Sem descanso

Mudança de sistema previdenciário para juízes é inconstitucional

Autor

  • Grijalbo Fernandes Coutinho

    é desembargador no TRT-10 (DF e TO) mestre em Direito e Justiça pela UFMG autor da pesquisa e do livro Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhadora – A inexorável relação entre a nova marchandage e degradação laboral as mortes e mutilações no trabalho (LTR 2015) ex-presidente da Anamatra.

26 de setembro de 2004, 9h35

A reforma previdenciária, concluída em 1998, lançou verdadeiro atentado aos princípios da independência e da separação dos Poderes, consubstanciado nas pretendidas alterações constitucionais no bojo das sucessivas Emendas atinentes ao seu texto.

Isso motivou o ajuizamento, pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), de Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de cautelar, no Supremo Tribunal Federal, objetivando reverter as conseqüências da indevida ingerência dos outros Poderes sobre o Judiciário.

Os juizes do trabalho sustentam que a reforma desequilibrou o sistema básico de freios e contrapesos concebido pelo constituinte originário, em manifesta infringência aos artigos 2o, 5o, § 2o e 60, §§ 3o e 4o, todos da Constituição Federal.

Com efeito, na redação original, o artigo 93, cabeça e inciso VI, da Carta Magna, estatui como “princípio” a ser observado na lei complementar que regerá o Estatuto da Magistratura, de exclusiva iniciativa do Supremo Tribunal Federal, “aposentadoria com proventos integrais, compulsória por invalidez ou aos setenta anos de idade, e facultativa aos trinta anos de serviço, após cinco anos de efetivo exercício na judicatura”.

Além de situar tais parâmetros de aposentadoria dos magistrados como “princípio”, o constituinte, reiterando o que sempre estatuíram as demais Cartas Republicanas, contemplou, como garantias da magistratura, a vitaliciedade e a irredutibilidade de vencimentos, qualificando-as, assim, como elementos inerentes ao regime de separação dos poderes abrigado pela nação, enquanto fundamentos da independência do magistrado e, via de conseqüência, do próprio Judiciário.

Nesse contexto, o preceito do art. 93, VI, da Constituição, era, e é, intangível, não só pelos demais Poderes, como pelo próprio Judiciário, mesmo por seu órgão supremo, quando da iniciativa e elaboração legislativa do Estatuto da Magistratura.

Afinal, a aposentadoria é uma restrição à vitaliciedade, e imiscuir-se na restrição inapelavelmente importa em interferir na própria garantia e, conseqüentemente, em instrumento básico concebido pelo constituinte originário para o sistema de freios e contrapesos que dá suporte à harmonia e independência dos Poderes.

Não obstante, quando da proposta de emenda constitucional que, ao cabo, redundou na Emenda 20/98 (a primeira das grandes Reformas da Previdência), em linha com o ideário neoliberal que anseia por um Judiciário fragilizado e previsível, tutelado pelas cúpulas, pretendeu-se alterar a mencionada norma constitucional, conferindo-lhe a seguinte redação: “a aposentadoria dos magistrados e a pensão de seus dependentes observarão o disposto no artigo 40, no que couber”.

A inconstitucionalidade material da proposta já era, de logo, evidente, posto que, embora ainda preservasse a iniciativa do Supremo para a lei complementar de regência inclusive do regime de jubilamento dos magistrados, dele tolhia a obrigatoriedade de observância dos parâmetros intangíveis albergados pela norma alterada e, o que é mais grave, da mesma observância pelo próprio Parlamento quando das deliberações legislativas atinentes ao Estatuto da Magistratura.

Não bastasse isso, foi além o Parlamento. Iniciada a tramitação da Emenda no Senado, a Casa Legislativa aprovou, em primeiro turno, a redação proposta, porém, em segundo turno, suprimiu a parte final (“no que couber”). Com isso, de uma tacada, sem mais nem menos, remeteu a aposentadoria dos magistrados ao regime comum ao conjunto dos servidores públicos civis, implementando indiscutível alteração de mérito na proposição inicial. Encaminhada a proposta para a Câmara dos Deputados, a Casa, em dois turnos de votação, ratificou a última deliberação do Senado, reiterando a mencionada supressão.

A inconstitucionalidade formal é manifesta, posto que, segundo preceito constitucional (artigo 60, § 2o), “a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. A vedação constitucional à aprovação em um único turno por qualquer das Casas Congressuais é evidente.

A alteração constitucional viciada, tanto sob a perspectiva material quanto formal, abriu caminho para outros retrocessos albergados pela segunda grande Reforma Previdenciária implementada pela EC n. 41/03, a afetar o regime de jubilamento do conjunto dos servidores públicos civis.

A Anamatra pugnou intensamente junto ao Congresso durante todo o processo de tramitação das mencionadas emendas constitucionais, buscando evidenciar o absurdo da violência cometida contra a ordem constitucional. Entretanto, suas ponderações e de outras entidades associativas não conseguiram o êxito almejado, apenas contribuindo para mitigar a magnitude dos retrocessos inicialmente pretendidos.

Mais forte foi a ressonância da campanha de fragilização do Judiciário encampada por alguns setores, a verberar que seus membros são beneficiários de privilégios, ocultando da sociedade que os predicamentos da magistratura, antes de tudo, são instituídos em favor da própria sociedade, na medida em que ensejam condições mínimas para a independência dos magistrados e, assim, do próprio Judiciário, guardião dos direitos e garantias dos cidadãos.

Jamais se considerou que, a par das garantias, ao magistrado são legalmente impostas inúmeras restrições normalmente não previstas, ao menos com igual rigor, para outras carreiras públicas, como sejam: a alteração freqüente de domicílio, o dever de residir na sede de sua comarca, a dedicação exclusiva decorrente da proibição de exercício de outras atividades profissionais (apenas excetuado um cargo ou função de magistério), a vedação de atividade político-partidária, a reserva social e a conduta social e pessoal irrepreensíveis, a acessibilidade diária ao destinatário direto de suas decisões, as limitações ao direito de expressão e a sujeição diuturna à fiscalização do jurisdicionado, para ficar só nessas.

Agora, apenas resta aos magistrados socorrerem-se do guardião-mor da Constituição, o STF. E a Anamatra não tem a menor dúvida de que a ordem constitucional será resgatada, restabelecendo-se os parâmetros mínimos inarredáveis previstos para o regime de jubilamento dos juízes nacionais na redação originária do inciso VI do art. 93. Quanto ao mais, não espera, nem pretende, qualquer tratamento diferenciado, ainda que justificável.

Entretanto, certo também é que, restabelecido, como deve ser, o preceito original do inciso VI do art. 93, toda e qualquer mudança em outros elementos do regime previdenciário a que submetidos os juízes anteriormente à aprovação da EC n. 20 haverá de ser rediscutida. O vícios de origem, de ordem formal e material, fulminam as alterações emergentes dessa Emenda e da EC n. 41, bem assim das que advierem da chamada PEC paralela, ainda em tramitação.

Diante das manifestas inconstitucionalidades, não há duvida de que o Supremo haverá de conceder, de plano, a cautelar propugnada na ação direta de inconstitucionalidade ora ajuizada. Qualquer tardança será deletéria ao Erário. As reparações dos danos aos magistrados que já implementaram os requisitos para o jubilamento segundo as condições previstas na redação original do art. 93, VI, da Carta da República, e que, a despeito disso, encontram óbice ao exercício desse direito, seguramente haverão de ser vindicadas.

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