Culpa dos buracos

Fiat é condenada por vender carro ‘não tropicalizado’

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21 de abril de 2005, 8h20

A Fiat terá de indenizar um consumidor por causa dos defeitos insanáveis que o carro comprado por ele apresentou. Apesar de ser um veículo com dois anos de uso e com mais de 60 mil quilômetros rodados, pesou na decisão a constatação feita pela perícia de que os componentes e peças não estavam adaptadas às condições de tráfego locais.

Segundo os peritos, o carro não passou pelo processo de “tropicalização”, a que são submetidos os veículos fabricados originalmente em outros países para suportarem as condições de estradas e ruas brasileiras.

Marcelo Machado Madeira, que em 1997 comprou um Fiat Coupê, 16V, fabricado em 1995, irá receber uma reparação por danos morais e materiais no valor de R$ 32 mil. A decisão é da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que entendeu que o fabricante deve colocar no mercado produtos que atendam às especificidades do consumidor. Cabe recurso. A informação é do TJ-MG.

O carro apresentou funcionamento irregular do motor, além de falhas do dispositivo de fixação do volante, problemas de suspensão e outros defeitos causados pela trepidação das pistas de rolamento.

O fabricante alegou que o carro foi comprado de segunda mão e que apresentava uma média de 30.000 quilômetros rodados por ano, equivalente ao dobro do padrão normal de quilometragem.

Os desembargadores Luciano Pinto, relator da matéria, Márcia de Paoli Baldino e Marine da Cunha, entenderam que os defeitos se deram por culpa da fabricante, que colocou no mercado nacional veículo incompatível com as condições das estradas brasileiras. Para eles, todos os problemas apresentados pelo carro estão ligados ao fato de a Fiat não ter “tropicalizado” o produto importado antes de colocá-lo no mercado nacional.

O desembargador Luciano Pinto considerou que a Fiat verificou a existência dos defeitos no carro desde o primeiro momento e, em vez de providenciar a “tropicalização” das peças, preferiu levar o problema adiante, com soluções transitórias e inconsistentes, sem nunca solucionar a fonte do problema.

O TJ-MG condenou a Fiar a devolver ao consumidor o valor pago no carro — correspondente a R$ 27.800,00, além da reparação por dano moral, arbitrada em R$ 5 mil.

Processo nº 486.494-8

Leia a íntegra do acórdão

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. VÍCIO DE FABRICAÇÃO. CDC. REPARAÇÃO DOS DANOS MATERIAIS E MORAIS. JUROS DE MORA. RESPONSABILIDADE CONTRATUTAL. INCIDÊNCIA DESDE A DATA DA CITAÇÃO.

Havendo prova concreta de que os defeitos apresentados pelo veículo se deram por culpa do fabricante, que colocou no mercado nacional veículo incompatível com as condições das nossas estradas, impõe-se a obrigação de indenizar em razão das inúmeras vezes em que o veículo foi levado ao conserto sem solução dos problemas.

Em se tratando de responsabilidade contratual, os juros de mora incidem desde a citação para os danos morais e materiais.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível Nº 486.494-8 da Comarca de BELO HORIZONTE, sendo apelante (s): 1º) FIAT AUTOMÓVEIS S.A. 2º) MARCELO MACHADO LADEIRA e Apelado (a) (os) (as): OS MESMOS,

ACORDA, em Turma, a Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais NEGAR PROVIMENTO À PRIMEIRA APELAÇÃO E DAR PARCIAL PROVIMENTO À SEGUNDA.

Presidiu o julgamento o Desembargador MARINÉ DA CUNHA (Vogal) e dele participaram os Desembargadores LUCIANO PINTO (Relator) e MÁRCIA DE PAOLI BALBINO (Revisora).

O voto proferido pelo Desembargador Relator foi acompanhado, na íntegra, pelos demais componentes da Turma Julgadora.

Belo Horizonte, 01 de abril de 2005.

DESEMBARGADOR LUCIANO PINTO

Relator

V O T O

O SR. DESEMBARGADOR LUCIANO PINTO:

Marcelo Machado Ladeira ajuizou Ação de Indenização por danos morais e materiais contra Fiat Automóveis S.A., narrando ter adquirido um veículo da ré marca Fiat Coupê 16 V, modelo 1996.

Disse que o referido veículo passou pelas revisões nas concessionárias autorizadas da fábrica, tendo apresentado, desde a primeira revisão, defeitos que nunca chegaram a ser corrigidos.

Ressaltou que as ordens de serviço, que disse juntar, demonstravam suas queixas relativamente ao mau desempenho do veículo, assim como inúmeros defeitos que apresentou constantemente.

Narrou as inúmeras vezes em que levou o veículo às concessionárias e a persistência dos defeitos, que descreveu.

Discorreu sobre a responsabilidade da ré, nos termos da lei, e pediu sua condenação em danos materiais no valor de R$27.800,00 e em danos morais a serem arbitrados pela sentença.

Juntou documentos.

A ré contestou a ação às f. 51/55, assinalando que o veículo adquirido pelo autor não era novo, tendo ele sido adquirido de terceira pessoa, tal como faziam prova os documentos de f. 17 e 19.


Adiante, ressaltou que o veículo adquirido tem como ano de fabricação o de 1995 e fora adquirido pelo autor em fevereiro de 1997, mas já no ano seguinte, no mês de maio, contava com mais de 30 mil quilômetros rodados, de modo que, pela narrativa do autor, o veículo teria rodado em um ano, o dobro da média da quilometragem rodada anualmente pelos demais veículos.

Assinala que tais fatos contradizem a narrativa do autor porque um veículo com tantos defeitos não rodaria tanto em tão pouco tempo.

Acrescenta que as ordens de serviço juntadas pelo autor, ao contrário do que ele teria dito, não comprovam defeitos, apenas registram as queixas dos proprietários.

Impugnou referidas ordens de serviço porque se apresentavam como documentos em cópias não autenticadas, às vezes rasurados e nem sempre assinados por funcionários das concessionárias.

Descreveu a forma como são emitidas as ordens de serviço, esclarecendo que elas apenas informam as narrativas dos proprietários sobre o mau desempenho do veículo, podendo ser um instrumento de fraude se as informações forem inverídicas.

Disse que a constatação ou não dos defeitos narrados somente se dá após os mecânicos examinarem o veículo, o que ocorre em um segundo momento, quando são emitidas notas fiscais de peças e serviços, se o veículo não estiver na garantia.

Volta ao argumento de que o veículo do autor, por ter rodado mais de trinta mil quilômetros em menos de um ano e meio, não apresenta defeitos de fábrica mas, apenas, os defeitos normais do uso.

Verberou o pedido de indenização, assinalando que não havendo culpa, não pode haver condenação.

Disse que há pretensão de enriquecimento sem causa do autor, principalmente porque o valor de R$27.800,00 por um veículo nas condições em que se apresenta o aqui em discussão, é excessivo.

Negou o dano moral e pediu a improcedência da ação.

Sobreveio longa dilação probatória, com perícia e complementações de perícia, respostas a quesitos suplementares e apresentação de laudos de assistentes técnicos.

Encerrada a instrução, houve sentença que, entendendo ter a prova demonstrado que existem inúmeros defeitos no veículo do autor e que esses defeitos não se apresentam dentro da normalidade pelo uso da coisa, julgou procedente a ação e condenou a ré a pagar ao autor, a título de indenização por danos materiais, o valor de R$27.800,00 e, a título de danos morais, o valor de R$5.000,00.

Acolhendo embargos de declaração, a sentença foi alterada no sentido de que os danos morais seriam corrigidos pela tabela da Corregedoria de Justiça e acrescidos de juros de 1% ao mês, a partir da sentença.

As partes apelaram da sentença.

A primeira apelação, da ré, pede a reforma da sentença ao argumento de que não teria havido violação do art. 18 do CDC, que trata da responsabilidade do fabricante sobre os defeitos e vícios apresentados pelo produto, que o tornam impróprio ou inadequado ao consumo.

Disse que da prova colhida nos autos apenas houve a conclusão por duas anomalias no veículo do autor, sendo que uma seria na guarnição do vão da porta esquerda e a outra dizia respeito ao rumor no motor que não teria sido narrado na inicial.

Adiante, discorreu sobre a forma como se deram as perícias, discordando delas.

Adiante, asseverou que a sentença não teria atentado para o fato de que houve inequívoca prova de que o veículo teria sido levado em oficinas não autorizadas, onde foram realizadas intervenções.

Insistiu que as ordens de serviço não representam a ocorrência de defeitos no veículo e negou que as descrições nas ordens de serviço apresentadas pelo apelado traduzissem a verdade dos fatos.

Adiante, disse que a condenação, tal como se deu, feriu os princípios de proporcionalidade e da razoabilidade porque impôs o pagamento de valor equivalente ao de um veículo zero quilômetro, devidamente atualizado, embora o veículo do apelado tenha sido utilizado regularmente durante mais de oito anos.

Disse que o reconhecimento do direito do apelado não poderia ensejar tal condenação, devendo ser considerados a utilização do veículo, sua depreciação e o valor atual do mercado para a fixação da indenização.

Sobre o dano moral, disse que ele não ficou provado nos autos, e que, de outro lado, teria fica claro que ao apelado fora disponibilizado todo tido de apoio técnico necessário.

Transcreveu arestos em prol de seus argumentos e pediu o provimento de seu recurso.

A segunda apelação, do autor, busca a reforma parcial da sentença, apenas relativamente ao valor fixado para os danos morais e incidência de juros e correção monetária sobre a condenação por danos materiais.

Discorreu sobre os inúmeros transtornos pelos quais passou em razão dos defeitos apontados no veículo e da frustração de expectativas em relação ao bem adquirido, ressaltando que o processo tramitou lentamente por culpa da apelada.


Salientou que não se pode desconsiderar, para a fixação da indenização, o dano moral sofrido, a capacidade de pagamento do seu causador e o objetivo de recompensar a vítima.

Assim, pediu a majoração do valor fixado na sentença e que a incidência dos juros e da correção monetária sobre os danos morais se dê desde a data da compra do veículo.

Adiante, disse que a correção monetária e os juros de mora fixados sobre a indenização por danos materiais devem incidir desde a data da citação.

Pediu a reforma parcial da sentença.

As partes apresentaram contra-razões.

DA 1ª APELAÇÃO (DA RÉ)

O recurso é próprio, tempestivo e preparado, por isso que dele conheço.

Primeiramente, disse a apelante que a perícia teria constatado apenas duas anomalias, uma na guarnição do vão da porta esquerda e outra relativa ao rumor no motor, que, a seu aviso, não constou da inicial.

Tal assertiva não é verdadeira.

Inicialmente, veja-se o que concluiu o primeiro laudo:

(f. 163):

“Os barulhos anormais da suspensão dianteira (esquerda e direita) são de fácil constatação, bastando trafegar com o veículo em pisos irregulares (calçamentos), tão comuns em Belo Horizonte, mas tais barulhos não afetam a dirigibilidade do veículo e é causado pela junta esférica do braço oscilante que possui um sistema amortecido por mola.”

(f.164/166):

“R.3- Sim. Provoca folga na direção.

A coluna de direção do veículo em questão conta com ajustes de altura e profundidade. Existe ima(sic) folga no sistema de profundidade.

R.7- É uma das características comuns dos veículos dotados de motorização muti-válvulas, um menor desempenho em baixas rotações (devido a sua curva de torque, ser menos uniforme e mais elevada em altas rotações). O referido veículo é equipado com esta motorização muti-válculas.

No entanto, na perícia técnica, constatou-se que o problema não é decorrente das características supracitadas e sim uma particularidade do motor em questão.

R.9- (…) Este sistema encontra-se danificado, fazendo com que o ar-condicionado desligue mesmo que o veículo não tenha sido exigido, ou seja, em condições normais de condução, o que acarreta em um desconforto térmico e um forte odor de umidade.

Agora, veja-se o que concluiu o segundo laudo:

(f.294):

“Pelo que os membros da perícia analisaram, com a aquiescência do Autor, é que tal situação deve ser decorrente de falha do dispositivo de fixação do volante. A peça de fixação da coluna na posição desejada para o volante (altura e profundidade) deve estar afrouxando em decorrência da trepidação oriunda das pistas de rolamento.”

(f. 410):

“b) O veículo do Autor apresentou funcionamento irregular do motor e normal do ar condicionado. Quando acelerado acima de 1.800 rpm, o motor apresentava ´pancadas`, admitidas pela Perícia como oriundas de bielas, ou seja, folgas internas (possivelmente nos casquilhos).”

(f. 413):

“A verificação de performance do veículo do Autor ficou prejudicada, tendo em vista não poder ser acelerado acima de 2.000 rpm, dadas as precárias condições do motor. Conforme observado pelas pessoas presentes no veículo, mesmo até 2.000 rpm o desempenho ficou bem abaixo do veículo paradigma, dando a impressão de estar ´frouxo` (sem força).”

Assim, quanto ao argumento de que somente dois defeitos teriam sido apurados pela prova, ele está derruído pelo que foi assinalado acima.

Adiante, a inicial disse claramente que o veículo fora levado às concessionárias para “…verificação dos ruídos e trepidação do volante.” (f.03), o que derrui também o argumento de que quanto ao segundo defeito apurado pela perícia, ele nem sequer teria constado da inicial.

A primeira perícia (f.160/191), impugnada pela ré porque elaborada por perito ligado à área de engenharia civil, foi corroborada pela segunda perícia, elaborada por perito devidamente qualificado (f.285/303), de modo que, no caso presente, a qualificação do perito não obstaculizou a realização de um laudo preciso.

Some-se a isso que ambos os laudos confirmaram que o veículo, de fato, passou por incontáveis manutenções nas oficinas credenciadas da ré e que tal fato pode ser facilmente constatado pelo exame da documentação juntada com a inicial, como se vê.

As folhas 20/22 demonstram que o início das queixas do apelado se deu na primeira revisão do veículo e as folhas 24/30 dão conta de que muitas das queixas tinham concretude, porque neles se lê no campo “DESCRIÇÃO DOS SERVIÇOS”, exatamente a descrição das queixas, com a observação “O.S. LIBERADA”, o que indica que o serviço foi realizado.

Adiante, os documentos de f. 31/34, relativos à “REVISÃO DE 20.000 KM.”, que não é uma ordem de serviço mas uma “DESCRIÇÃO DOS SERVIÇOS”, provam que o apelado continuou a ter problemas com o veículo.


Essa mesma situação persistiu meses a fio, conforme se verifica nos documentos que se seguiram.

Assim, a meu ver, a só documentação apresentada pelo autor já demonstraria uma inegável verossimilhança em seus argumentos.

Como se não bastasse isso, um fator apontado pela prova pericial, a meu ver, liquida toda a questão.

Tal fator foi afirmado pelo primeiro laudo, à f. 163, que não foi contraditado pelo segundo laudo.

O referido laudo disse que:

“Os barulhos anormais da suspensão dianteira (esquerda e direita) são de fácil constatação, bastando trafegar com o veículo em pisos irregulares (calçamentos), tão comuns em Belo Horizonte, mas tais barulhos não afetam a dirigibilidade do veículo e é causado pela junta esférica do braço oscilante que possui um sistema amortecido por mola.

Estes problemas são decorrentes do veículo não estar preparado para trafegar nas precárias vias Brasileiras, que muito ficam a dever às do primeiro mundo, onde o carro foi concebido e produzido, atendendo seu principal mercado. Os fabricantes usam o termo ´tropicalização` para designar alterações feitas nos veículos importados que são adequados para funcionar e trafegar no Brasil.

No entanto, é sabido que o Fiat Coupe, importado pelo próprio fabricante, não sofreu nenhum tipo de ´tropicalização` ao ser trazido para nosso país.

Um exemplo recente da necessidade dessa ´tropicalização`, foi relatado ostensivamentepela imprensa, que um dos principais fatores no atraso da produção do Fiat Marea no Brasil, foi a necessidade de alterações na suspensão, já que o projeto original (desenvolvido para o primeiro mundo) demonstrou ser extremamente frágil para nossas necessidade e aplicações (ruas e avenidas) precárias.

Estes barulhos na suspensão dianteira são provenientes dos braços oscilantes que não foram ´tropicalizados` sendo que estes requerem constantes substituições por parte da assistência técnica, como demonstrado nas Ordens de Serviço constantes dos autos.”

O segundo laudo confirma tal afirmação, quando ao responder ao quesito 1.3 da ré, à f. 292, disse o seguinte:

“1.3 – Qual a fonte de informação que assegura que os braços oscilantes do veículo não foram ´tropicalizados`?

Resposta

Para formular a resposta a este quesito, o Perito consultou a correspondência da Ré, datada de 08.05.2000 (fls. 223 dos autos), assinada pelo Sr. Jader Bastos (R. Produto). Nela a Ré declara que alguns componentes sofrem um processo de tropicalização, para que o veículo se adeque às condições de solo, combustível e legislação do Brasil.

Relação dos itens tropicalizados, segundo a Ré

triângulo de segurança

extintor de incêndio

identificação geral

recalibragem da central de injeção eletrônica

velas de ignição

tubulações de combustível

eletroinjetores de combustível

amortecedores

Nenhum dos itens acima está diretamente envolvido nas reclamações formuladas pelo Autor. Por outro lado, nada consta que o Autor tenha solicitado a realização de tal adaptação.”

Como se vê, é fato que inúmeros componentes e peças do veículo do autor não passaram pela ´tropicalização`.

Sobre a relação de direito material existente entre fornecedor de produto e consumidor, é cediço que o primeiro tem por obrigação colocar no mercado um produto adequado para o segundo.

Não é crível que um fabricante coloque no mercado um produto que não se adapta a ele; um produto que é produzido especialmente para um determinado tipo de consumidor mas é vendido para outro; um produto que, de antemão, sabe que vai apresentar defeitos porque não elaborado dentro das especificidades daquele mercado.

Quando o perito disse que, para o caso do veículo Fiat Marea, houve um atraso na sua produção no Brasil porque ele também não se mostrava adequado às condições de pista deste país, tendo que passar por uma ´tropicalização` de peças e dispositivos, ficou bem claro que a Fiat nunca poderia ter colocado outro veículo no mercado nacional, se ele também apresentava problemas tal como ocorrido com o Fiat Marea, para o qual foram tomadas as medidas cabíveis.

Diz Cláudia Lima Marques, em seu “Comentários ao Código de Defesa do Consumidor”:

“Assim, os produtos ou serviços prestados trariam em si uma garantia de adequação para o seu uso e, até mesmo, uma garantia referente à segurança que deles se espera. Há efetivamente um novo dever de qualidade instituído pelo sistema do CDC, um novo dever anexo à atividade dos fornecedores.” (Cláudia Lima Marques, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003, p.222.)

Sendo o fornecedor responsável objetivamente pelo produto que põe no mercado, somente na circunstância de haver culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, por defeitos apresentados no produto, essa responsabilidade ficaria eximida, mas aqui, não foi feita prova em tal sentido.


Todos os defeitos apresentados pelo veículo, desde sua primeira revisão, persistiram ao longo da sua vida útil, e estão ligados ao fato de a Fiat não ter ´tropicalizado` o produto importado, antes de colocá-lo no mercado nacional.

Tal inércia pode ser classificada como única razão justificável para a presença dos defeitos que estão quase todos, ou todos, ligados à trepidação das pistas de rolamento.

A meu aviso, a apelante, desde o primeiro momento em que verificou a existência de defeitos no veículo do apelado, deveria ter providenciado a necessária ´tropicalização` das suas peças, mas preferiu levar o problema adiante, com soluções transitórias e inconsistentes, sem nunca solucionar a fonte do problema.

Tal medida representa uma inércia inaceitável, até porque os defeitos poderiam provocar um acidente com o veículo, o que significa risco para o consumidor.

A jurisprudência do STJ tem se firmado no seguinte sentido:

“RESP 185836/SP;

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. VÍCIO DE QUALIDADE. AUTOMÓVEL.

Não sanado o vício de qualidade, cabe ao consumidor a escolha de uma das alternativas previstas no art.18, § 1º, do CDC”.

Como se vê, desde o primeiro momento, quando o autor levou o veículo à concessionária e foram constatados defeitos ligados à não-´tropicalização`, o correto, o justo, o imperativo era que a Fiat ou efetivasse tal medida ou colocasse à disposição dele outro veículo.

Mas não foi o que ocorreu.

Quanto ao argumento da apelante, no sentido de que a sentença não teria apreciado questão levantada pelo parecer técnico de f. 519/524, de seu assistente técnico, que apontou irregularidades no veículo do apelado, relativamente à violação e à adulteração da central eletrônica de controle do motor (centralina), é de ver que o perito oficial, diante de tal afirmação, pronunciou-se no seguinte sentido (f. 529):

“3b). Sim, quanto a modificar o limite superior de rotações do motor; causar danos nos componentes internos do mesmo (ou reduzir sua vida útil), deve ser admitido apenas como possibilidades.

3c). O Perito não tem como assegurar se a memória EPRON da central eletrônico foi ou não substituída temporariamente por outra diferente da original. Relembra apenas o que consta das fls. 223 dos autos: ´Central de injeção eletrônica Þ recalibrada em função do combustível brasileiro`.”

Em primeiro lugar, não se pode sequer afirmar que a violação do lacre e a abertura do componente tenham sido feitas pelo autor. Afinal, o veículo transitou pelas oficinas credenciadas inúmeras vezes e em nenhuma delas houve apontamento pelos mecânicos desse fato.

Segundo, ainda que se admita que a violação tenha se dado por culpa do apelado, o próprio assistente técnico da apelante afirmou que a memória EPROM instalada no interior da centralina do veículo, na data daquela vistoria, possuía calibração original.

Assim, a troca da memória EPROM antes da vistoria, por outra, levantada também pelo assistente técnico, não passa de mera especulação porque não foi provada.

Terceiro, não se viu nos autos nenhum indício de prova concreta, no sentido de que, se tivesse havido a substituição da memória EPROM do veículo, essa troca teria sido a causadora dos inúmeros defeitos apresentados por ele.

Na verdade, toda essa questão não passou de mera hipótese, cingindo-se ao plano das possibilidades que não pode, obviamente, arrimar julgamento.

Desse modo, a sentença não poderia, mesmo, levar em linha de conta o que se apurou no laudo do assistente técnico da apelante.

Sobre o fato de terem sido instalados componentes não originais no veículo (velas de ignição), o perito oficial, à f. 529, também esclareceu a questão, ao responder ao quesito 2 formulado pela apelante, à f. 518:

“2. Esta vela é a mesma utilização pelo Fiat Coupé? Em caso negativo, justifique.”

“2. Sim (vem sendo utilizada no Brasil).”

Assim, não ficou provado, ao contrário do que afirmou a apelante, que teria havido alteração das características genuínas do veículo e, via de conseqüência, que o veículo não apresentava vício de fabricação.

Sobre o pedido de que o valor da condenação por danos materiais seja reduzido porque não teriam sido considerados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, eis que, a seu aviso, o veículo teria sofrido depreciação durante os anos que sobrevieram após a sua aquisição pelo apelado, tal pedido não tem juridicidade.

Os problemas que apresentou o veículo ao longo da sua vida útil e que se iniciaram logo após a sua compra, por vício na fabricação, impõem a reposição do valor pago pelo autor quando o adquiriu, porque, se forem levados em linha de conta a desvalorização, depreciação, e valor de mercado do veículo hoje, obviamente que não se estará fazendo justiça alguma, já que durante anos o veículo apenas trouxe transtornos ao consumidor, sem falar nos possíveis riscos.


Assim, os danos materiais devem ser mantidos tal como na sentença.

Sobre os danos morais, naturalmente que eles estão demonstrados, bastando para sua confirmação a verificação de todas as solicitações de serviço feitas pelo apelado, donde se conclui que o veículo transitou muito mais entre a sua residência e as oficinas do que em outro lugar qualquer.

Os dissabores e frustrações são inequívocos e óbvios, de modo que também os danos morais devem ser mantidos.

Com isso, nego provimento à primeira apelação.

DA 2ª APELAÇÃO (DO AUTOR)

O recurso é próprio, tempestivo e preparado, por isso que dele conheço.

Primeiramente, o apelante visa, com o presente recurso, alterar a parte da sentença que fixou os danos morais no valor de R$5.000,00, porque entendeu que esse montante não representaria toda sorte de problemas, angústias e dissabores pelos quais passou por culpa da apelada.

Disse que o poderio econômico da apelada permite a majoração da indenização, razão pela qual não se pode manter o valor módico.

Dou razão, apenas em parte, à apelação do autor.

A meu aviso o valor fixado na sentença está, sim, representando bem a compensação que lhe é devida em razão da ação da apelada.

O valor de R$5.000,00 está dentro dos parâmetros utilizados por este Tribunal, em casos semelhantes, razão pela qual mantenho a sentença em tal tópico.

Relativamente à incidência dos juros e da correção monetária incidentes sobre os danos morais, estou que o pedido da apelante para que ela se dê desde a data da compra do veículo não pode prevalecer porque esse não é o entendimento firmado pela jurisprudência.

Em contrapartida, também não pode prevalecer a fixação dos juros a partir da prolação da sentença, tal como fixado nesta, porque o STJ já firmou entendimento no sentido de que nas relações contratuais, os juros de mora incidem nos danos morais desde a citação, como se vê no aresto seguinte:

“RESP 565290/SP;

DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE FERROVIÁRIO FATAL. INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. JUROS MORATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

Em caso de responsabilidade contratual, os juros moratórios devem fluir a partir da citação”.

Assim, dou parcial provimento ao recurso, para que os juros moratórios incidentes sobre a indenização por danos morais se dê a partir da citação.

Sobre a data de incidência dos juros moratórios sobre os danos materiais, tem razão também o apelante porque, de fato, eles incidem desde a data da citação do apelado e não a partir da prolação da sentença.

Assim, dou razão ao recurso em tal tópico.

Quanto à correção monetária incidente sobre os danos morais, ao contrário do que entendeu o apelante ela é devida a partir da sentença porque em tal momento se estabeleceu o valor considerado justo para eles, de modo que os acréscimos de correção monetária devem se dar posteriormente à sua fixação.

Com isso, mantenho a sentença em tal passo.

Isso posto, dou parcial provimento ao recurso, fixando como termo a quo dos juros moratórios das indenizações por danos morais e materiais, a data da citação da ré.

A sucumbência se mantém, como na sentença.

DESEMBARGADOR LUCIANO PINTO

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