Justiça num clique

Judiciário brasileiro se aperfeiçoa com ferramentas tecnológicas

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2 de abril de 2005, 14h19

O Judiciário brasileiro vai deixar de ser um arquipélago de ilhas que não se comunicam. “A ponte que vai unir essas ilhas será a padronização tecnológica”, anuncia o secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Sérgio Renault. A demolição da torre de babel vai ser gerenciada pelo Conselho Nacional de Justiça, que unificará as regras operacionais de todo o sistema judiciário, o que é impossível hoje. O motivo, explica Renault, “é a excessiva autonomia que cada tribunal tem hoje para escolher como quer funcionar”. Em um paralelo com a situação jurídica, o secretário compara as diferentes situações tecnológicas com um país em que cada estado tivesse um Código Civil diferente.

O fato é que a tecnologia foi eleita o mais importante instrumento de modernização do Judiciário. E a principal parceira de fóruns e tribunais na tentativa de desburocratizar os trâmites judiciais e otimizar o trabalho de juízes e advogados.

A migração do caos em vigor para um sistema racional, contudo, ainda leva tempo. Há boas idéias em andamento, mas também um enorme descompasso entre as “ilhas” mencionadas por Renault: enquanto algumas delas exibem o avanço do Primeiro Mundo, outras estão muito longe disso, como a Justiça estadual paulista. O advogado trabalhista do Rio Grande do Sul, por exemplo, não precisa levantar da mesa de seu escritório para protocolar uma petição no Tribunal Regional. Da mesma forma, o cidadão que necessita de uma certidão negativa da Justiça Federal, a partir deste mês, pode obtê-la com alguns cliques, em vez de ter de esperar cinco dias para que ela seja impressa e autenticada.

Smart card para desembargadores

Algumas tentativas, mesmo bem intencionadas, frustram-se. Foi o caso da Justiça Federal da 3a Região (SP e MS). A abertura do ano judiciário, em fevereiro, foi aguardada com ansiedade. Estrearia um poderoso sistema destinado a facilitar a vida da comunidade. Não estreou. A novidade converteu-se numa pane monumental, que afetou toda a primeira instância.

Em compensação, a segunda instância gaúcha já adotou a certificação eletrônica de atos de desembargadores no ano passado, eliminou o uso do papel nos trâmites internos e reduziu pela metade o tempo das sessões. “Toda a tramitação dos recursos ocorre via documentos eletrônicos gerenciados pelo sistema, e não há necessidade de impressão”, afirma Eduardo Arruda, diretor de informática do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Com isso, apenas em papel e tinta para impressão o TJ calcula que vai economizar R$ 740 milhões por ano.

Cada desembargador tem um smart card (espécie de chip de memória) com a sua assinatura eletrônica. Assim, os magistrados se conectam à rede, acompanham a pauta e, a cada processo, têm acesso aos documentos eletrônicos. A assinatura eletrônica e o acompanhamento virtual dos recursos são usados na redação de despachos, nas decisões monocráticas e até nas sessões de julgamento. “Os acórdãos são assinados digitalmente na sessão e vão para a Internet no mesmo dia”, garante Arruda. Os documentos eletrônicos gerados são mantidos em banco de dados e o acórdão é indexado pelo conteúdo e pelos dados estruturados do processo judicial.

Certificação digital

Para ter a mesma validade conferida aos processos e documentos tradicionais, o trâmite eletrônico em qualquer esfera judicial ou pública precisa ser certificado digitalmente, por meio dos certificados ICP-Brasil. A maior empresa de certificação digital no Brasil é a CertiSign, contratada para validar alguns projetos de processo virtual. No Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região, também no Rio Grande do Sul, por exemplo, a empresa ajudou a implantar o primeiro sistema de peticionamento eletrônico do país a utilizar certificação digital. Como o documento eletrônico assinado com certificado ICP-Brasil é considerado documento original, não é necessário o entregar o original em papel depois, exigência feita quando a petição é enviada por fax.

Num país de dimensões continentais como o Brasil, iniciativas como essa são mais do que necessárias. “Dependendo do lugar onde o advogado milita, ele perde até dois dias para protocolar um recurso no Tribunal. Agora, com a possibilidade de enviar a petição e acompanhar seu trâmite pela Internet, só viaja quem quer”, afirma Eduardo Antonini, diretor do departamento de informática do TRT-4. O sistema de peticionamento eletrônico deve começar a ser implantado em todos os Tribunais do Trabalho do país até o fim deste mês. “Numa reunião com os presidentes de todos os Tribunais Regionais do Trabalho foi fechado o planejamento de informática e criado o E-Doc, que será levado para todo o país”, diz Antonini.

Em relação à segurança na rede, Sérgio Kulikovsky, presidente da CertiSign, garante: “Nenhum documento certificado eletronicamente foi fraudado até hoje”. Essa é uma notícia boa, pois para o advogado especialista em Direito da Tecnologia Omar Kaminski, por exemplo, com a informatização dos procedimentos “ganha-se em agilidade e transparência, mas, em contrapartida, há necessidade de maior segurança para que se garanta a autenticidade, e, se for o caso, a confidencialidade dos documentos. As fraudes sempre existiram, apenas adquirem novas formas e nuances no ambiente virtual”. Fernando Eduardo Serec, sócio da área de contencioso da Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados, partilha da opinião: “Também há fraudes em documentos físicos. Não há mais espaço para a utilização desses argumentos diante das necessidades do Judiciário brasileiro”.

Para evitar possíveis fraudes, pode-se contar com mecanismos de autenticação, “como o uso de certificação digital tanto no cliente como no servidor”, afirma Kaminski. Ele faz questão de frisar que, apesar de alguns processos hoje serem totalmente virtuais, “existem atos cuja presença pessoal é necessária, senão indispensável, e uma das grandes discussões diz respeito ao interrogatório por teleconferência: se fere o princípio da identidade física do juiz, se ocorre cerceamento de defesa, entre outras questões”.

Quatro horas em 5 minutos

A adoção do processo virtual é um caminho sem volta. Prova disso é o fundo Justiça sem Papel. Criado pela escola da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas em parceria com o Ministério da Justiça e com apoio financeiro da Souza Cruz, o fundo financia com até R$ 300 mil projetos de informatização no Judiciário. O projeto piloto, implantado no Juizado Especial da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, já colhe seus primeiros resultados. “Um procedimento cujo trâmite levaria em torno de quatro horas, hoje, com o processo virtual, leva cinco minutos”, afirma Pablo de Camargo Cerdeira, gestor do projeto. Ele aponta ainda a redução de custos – “que são altíssimos” – com o armazenamento de documentos. “Com papel, é preciso ter cuidado com umidade, eletricidade, ordenação em prateleiras, espaço físico, entre outras coisas”.

A Justiça Federal também entrou na era da certificação digital e inaugurou, há pouco mais de um mês, a Autoridade Certificadora do Sistema Justiça Federal (AC-Jus) e o portal .

Pelo site, qualquer cidadão pode tirar uma certidão de “nada consta”, utilizada constantemente, por exemplo, nas transações imobiliárias, e certificá-la no ato da impressão. O portal também unifica o acompanhamento processual em todas as regiões da Justiça Federal do país.

O processo virtual e a Internet, apesar dos degraus que ainda precisam ser galgados, passaram a habitar, definitivamente, os corredores dos tribunais. Como atesta Omar Kaminski, “em decisões dos tribunais superiores já estão se tornando corriqueiros os dizeres: ‘conforme informações obtidas da Internet’”. O computador, costuma dizer o deputado Delfim Netto, não tem o condão de tornar inteligente o ser humano que se senta diante dele. Mas, por outro lado, é bem mais fácil ser inteligente com ajuda da tecnologia. O Judiciário brasileiro, finalmente, vai testar essa verdade e, com algum atraso, ingressa no século XXI.

* Reportagem publicada na revista Update, da Câmara Americana de Comércio de São Paulo.

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