável, pois cumpre, por sua própria definição, o papel de atingir os fins visados, no caso, os objetivos constitucionais traçados pela carta de 1988.

Pois bem, a Carta Constitucional de 1988 diz:

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (..)

§ 3º – O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: (..)

II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; (..)

§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Logo, não só é vedada a distinção entre filhos adotados ou não, como também é assegurada plena “proteção especial” quanto à garantia dos direitos previdenciários das crianças.


Veja-se que, no plano infraconstitucional, são resguardados os direitos do menor sob guarda, nos exatos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990) – ECA:

Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.

§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.

§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados.

§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.

Ora, se a posse de fato é resguardada juridicamente pela guarda (§1º do art. 33 do ECA) e se esta pode ser concedida em situações peculiares (§2º do mesmo artigo), gerando, como efeito, a proteção e situação de dependência inclusive para efeitos previdenciários (§3º do mesmo artigo), então é evidente que a posse de fato, quando presentes certas circunstâncias peculiares, gera, por analogia, os mesmos efeitos.

No caso dos autos, a prova oral, no seu essencial (art. 36, da Lei 9099/1995), confirma que a autora, ainda bebê, foi acolhida por seu tio e tia, que, em razão situação econômica da mãe biológica (envolvida com drogas na época), a tomaram para sua posse de fato, cuidando dela como se pai e mãe fossem (fls. 41/42 e 47). Aliás, neste particular, este magistrado, que conduziu ambas as audiências de instrução, pode afirmar, categoricamente, que a menina tratava a sua tia, cônjuge supérstite, como se mãe fosse, demonstrando os laços afetivos que entre eles existiam.

Além da prova testemunhal, foi juntada ampla e farta prova documental, neles constando o de cujus e sua esposa como pai e mãe da autora, tais como ficha de internamento (fls. 15/16), prontuário odontológico (fls. 20/21), registro clínico (fls. 22), cadastro escolar (fls. 27) etc.

Logo, por tudo isso, resta evidente que a situação fática descrita na inicial é verdadeira.

Ora, não fosse somente a possibilidade de se interpretar extensivamente os dispositivos legais já citados, fundamentos jurídicos que, por si só já bastam para a concessão do pedido, “ad argumentandum tantum”, há que se pugnar, ainda, pela aplicabilidade do disposto no art. 6º da Lei 9099/1995.

Com efeito, diz a Lei Lei 9.099/95:

Art. 6º O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.

Ora, é de se aplicar na hipótese a eqüidade, conforme entendo possível a partir da interpretação do art. 6º da Lei 9.099/95, que, ao contrário do art. 5º da LICC, cuja redação é muito semelhante, acrescentou, também, a decisão que se reputar mais equânime.

Como é sabido, a eqüidade, de origem histórica a partir da régua grega que flexível se amoldava a qualquer superfície, consiste na busca de uma solução mais justa que reflita o ideal de Justiça perseguido pelo Direito; é a chamada busca do “jus” em contraposição ao “fas”, de acordo com a antiga concepção romana.

Nunca é demais lembrar que, ao contrário da Economia que é baseada em juízos de relação custo/benefício estritamente monetários, o Direito é fundado em juízos de Justiça, ainda que esta seja um ideal inalcançável, mas que sirva como móvel e fim último para toda a ação jurídica. É a busca da utopia que diariamente realiza o avanço possível.

Na espécie, desconsiderar todo o envolvimento material e afetivo entre a autora e seu tio, que a cuidava como se filha fosse, e dar primazia ao formal tratamento decorrente dos laços biológicos é reduzir a alma humana a cadeias de material genético, olvidando de toda a subjetividade que nos distingue dos animais.

É bem verdade que, no decorrer destes anos, os pais afetivos da autora não buscaram legalizar a sua situação, mas isso se deve não à má-fé, e sim à sabida falta de consciência dos deveres e direitos que todo cidadão tem, sobremodo quando o acesso aos órgãos competentes ainda não atinge o ideal preconizado por todos os operadores jurídicos.

Vale repetir que tanto a prova documental quanto a testemunhal foram firmes e condizentes com o alegado faticamente, o que impede eventual alegação de que a interpretação restritiva visa evitar fraudes. Se no futuro demandas sem lastro probatório tentarem reproduzir a presente decisão, elas alcançaram a improcedência, e até mesmo eventual condenação por litigância de má-fé. Com isso, resguarda-se o patrimônio público com destinação social que é o da Previdência Social.

Os efeitos da renúncia observam o disposto pela Turma Recursal da Seção Judiciária de Santa Catarina (Processo 2004.72.95.007313-1, Relatora Juíza Eliana Paggiarin Marinho, sessão de 19/01/2005), ou seja, o teto de alçada dos juizados especiais federais só limita os valores vencidos até a data do ajuizamento da ação.

Não obstante este magistrado tenha posição particular no sentido de que cabe à Autarquia Previdenciária bem informar o segurado quando este faz o requerimento de aposentação, indicando a possibilidade de juntada de documentos a fim de averbar tempo de serviço, o que justificaria pagamento dos atrasados desde a data do requerimento administrativo, a jurisprudência da Turma Recursal desta Seção Judiciária tem fixado a data da citação como termo inicial para as diferenças relativas às prestações vencidas naqueles processos em que a prova material foi predominantemente juntada só na via judicial.

Isso posto, considerando que os documentos utilizados como base para o reconhecimento do tempo objeto deste processo só foram apresentados quando do ajuizamento da demanda, fixo como termo inicial para as diferenças relativas às prestações vencidas a data da citação do INSS.

DISPOSITIVO

Ante o exposto, julgo parcialmente procedentes os pedidos, para condenar o INSS a:

1 – conceder benefício de pensão por morte à parte autora, com data inicial no óbito do instituidor (21.12.2003), nos termos dos arts. 74, e seguintes, da Lei 8.213/1991;

2 – pagar à parte autora as prestações vencidas, conforme cálculo anexo, incidindo juros moratórios de 1% ao mês, tudo na forma dos enunciados das Súmulas 02 e 07 da E. Turma Recursal do Estado de Santa Catarina;

3 – pagar administrativamente à parte autora, sob a forma de complemento positivo (CP), as prestações vencidas posteriormente, desde a sentença até a data da implementação, observados os mesmos critérios de juros e correção monetária.

Sem honorários, nem custas (arts. 54 e 55 da Lei 9.099/95).

Concedo o benefício da assistência judiciária gratuita.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Itajaí, 19 de abril de 2005.

Vilian Bollmann

Juiz Federal Substituto

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