Controvérsia jurídica

STFdeve decidir constitucionalidade de foro privilegiado

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21 de setembro de 2004, 19h45

O Supremo Tribunal Federal poderá dirimir, nesta quarta-feira (22/9), a controvérsia que se instalou na Corte desde o final de 2002, quando o governo passado sancionou a Lei nº 10.268, fixando foros privilegiados para ministros de estado, governadores e prefeitos, denunciados por improbidade administrativa.

Segundo a norma, o Supremo Tribunal Federal passou a ser o foro para os ministros, mesmo depois de deixarem o cargo. O Superior Tribunal de Justiça foi definido como foro dos governadores e os Tribunas de Justiça dos Estados, como foros dos prefeitos.

Tanto a Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) quanto a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) impetraram, na época, ações diretas de inconstitucionalidade, argumentando, em síntese, que uma lei subordinada não poderia atribuir competências aos Juizados que são definidas na Constituição.

O ex-presidente do STF, ministro Ilmar Galvão, hoje aposentado, recusou medida liminar requerida nas ADIs das associações. O relator, ministro Sepúlveda Pertence, deverá apresentar nesta quarta-feira o relatório e o voto sobre o mérito da questão para apreciação da Corte.

A impugnação da lei pelas entidades — que conta com parecer favorável, em parte, do ex-procurador geral da República, Geraldo Brindeiro (veja íntegra abaixo) — estabeleceu grande confusão em toda a estrutura do Judiciário. Juizes de primeira instância passaram a cumprir a lei e milhares de ações contra prefeitos foram remetidas para os Tribunais de Justiça.

Outros, consideraram a lei inconstitucional, e deram curso às ações que foram parar no STF. Na Corte, o entendimento dos ministros também tem sido controverso. Os ministros Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso, por exemplo, passaram a não tomar conhecimento das reclamações. Para Pertence, os juízes de primeira instância podem julgar como quiserem enquanto o STF não apreciar as ADIs.

Os ministros Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Carlos Britto, da mesma forma, têm desconhecido as reclamações, mas sob um outro argumento. As decisões dos juizes de primeira instância não têm validade enquanto não houver o julgamento das ADIs, o que deverá ocorrer nesta quarta-feira.

Leia a íntegra do parecer do ex-procurador geral da República, Geraldo Brindeiro

Parecer n.º 17.965/GB

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 2.797-2/600 – DF

Requerente: Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp

Requeridos: presidente da República e Congresso Nacional

Excelentíssimo Senhor Ministro Relator,

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP em face dos parágrafos primeiro e segundo do art. 84, do Código de Processo Penal, acrescentados pelo art. 1.º, da Lei n.º 10.628, de 24 de dezembro de 2002.

2. Sustenta a requerente, preliminarmente, sua legitimidade para a propositura da ação direta. No mérito, pugna pelo reconhecimento da inconstitucionalidade das redações dos §§ 1.º e 2.º do art. 84, tal como lhe conferidas pela Lei n.º 10.628/02. Afirma que o legislador arvorou-se em intérprete da Constituição, dando-lhe exegese diversa da que lhe foi atribuída pelo Supremo Tribunal Federal, e acrescentou hipótese não prevista no texto constitucional de competência originária dos tribunais.

3. A fls. 31, o eminente Ministro ILMAR GALVÃO, no exercício da Presidência desse Excelso Tribunal, solicitou informações aos requeridos.

4. A fls. 33/105, a Presidência da República e a Advocacia-Geral da União prestaram informações, sustentando, preliminarmente, a ilegitimidade da associação autora e, no mérito, a constitucionalidade do diploma legal atacado. Afirmam que as normas impugnadas não introduzem competência adicional alguma às constitucionalmente previstas para os Tribunais, cuidando-se de mera explicitação do sentido e alcance de tais competências, observado o princípio de hermenêutica constitucional da máxima efetividade das normas constitucionais, sem nada lhe acrescentar.


5. A fls. 107/108, já de posse das informações prestadas pela Advocacia-Geral da União, o eminente Ministro ILMAR GALVÃO indeferiu a medida cautelar requerida.

6. A fls. 112/119, vieram as informações do Congresso Nacional, em que se defende que o “Legislativo pode ampliar, sim, garantias constitucionais” (fls. 118), segundo mostram os arestos ali colacionados, e se conclui pela constitucionalidade do diploma atacado.

7. Após, vieram os autos a esta Procuradoria-Geral da República para manifestação.

8. De início, diga-se que, em atenção ao pedido formulado de observância da faculdade conferida a esse Excelso Pretório pelo art. 12, da Lei n.º 9.868/99, bem assim por igualmente entender presentes os requisitos da “da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”, a manifestação ora apresentada pela Procuradoria-Geral da República deduz apreciação conclusiva acerca do pedido de declaração de inconstitucionalidade formulado na peça exordial.

9. Preliminarmente, não prospera a alegação de ilegitimidade da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público para provocar o controle abstrato de constitucionalidade no presente caso.

10. Efetivamente, embora a configuração original da CONAMP não lhe autorizasse instar o controle direto de constitucionalidade perante o Colendo Supremo Tribunal Federal, a alteração substancial de suas disposições estatuárias atribuíram-lhe o predicado a que se refere o inciso IX do art. 103, da Carta Maior (“entidade de classe de âmbito nacional”).

11. Antes da alteração do mencionado Estatuto da requerente, assim entendia o Excelso Pretório, verbis:

“EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCISO 1 DO ART. 15 DA LEI ORGÂNICA NACIONAL DO MINISTÉRIO PUBLICO (LEI N. 8.625, DE 12.01.93). PRELIMINAR DE CONHECIMENTO: LEGITIMIDADE ATIVA (CF, ART. 103, IX).

1. A requerente é uma associação que, além de reunir associações regionais, ainda tem como membros pessoas físicas, circunstância que desfigura a natureza confederativa e, em conseqüência, não lhe atribui legitimidade ativa para a ação direta de inconstitucionalidade, a teor do que dispõe o art. 103, IX, da Constituição. Precedentes. (ADIMC 1402 – Rel. Min. CARLOS VELLOSO – DJU 19.04.1996, p. 12.213)

2. Ação direta não conhecida, por ilegitimidade ativa da requerente.”

12. Todavia, a alteração estatutária, tal como operada, inseriu a requerente, quando presente o liame entre a norma a ser atacada e os fins precípuos da associação, no rol das entidades legitimadas para deflagrar a fiscalização abstrata de constitucionalidade.

13. Outrossim, por versar sobre normas atinentes às atribuições do Ministério Público, tanto como dominus litis da ação penal pública, revelando-o como agente de fundamental importância na realização do jus puniendi estatal, quanto como órgão responsável pela persecução dos agentes que incorrerem em improbidade administrativa descrita na Lei n.º 8.429/92, forçoso concluir pela presença da chamada pertinência temática para propositura da presente ação, em razão da disposição contida no art. 2.º, inciso III, do Estatuto da Associação-autora.

14. Com essa nova feição, aplica-se à Associação Nacional dos Membros do Ministério Público o firme entendimento esposado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal a respeito da legitimidade da Associação Nacional de Membros da Magistratura, entidade em tudo símile à ora requerente. Vale colacionar, sobre o tema, os seguintes julgados:

“MEDIDA LIMINAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DE SANTA CATARINA – § 2º DO ART. 45 – REDAÇÃO ALTERADA PELA RESOLUÇÃO ADMINISTRATIVA N.º 062/95-TRT/SC – PROMOÇÃO POR ANTIGÜIDADE – JUIZ MAIS ANTIGO; VOTO SECRETO – PRELIMINAR – ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – AMB; LEGITIMIDADE ATIVA; PERTINÊNCIA TEMÁTICA – DESPACHO CAUTELAR, PROFERIDO NO INÍCIO DAS FÉRIAS FORENSES, AD REFERENDUM DO PLENÁRIO (ART. 21, IV E V DO RISTF) – 1. Preliminar: esta Corte já sedimentou, em sede de controle normativo abstrato, o entendimento da pertinência temática relativamente à legitimidade da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, admitindo que sua atividade associativa nacional busca realizar o propósito de aperfeiçoar e defender o funcionamento do Poder Judiciário, não se limitando a matérias de interesse corporativo (ADI n.º 1.127-8). 2. Mérito do pedido cautelar: a) competência do tribunal para obstar a promoção do Juiz mais antigo: a única alteração foi referente ao quorum: 2/3 (dois terços) dos seus Membros, em lugar de 2/3 (dois terços) de seus Juízes vitalícios: nesta parte, a alteração não afronta texto constitucional; b) a Resolução Administrativa que alterou a redação do § 2º do art. 45 do Regimento Interno do TRT/SC manteve o critério da escolha pelo voto secreto; se é certo que a Constituição Federal, em seu art. 93, inciso II, letra d, faculta a recusa do Juiz mais antigo para a promoção, impondo o quorum de dois terços, também não é menos certo que, em se tratando de um dos tipos de decisão administrativa, venha ela desacompanhada da respectiva motivação, a teor do enunciado do mesmo art. 93, em seu inciso X; c) ao Juiz preterido há de ser assegurado o seu direito constitucional de conhecer as razões da preterição; o que não pode é o Juiz ser recusado sem saber qual o motivo; esse direito é um dogma constitucional que se incorpora ao direito do preterido; d) o texto do § 2º do art. 45 do Regimento Interno do TRT/SC, com a redação data pela Resolução Administrativa n.º 062/95, não está integralmente contaminado pelo vício de inconstitucionalidade, mas, tendo em vista a plausibilidade jurídica do pedido, dele há de excluir-se a palavra secreto. 3. Referendado, em parte, o despacho cautelar, para suspender, até a decisão final da ação, a vigência da palavra secreto.” (STF – ADIMC 1303 – TP – Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – DJU 01.09.2000 – p. 00104)


“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE (§ 4º DO ART. 82; PARS. 2º DOS ARTS. 87, 89 E 90; DO ART. 160 E DO ART. 12 DO ADCT.) – LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL Nº 77/1990 (ART. 3º) – Disposições que assemelham as funções do Ministério Público as de membros do Poder Judiciário e vinculam vencimentos de Procuradores, Defensores Públicos, Delegados de Polícia aos de Procurador de Justiça. Liminar. legitimidade da entidade de classe de âmbito nacional vinculada ao objeto da ação. Pertinência entre a norma impugnada com os objetivos da requerente – Associação dos Magistrados Brasileiros. Necessidade que justifica o interesse de agir. Legitimidade reconhecida e medida cautelar deferida.” (STF – ADIMC 305 – RN – T.P. – Rel. Min. PAULO BROSSARD – DJU 06.05.1994)

“(…) Tem a Associação dos Magistrados Brasileiros, entidade de classe de âmbito nacional, legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade de lei que vincule vencimentos de membros de certas carreiras, aos tetos dos integrantes dos três Poderes do Estado, dentre os quais o Judiciário, integrados por seus filiados, pois há pertinência entre seu objetivo estatutário e a preocupação política de defesa do tratamento que, em matéria de vencimentos, lhe pareça adequado a magistratura, em face do ordenamento constitucional.” (STF – ADIMC 138 – RJ – T.P. – Rel. Min. SYDNEY SANCHES – DJU 16.11.1990)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ASSOCIAÇÕES DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – É de admitir-se, em face mesmo do decidido em precedente sobre hipótese símile (ADIn-138-RJ), que a Associação dos Magistrados Brasileiros possui legitimidade ativa para propor ação direta de inconstitucionalidade em que trata de impugnar vinculações ou equiparações de vencimentos ou proventos de integrantes de categorias funcionais aos vencimentos ou proventos dos magistrados. A medida cautelar, para suspensão dos efeitos do art. 82 do ADCT da nova Constituição do Estado do Rio de Janeiro, não é de ser concedida, se não se tem, de pronto, como relevantes os fundamentos de direito (fumus boni iuris), nem foram fornecidos quaisquer dados que levem a que se tenha como caracterizado o periculum in mora, tendo havido, a respeito, apenas vaga alegação de prejuízo para o erário do Estado.” (STF – ADIMC 139 – RJ – T.P. – Rel. Min. ALDIR PASSARINHO – DJU 26.10.1990)

15. Nada obstante, e aqui se adentra o exame do mérito, o pedido de declaração da inconstitucionalidade da Lei n.º 10.628/02 merece prosperar apenas em parte.

16. Convém colacionar a redação atual do art. 84, do Código de Processo Penal, tal como lhe foi conferida pelo diploma legal fustigado na presente ação:

“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade. (sem ênfase no original)

§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.”

17. Efetivamente, como a própria Associação-requerente assevera, a alteração promovida no caput do art. 84, do Código de Processo Penal, veio em boa hora, na medida em que ajusta os termos então aduzidos à nova organização do Poder Judiciário, tal como determinada pelo texto da Carta de 1988.

18. A questio iuris cinge-se ao exame dos parágrafos §§ 1.º e 2.º do dispositivo. O primeiro versa sobre a subsistência do foro ratione muneris aos casos em que o crime derive da prática de “atos administrativos do agente”, ao passo que o segundo estende o foro por prerrogativa de função às ações que versem sobre atos de improbidade definidos na Lei n.º 8.429/92. Revela-se conveniente, para melhor análise da questão, cindir igualmente a presente manifestação em duas partes: a primeira, sobre o § 1.º; a segunda, sobre o § 2.º.


19. A alteração promovida pelo § 1.º do art. 84, do Estatuto Processual Penal, determinou a subsistência do foro ratione muneris aos casos em que o agente que então fazia jus a esse predicamento tenha cometido crimes que guardem, como condições elementares a sua realização, a necessária correlação com a função pública então exercida.

20. Ao contrário do asseverado na peça vestibular, da leitura do inteiro teor do acórdão do julgamento da INQQO 697/SP infere-se que o cancelamento da Súmula 394 – que reproduziu um entendimento firmado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal por 157 anos – amparou-se justamente no fato de a prorrogação de foro não estar prevista literalmente no texto constitucional ou em leis infraconstitucionais. Isso não significa, contudo, uma vedação ao legislador ordinário de prorrogação de tais competências, desde que tal extensão encontre amparo nas normas constitucionais delimitadoras das competências originárias do texto constitucional, tal como interpretadas pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, a que compete precipuamente a guarda da Constituição (CF 88, art. 102, caput).

21. Diga-se, a latere, que a discussão objeto destes autos não comporta a análise da conveniência, ou não, da existência do foro por prerrogativa de função. Ainda que se admita considerações, obiter dictum, sobre o acerto, ou desacerto, de tal previsão, seja por razões históricas, seja por razões políticas, tal exame refoge dos estritos limites a que se impõe ao Supremo Tribunal Federal na função de guardião máximo da Constituição e de legislador negativo, quando órgão de jurisdição constitucional a quem incumbe a fiscalização abstrata de constitucionalidade.

22. Com efeito, certo é que a Constituição de 1988 prevê a competência originária dos Tribunais para o julgamento de crimes cometidos pelas autoridades que o próprio texto enumera. Todavia, não explicita se tal predicamento funcional se estenderia após o agente deixar a função que o justificava. Isso, como se vê, é matéria que foi analisada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal.

23. Pergunta-se: diante da ausência de previsão, é vedado ao legislador ordinário conformar tal previsão, a fim de esclarecer se tal preceito estende-se, ou não, àqueles atos praticados por agente, sempre em razão da prática funcional por ele exercida, ainda que não ocupe ele mais tal cargo ou função?

24. A resposta negativa, como se argumenta na peça inicial, parte da premissa de que ao legislador ordinário é vedado interpretar o texto constitucional. Porém, a assertiva, por si só, não se sustenta.

25. A valer, o dispositivo ora atacado veio tão-somente a explicitar aquilo que a Constituição Federal deixa entrever: a competência ratione muneris justifica-se naqueles casos em que o agente comete crimes próprios de sua atividade funcional, ou seja, crimes que guardem em suas figuras elementares a função por ele ocupada.

26. A questão ora tratada guarda inteira similitude aquela enfrentada por esse Excelso Pretório quando do julgamento da Questão de Ordem no INQ 687/SP. Os argumentos então expendidos, notadamente aqueles deduzidos pelo eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, guardam máxime utilidade ao caso em tela.

27. Vale registrar a ementa do julgado, verbis:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL – PROCESSO CRIMINAL CONTRA EX-DEPUTADO FEDERAL – COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA – INEXISTÊNCIA DE FORO PRIVILEGIADO – COMPETÊNCIA DE JUÍZO DE 1º GRAU – NÃO MAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – CANCELAMENTO DA SÚMULA 394 – 1. Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das leis nºs 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula 394, segunda a qual, "cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício". (STF – INQO 687 – SP – TP – Rel. Min. SYDNEY SANCHES – DJU 09.11.2001 – p. 00044)


2. A tese consubstanciada nessa Súmula não se refletiu na constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, "b", estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar "os membros do congresso nacional", nos crimes comuns. Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do congresso nacional, assim como não contempla o ex-presidente, o ex-vice-presidente, o ex-procurador-geral da República, nem os ex-ministros de estado (art. 102, I, "b" e "c"). em outras palavras, a constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita pelo tribunal. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. aliás, a prerrogativa de foro perante a corte suprema, como expressa na Constituição Brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no direito constitucional comparado. menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos.

3. Questão de Ordem suscitada pelo Relator, propondo cancelamento da Súmula 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1º grau para o processo e julgamento de ação penal contra ex-Deputado Federal. Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unânime do Plenário. 4. Ressalva, também unânime, de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394, enquanto vigorou.”

28. As conclusões defendidas pelo eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, conquanto tenha restado vencido na companhia dos eminentes Ministros ILMAR GALVÃO, NÉRI DA SILVEIRA e NELSON JOBIM, substanciam exatamente o preceito contido no indigitado § 1.º do art. 84 do Código de Processo Penal.

29. Nesse passo, é de todo oportuno registrar o seguinte trecho do voto proferido pelo eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, quando do julgamento da INQQO 687, que resultou no cancelamento da Súmula 394 desse Excelso Pretório, verbis:

“No voto-vista proferido na QCr 427 (QO), 12.898, relator o Ministro Moreira Alves – depois de aludir às críticas de S. Exa. – antes deduzidas por autoridades do porte de Hungria – à doutrina da Súmula ora impugnada – anotei – RTJ 148/58: (Trecho do voto proferido pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE na INQQO 687 – SP – 12.05.1999 – fls. 259/269 – grifos nossos)

‘10. Não obstante, a orientação consolidada na Súmula n.º 394 tem resistido airosamente às objeções. Mantém-se incólume, há mais de um século: na primeira das referências do verbete – RCr 491, de 15 de dezembro de 1923 (Caso Epitácio Pessoa x Mário Rodrigues), Relator, Pedro Santos (Cf. Edgard Costa, Os Grandes Julgamentos do STF, 1964, I/350) –, o acórdão pode invocar julgado de 25 de janeiro de 1842 – no qual o velho Supremo Tribunal de Justiça cometidas na substituição de Juiz de Direito, não obstante já houvesse deixado função – e atestar, em seguida, que, instaurada a República, a doutrina permanecera dominante no Supremo Tribunal Federal (v.g., ac. de 7 de dezembro de 1904).

11. De tal modo a tese da Súmula n.º 394 se incorporou ao fundo de cultura do constitucionalismo brasileiro, que, sobrevindo o regime do movimento de 1.º de abril de 1964, para suspender-lhe a vigência que o Tribunal vinha reafirmando (v.g., HC 42.108, RTJ 32/614), o Ato Institucional n.º 2/65 teve de dispor que a suspensão dos direitos políticos dos dignatários depostos acarretava ‘a acessação do privilégio de foro por prerrogativa de função’ (AI 2/65, art. 16, I). E tanto se entendeu que a promulgação do texto constitucional de 1967 bastara – não obstante, sem regra explícita – para restabelecer a linha vetusta da jurisprudência, que se entendeu necessário repisar, no art. 5.º, I, do AI-5/68, a norma do AI-2, que a afastava com relação aos renegados da ditadura reinstaurada.’


Observe-se que, antes como depois da edição da súmula questionada, não encontrei senão um acórdão que lhe tenha infirmado o entendimento mais que secular: é o HC 33.440, o redator o saudoso Hungria, concedido em 26.1.55, ao ex-Governador Adhemar de Barros, por voto de desempate. É a exceção que confirma a regra…

De qualquer sorte, nenhuma súmula é indene à revisão, cuja possibilidade, a qualquer tempo, é a melhor defesa de instituto.

Cumpre, assim, examinar as razões da proposta de cancelamento.

De início, não posso concordar com o Ministro Sydney Sanches em que no Direito Comparado o foro especial por prerrogativa de função seja desconhecido: são numerosas as Constituições e leis que o prevêem em hipóteses mais ou menos numerosas, a começar das velhas cartas constitucionais dos Estados Unidos (art. III, Seção 2) e da Argentina (atual art. 100) – que o limitam ao julgamento dos embaixadores e membros das representações estrangeiras (a título de exemplo, na Espanha, Const., arts. 71, 4 e 102, 1 e Ley Orgânica del Poder Judicial, art. 57, 2.º e 3.º; na França, Const., art. 67; na Itália, Const., arts. 96 e 134; em Portugal, art. 133, 4 e também o C. Pr. Pen., arts. 11, 1 a e 2 a e 12.1, a; na Venezuela, art. 215, 1.º e 2.º).

Certo, poucos ordenamentos são tão pródigos quanto a vigente Constituição brasileira na outorga da prerrogativa de foro (v.g., CF 88, art. 102, I, b e c); 105, I, a; 109, I, a; 96, III; 27, § 1.º e 29, X, sendo certo ainda ser consolidada na jurisprudência que tanto a lei processual federal, quanto as constituições estaduais e a lei orgânica da Justiça Eleitoral podem criar outras hipóteses de cujo âmbito se tem ressalvado apenas a competência do Júri).

É certo também que o maior número das ações penais de competência originária do Supremo Tribunal cresceu significativamente, como seria fatal, quando a prerrogativa de foro se estendeu aos membros do Congresso Nacional (que só a haviam tido na constituição do Império, onde, o art.47, 3.º, confiava ao Senado o julgamento dos delitos individuais de Senadores e Deputados): hoje, nesse ponto, só pude encontrar regra semelhante na Constituição da Espanha (art. 71, 4) ; na Venezuela (Const., art.215, 1º e 2º), com relação a parlamentar e outras autoridades – salvo o Presidente da República e os crimes políticos, em que é total (Const., art. 215, 1º), a competência da Suprema Corte é restrita a “ declarar se há procedência ou não para o julgamento ” e, em caso afirmativo, remeter o caso ao tribunal comum competente, onde, no entanto, a instauração do processo contra membro do Congresso dependerá da licença da sua Câmara (Const., 144).

Mas, é preciso enfatizar de logo e definitivamente que não está em discussão o instituto constitucional da prerrogativa de foro.

De lege ferenda, participo mesmo em grande parte das preocupações republicanas daqueles como o nosso atual e nosso iminente Presidentes – os Ministros Celso de Mello e Carlos Velloso – que se têm proclamado seus radicais adversários.

O juiz, contudo, especialmente se titular de suprema jurisdição constitucional – se não pode mais fingir ignorar o peso sobre as próprias decisões de sua mundividência – também não se pode deixar arrastar às tentações do voluntarismo arbitrário ou do inconsciente wishfull thinking, que lhe permitissem enxergar na Constituição o que lá não está, embora a seu ver devesse estar ou insistir em não ver o que nela claramente se inscreveu: o arbítrio judicial não é menos que os demais.

Se nossa função é realizar a Constituição e nela a largueza do campo do foro prerrogativo de função mal permite caracterizá-lo como excepcional, nem cabe restringi-lo nem cabe negar-lhe a expansão sistemática necessária a dar efetividade às inspirações da lei Fundamental: essa, a correta hermenêutica assumida por nossos antecessores nesta Casa, faz mais de século e meio, para consolidar o entendimento que a Súm. 394 pretendeu traduzir.

Não me impressiona, data venia, que a orientação da Súm. 394 jamais tenha sido explicitada no texto das sucessivas constituições da República.


O argumento é, no mínimo, ambivalente. Aqui, é impossível negar relevo à antigüidade e a firmeza da jurisprudência sesquicentanária que a Súm . 394 testemunha. Não ignoro que – suposta uma mudança na “ idéia de Direito ” que inspire uma nova Constituição – preceitos típicos da ordem antiga, embora mantidos com o mesmo teor podem receber interpretação diversa, quando a imponha a inserção deles no contexto do novo sistema. O que, porém, não creio ser o caso. E, por isso, se não introduziu restrição aos textos anteriores a respeito, é mais que razoável extrair daí que a nova Constituição os quis manter como mesmo significado e a mesma compreensão teleológica que a respeito se sedimentara nos sucessivos regimes constitucionais, não apenas nos de viés autoritário – quando a Súmula veio a ser excetuada pelos atos institucionais – mas também nos de indiscutível colorido democrático.

Em outras palavras: no constitucionalismo brasileiro, a doutrina da Súm. 394 de tal modo se enraizara que a sua abolição é que reclamaria texto expresso da Constituição: não a sua preservação, que a tanto bastaria mantê-lo inalterado, como ocorreu.

Não contesto que a prerrogativa de foro só se explica como proteção do exercício do cargo e não com privilégio dos seu titular e, menos ainda, do seu ex-ocupante.

Mas, data venia, é fugir ao senso das realidades evidentes negar que, para a tranqüilidade no exercício do cargo ou do mandato – se para essa tranqüilidade contribui, como pressupõe a Constituição, a prerrogativa de foro – ao seu titular mais importa tê-lo assegurado para o julgamento futuro dos seus atos funcionais do que no curso da investidura, quando outras salvaguardas o protegem.

Assim é patente que ao titular do poder Executivo, enquanto no exercício do mandato, antes que o foro especial, o que lhe dá imunidade contra processos temerários é a exigência de ser a acusação previamente admitida por dois terços da Câmara dos Deputados (CF, art. 86).

Do mesmo modo, aos congressistas, a imunidade formal é que verdadeiramente os protege no curso da legislatura.

Por conseguinte, mais que apanágio do poder atual, a prerrogativa de foro serve a libertar o dignitário dos medos do ostracismo futuro.

Aí é preciso lembrar haver entre os detentores do foro por prerrogativa do função ocupantes de cargos dos quais são demissíveis ad nutum: é o caso, no plano federal, dos Ministros de Estados.

Parece repugnante aos princípios, especialmente à garantia do juiz natural, que a competência originária do Supremo Tribunal para julgá-los seja precária e fique à mercê da vontade unilateral do Chefe do Poder Executivo, que a possa elidir a qualquer tempo, tanto para prejudicar quanto para favorecer o ministro processado.

Com efeito. O foro especial tem uma face, que cumpre não esquecer.

“Presume o Legislador” – recorde-se o argumento de VICTOR NUNES (Recl 473, RTJ 22/47 ) – “que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia bilateral, garantia contra e a favor do acusado”.

E quando não interessar ao acusado o julgamento pelo tribunal que a Constituição a tanto reservou, mais precária será a competência desse, pois aí , para subtrair-se dela – cancelada a Súm. 394 –, bastaria a vontade exclusiva do próprio réu, já pela exoneração, já pela renúncia, já pela aposentadoria.

Dispensa demonstração, porém, que, segundo os princípios, assim como ao acusado se dá a garantia de não ser subtraído do seu juiz natural, também é certo que a ele não é dado o poder de subtrair-se da sua competência por ato unilateral de vontade.

Impressionou-me no voto do Ministro Moreira Alves a réplica de que, a procederem os argumentos de Victor Nunes em favor da Súmula, “ também se justificaria que, com relação a fatos anteriores ao exercício da função – e para os quais se desloca a competência para o Supremo Tribunal Federal durante o seu exercício – se sustentasse que se deveria, depois de cessado esse exercício, manter tal jurisdição especial, o que não se tem admitido”.


O raciocínio levou-me à descoberta de um dado significativo: o teor da Súm. 394 vai além da jurisprudência que pretendeu retratar.

Na Súmula, com efeito, à continuidade da prerrogativa de foro basta haja sido o crime “ durante o exercício funcional” , independentemente da natureza da infração imputada.

Como sublinhou com razão o Ministro Moreira Alves, na relação de acórdãos referidos como suporte do verbete, há alguns que só a contrário sensu ou indiretamente lhe dizem respeito (assim os HHCC 32.097; 40.382; 40.398 e 40.400) e até um que lhe é contrário (o já referido HC 33.440).

Dos que são pertinentes ao enunciado sumular, porém, todos são relativos a ex-dignitários acusados de crimes não apenas cometidos ao tempo da investidura determinante da competência por prerrogativa da função, mas também praticados no exercício dela ou a pretexto de exercê-la (cf. Jardel e Odaléa, Referências da Súmula do STF, p.312-355).

E não se trata de coincidência , mas de circunstância que influiu na conclusão de persistir a for especial post depositum officium.

Testemunham-no as ementas:

— Rcr 491 ( caso Epitácio Pessoa ), 15.12.23, rel. Pedro dos Santos, ob. cit., 19/328: “Para conhecer da queixa por injúrias ou calúnias impressas contra um ex-Presidente da República, referentes a factos ocorridos em razão do cargo, a única competente é a Justiça Federal”.

— Recl 473, 31.1.62, rel. Victor Nunes, ob cit., v. 19/312: “Competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ex-ministro de Estado, acusado de crime contra a administração pública, que teria cometido no exercício do cargo. A sua própria razão de ser impõe que essa competência especial subsista, quando a ação penal é proposta depois de cassada a função”.

— HC 35.301, 21.10.57, red. Ary Franco, ob. cit., v. 19/351: “Praticado o crime na função e em razão dela, deve subsistir o foro por prerrogativa de função”.

— RE 39.682, 15.7.58, rel. Ribeiro da Costa, ob. Cit. , v. 19/353: “ Competência especial ; crime praticado na função de juiz de direito e em função dela”.

A súmula não é uma norma livremente criada pelo Tribunal quando a aprova: a Súmula é uma proposição descritiva da orientação jurisprudencial documentada nos acórdãos que refere.

Segue-se que deve ser corrigido, mediante cancelamento e edição de outro, o verbete que não guarda fidelidade à jurisprudência que pretendeu retratar.

É o que sucede com a Súm. 394, quando o seu enunciado literal faz abstração de um dado relevante, presente em todos os acórdãos nela invocados com pertinência; o ser um crime propter officium o objeto do processo para a qual se afirma persistir a competência por prerrogativa da função do acusado ao tempo de sua prática.

Assim limitado o seu alcance, a velha jurisprudência, de um lado, escapa da crítica ponderável mencionada do Ministro Moreira Alves, e, de outro, se ajusta melhor à linha dominante no Direito Comparado.

Na Itália , por exemplo, a redação primitiva do art.134 da Constituição adstringia a competência da Corte Constitucional para julgar os Ministros de Estado aos crimes ministeriais, os “ reati ministeriali ” : na expressão de Zagrebelsky, aqueles “ che possono compiersi solo da chi é ministro e perchè ministro” (em Procedimento e Giudizi d’ accusa na Encicl. Del Diritto, XXXV/899,907).

E enquanto durou essa competência por prerrogativa da função dominou sem reservas a sua extensão ao julgamento dos ex-ministros: é o testemunho de Crisafulli e Paladin (Comentário breve alla Cost. , 1990, art.96 , p. 606); “un Ministro cessato della carica” – confirma Enzo Balocchi (Noviss. Digesto, I. 1/179, 187) – “potrã esseere accusato e giudicato per i reati commessi durante il periodo di exercizio delle funzioni”.

Aliás, na única vez em que a exerceu, no notório Caso Lockheed – conhecido do STF pela extradição de Ovidio Lefèbvre (RTJ Ext. 347, RTJ 86/1) – a Corte Constitucional teve a sua competência firmada em razão da acusação feita a um ex-ministro, Tanassi, afinal condenado (Giurisp. Cost. 79, Suplemento).


Certo, a prerrogativa de foro dos Ministros foi depois abolida, restringindo-se ao Presidente da República (LC 1/89); mas a nova redação do art. 96 explicitou que a subordinação do processo à autorização do Senado ou da Câmara se aplica aos Ministros, “anche se cessati dalla carica”.

Na França, a Constituição de 1958 (art. 68,2) restringiu a competência da Haute Cour de Justice aos crimes funcionais dos ministros; mas que a prerrogativa se entende compreensiva dos processos contra ex-ministros, por delitos cometidos em razão da função, se extrai de que por ela, há alguns anos, hajam sido condenado Abel Bonnard, ministro do governo de Vichy ( Debbasch e outros, Dr. Constitutionnel e Institutions Politiques, Economica, 1990, p.754) e , faz poucos meses, um ex-Ministro da Saúde, no caso do “sangue contaminado” amplamente noticiado.

A Constituição da Espanha, é certo, tal como a nossa, não restringe aos delitos propter officium a competência da Sala Penal do Tribunal Supremo para os processos criminais contra Deputados e Senadores ( art.71,3) ou contra o Presidente e os demais membros do Governo( art.102,2).

Também como na Súm. 394, essa prerrogativa de foro se vinha reputando extensiva a ex-ministros ou ex-membros do Parlamento, acusados por fatos ocorridos durante a investidura, independentemente da sua natureza.

Em 1991, contudo, o Tribunal Supremo a restringiu, quando findo o mandato do acusado no curso do processo, “a los hechos que estuvierem en relación com el ejercício de la función inherente al mandato representativo, entendiendo que la protección que la immunidad entrarta se hace a la función e no al funcionario( post officium vel in contemplatione officii)”.

Pela Sentença 22/97 – relatada por seu Presidente, Álvaro Rodriguez Berejo – o Tribunal Constitucional declarou válida a decisão, reputando adequada a restrição aos fins da prepetuatio do foro por prerrogativa de função (Jurisprudencia Constitucional, 1997, p.220).

Estou em que solução similar é também no Brasil a mais correta e a que verdadeiramente se ajusta à vetusta jurisprudência que a Súm. 394 , equivocadamente levou além da marca: por isso, voto por seu cancelamento.

Proponho, contudo, a edição de nova Súmula que, fiel à jurisprudência, declare que, cometido o crime no exercício do cargo ou a pretexto de exercê-lo, prevalece a competência por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício funcional. É o meu voto, a partir do qual, se acolhido, cumprirá examinar cada um dos casos em mesa.”

30. O diploma vergastado nada mais fez que valorizar a distinção, de sorte a subsistir o predicamento do foro ratione muneris para aquelas condutas praticadas no exercício da função específica e vinculadas à atividade do próprio agente criminoso.

31. Ainda, no que se refere ao próprio sentido material da norma atacada, a ratio legis é, como com lucidez ponderou o saudoso Ministro VICTOR NUNES LEAL, “que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia bilateral, [constitui] garantia contra e a favor do acusado”.

32. Nesse sentido, é oportuno afirmar que o conteúdo normativo do diploma se coaduna até mesmo com os mais altos e modernos reclamos do Direito Penal, quando se tem em conta a sua dúplice função garantista. Se, por um lado, a norma incriminadora serve de proteção ao seio social, punindo aquelas condutas que divirjam do sentimento coletivo materializado no bem jurídico por ela tutelado, por outro, pretende-se garantir ao indivíduo que não venha ele a sofrer qualquer constrangimento que não aquele estritamente previsto no tipo sancionador do preceito secundário da norma incriminadora (sanctio iuris).

33. Destarte, não foge do debate o próprio sentido material da norma, a despeito da evidente tentativa de se restringir a discussão sobre o diploma atacado à esfera adjetiva.

34. A valer, quando se põem em destaque as interpretações sistemática e teleológica da Constituição Federal, não há como afastar as conclusões ora substanciadas na lei atacada pela presente ação direta.


35. Já afirmara o eminente Ministro NÉRI DA SILVEIRA, quando do julgamento da Questão de Ordem levantada no Inquérito n.º 687: “Compreendo, de outra parte, que a distinção, que decorre do voto do eminente Ministro Sepúlveda Pertence, de não cessar a competência por prerrogativa de função, quando se trata de delito funcional de competência do Supremo Tribunal Federal, é a que melhor convém à compreensão de nossa ordem jurídica, como bem sustentou S. Exa.” (fls. 318 do voto proferido no julgamento do INQQO 687 – SP– 25.08.1999).

36. Na mesma linha foi o pensamento externado pelo eminente Ministro NELSON JOBIM: “(…) o debate que se travou na primeira parte desta sessão e, principalmente, a observação feita pelo Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, levam-me, necessariamente, a valorizar essa distinção para que remanesça na competência do Tribunal – não obstante as considerações do Ministro Moreira Alves – aquelas condutas praticadas no exercício da função específica e estarem vinculadas a atividades do próprio indiciado” (fls. 291 do voto proferido no julgamento da INQQO 687 – SP – 25.08.1999).

37. Assim, explicitando o preceito constitucional, tarefa ínsita ao mister do legislador ordinário, que é a conformação das garantias constitucionalmente previstas, a Lei n.º 10.628/02 nada mais fez que adequar a sistemática legal à interpretação teleológica e sistemática do texto constitucional. Subsistirá o predicamento do foro por prerrogativa de função aqueles crimes que tenham como elementar o exercício do cargo, ao tempo da ação, e a íntima correlação aos seus atributos funcionais.

38. Decerto, explicitar o texto constitucional é tarefa própria do legislador ordinário. Vale destacar as palavras do eminente Ministro SEPÚLVEDA PETENCE, mormente quando afirma que é “certo ainda ser consolidada na jurisprudência que tanto a lei processual federal, quanto as constituições estaduais e a lei orgânica da Justiça Eleitoral podem criar outras hipóteses de cujo âmbito se tem ressalvado apenas a competência do Júri)”.

39. Caso prevaleça a restrição sustentada na peça inicial, padeceriam de vício os diplomas processuais que versam sobre competência (Código de Processo Penal e Código de Processo Civil), bem assim aqueles que tão-somente consagram o entendimento já esposado pela jurisprudência (como é o caso da Lei n.º 9.868/99), o que a toda evidência não se verifica.

40. Ao assim prever na Lei n.º 10.628/02, como não poderia deixar de ser, o legislador ordinário pretende deixar ao Supremo Tribunal Federal (ou ao Tribunal que tenha por competência ordinária a apreciação do fato por competência ratione muneris) o exame, caso a caso, dessa necessária correlação entre a conduta criminosa eventualmente perpetrada e a correlação com o exercício funcional, tudo conforme a melhor tradição da jurisprudência pátria e do texto constitucional.

41. Parece-nos corretíssimo o entendimento dos votos vencidos dos eminentes Ministros NELSON JOBIM, ILMAR GALVÃO e NÉRI DA SILVEIRA que acompanharam o do eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE no sentido de editar nova súmula “que, fiel à jurisprudência, declare que, cometido o crime no exercício do cargo ou a pretexto de exercê-lo, prevalece a competência por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício funcional”. Não há falar, assim, de inconstitucionalidade material, pois a lei reflete exatamente a correta exegese da norma constitucional: o art. 102, inciso I, alíneas b e c, da Constituição de 1988.

42. Contudo vislumbra-se sério obstáculo que redunda na inconstitucionalidade formal a macular a norma inserta no § 1.º do art. 84 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 10.628/02, pois somente o próprio Supremo Tribunal Federal é que teria que adotar tal exegese da norma constitucional sobre sua própria competência originária e não o legislador ordinário. Há, assim, a nosso ver, violação do disposto no art. 2.º, da Constituição da República.


43. O § 1º viola o princípio da independência e harmonia dos poderes e usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal enquanto guardião máximo da Constituição, segundo o caput do art. 102. A lei neste ponto interpreta a Constituição, na verdade, revogando a exegese mais recente do Supremo Tribunal Federal e lembra o caso emblemático Marbury v. Madison da Suprema Corte Americana.

44. Aliás, como se sabe, toda a teoria judicial review começa com a inconstitucionalidade formal naquele caso, sob inspiração do Chief Justice MARSHALL, quando o Congresso Americano pretendeu, por lei, criar competência originária para a Suprema Corte relativa ao writ of mandamus. A competência originária daquela corte é somente a definida no próprio texto da Constituição e não em leis (“Statutes”) do Congresso.

45. A situação aqui não é exatamente a mesma, porque havia jurisprudência consolidada em Súmula do Supremo Tribunal Federal interpretando a Constituição de 1946 e leis federais, convivendo com a vigência da Constituição Federal de 1988 durante mais de dez anos. E, além disso, a lei não criou competência originária propriamente, mas, na verdade, a recriou, após abolida por interpretação da CF 88 pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

46. A decisão majoritária proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na Questão de Ordem no Inquérito n.º 687-4, de que foi relator o eminente Ministro SYDNEY SANCHES, estabeleceu que “A tese substanciada nessa Súmula [394] não se refletiu na Constituição de 1988”, acompanhando o relator os eminentes Ministros MOREIRA ALVES, OCTAVIO GALLOTTI, CELSO DE MELLO, MARCO AURÉLIO e, o então Presidente, CARLOS VELLOSO.

47. Não vejo, pois, como deixar de considerar que o § 1.º do art. 84, do Código de Processo Penal, introduzido pela recentíssima Lei n.º 10.628, de 24 de dezembro de 2002, tenha afrontado a decisão do Supremo Tribunal Federal, que cancelou a Súmula 394, por maioria de votos, ainda que entenda, como entendo, ser correta a posição minoritária da Corte.

48. É verdade que, como acentua o ilustre constitucionalista de Harvard Professor LAURENCE TRIBE, podem existir “competing interpretations” da Constituição pelos três Poderes. Nas suas próprias palavras: “And it is clear that, despite the growth of federal judicial power, the Constitution remains in significant degree a democratic document – not only written, ratified and amended through essentially democratic processes but indeed open at any given time to competing interpretations limited only by the values which inform the Constitution´s provisions themselves, and by the complex political processes that the Constituition creates – processes which on various occasions give the Supreme Court, Congress, the President, or the states, the last word in constitutional debate.” (Vide American Constitutional Law, 2nd. ed.; The Foundation Press, New York, 1988, p. 41-42). Mas é da essência do controle jurisdicional de constitucionalidade, em caso de confronto, que a última palavra sobre a Constituição (ainda mais quando se trata de definição de sua competência originária) seja da Suprema Corte, como reconhece TRIBE, sendo obrigatória para os demais Poderes suas interpretações da Constituição (“The Court´s interpretations of the Constitution are binding on other government actors”) (ibid. p. 35). (Vide ainda LAURENCE H. TRIBE, Constitutional Choices, Harvard University Press, Cambridge and London, 1995; e On Reading the Constitution, id., 1991).

49. Há ainda inúmeras decisões da Suprema Corte dos EUA – a despeito de ser competência do Congresso Americano definir em lei a jurisdição das cortes federais inferiores – tendo como inconstitucionais normas legais restringindo o âmbito da competência em razão de decisões judiciais sobre matérias politicamente controvertidas (como aborto, ação afirmativa e outros) cujo mérito contrariam interesses e posições de facções eventualmente majoritárias no Congresso Americano (Vide Tinsley E. Yarbrough, The Rehnquist Court and The Constitution, Oxford University Press, 2000).

50. Assim, é que deve ser declarado inconstitucional o § 1.º, do art. 84, do CPP, introduzido pela Lei n.º 10.628/02, bem como a expressão “observado o disposto no § 1.º “, constante do § 2.º, in fine, por violar o art. 2.º e o caput, do art. 102, da Constituição da República, na medida em que constituem afronta à exegese da norma constitucional (art. 102, I, b e c) adotada pelo Supremo Tribunal Federal ao cancelar a Súmula 394 e expressamente estabelecer que a tese nela substanciada não se refletiu na Constituição de 1988.


51. É possível que o Supremo Tribunal Federal novamente reveja sua posição, com a nova composição da Corte (com os votos da eminente Ministra ELLEN GRACIE e do eminente Ministro GILMAR MENDES), inclusive no julgamento desta ação, restabelecendo em parte o entendimento anterior mediante a adoção de nova Súmula nos termos do voto do eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE na citada Questão de Ordem. Se isso ocorrer, já serão os votos de cinco Ministros restando apenas um dos Ministros que já votaram na referida Questão de Ordem reconsiderar sua posição para aderir à proposta de nova Súmula. Nesta hipótese, inexistindo incompatibilidade entre a norma legal e a interpretação do Supremo Tribunal Federal não se poderá considerá-la formalmente inconstitucional, por não mais se configurar confronto com o Judiciário, podendo ser convalidada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

52. No que se refere ao § 2.º do mencionado artigo, vê-se que a lei vergastada procura solucionar questão que há muito angustia a doutrina e a jurisprudência relativamente à natureza jurídica do ato de improbidade administrativa.

53. Efetivamente, ainda não houve um pronunciamento conclusivo acerca da natureza jurídica da improbidade administrativa. Nada obstante, é possível delinear algumas características.

54. O ato de improbidade administrativa é definido em lei e de sua prática decorre sanção imposta ao agente público, ou àquele que com ele age, que viole o dever ético e os imperativos morais que lhe impõe o manuseio da res publica. Decorrem da expressa previsão contida no § 4.º do art. 37 da Carta Maior, que a Lei n.º 8.429/92 veio a lume para regulamentar.

55. A despeito de maiores considerações, revela-se indiscutível que o ato de improbidade traz duas marcas indeléveis: a tipicidade legal (só é ato de improbidade aquele definido em lei como tal) e a imposição de sanções previstas em lei (sanctio iuris).

56. A esta altura, revela-se de todo oportuno colacionar o entendimento firmado por alguns dos eminentes Ministros dessa Excelsa Corte acerca do tema ora em exame: a extensão do foro ratione muneris para julgamentos dos atos de improbidade descritos na Lei n.º 8.429/92.

57. Observou com clareza o eminente Ministro MAURÍCIO CORRÊA, quando do julgamento da Reclamação n.º 2.138, no seu voto, verbis:

“De fato não há como afastar-se da conclusão de que as conseqüências legais decorrentes da condenação pela prática de atos de improbidade, especialmente no ponto em que determinada a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a proibição de contratar com entes estatais, receber oficialmente incentivos e benefícios fiscais ou creditícios, sugerem o acentuado conteúdo penal da espécie, paralelamente à natureza civil de ação reparatória de danos supostamente causados ao erário. (Trecho do voto proferido, sem revisão das notas, no julgamento da RCL 2138 em 20.11.2002 – grifos nossos)

Em conseqüência, tenho como correta a afirmação de que ‘sob a roupagem de ‘ação civil de improbidade’, o legislador acabou por elencar, na Lei n.º 8.429, uma série de delitos que, teoricamente, seriam crimes de responsabilidade e não crimes comuns’, como enfatizado por Gilmar Mendes, citando Ives Gandra da Silva em decisão similar a ora examinada, proferida na Reclamação 2186. Assim sendo, não há como negar que o servidor público ao cometer ato de improbidade administrativa em relação ao interesse público estará na verdade agindo ilicitamente. Tal infração, entretanto, não tem natureza penal simples ou comum. Seu conteúdo político-administrativo preponderante distingue-a como equiparável aos denominados crimes de responsabilidade. As hipóteses de que cogitam os artigos 9.º, 10 e 11 da Lei n.º 1.079/50 e as situações descritas na própria Constituição Federal, assim como os efeitos decorrentes da condenação, bem demonstram tratar-se os atos de improbidade e os crimes de responsabilidade de infrações com idêntica natureza.

Cumpre ressaltar, no ponto, a distinção existente entre crime comum e de responsabilidade. A própria Constituição Federal proclama, por diversas vezes, essa diferenciação, que tem por parâmetro de aferição a natureza preponderante da conduta delitiva, que pode, inclusive, também levar à existência de crime comum. Essa Corte já se posicionou nesse mesmo sentido, ao assentar que ‘não há como distinguir crimes eleitorais de crimes comuns, pois estes são todos os delitos, salvo os impropriamente chamados de crimes de responsabilidade’ (INQ 507, Paulo Brossard, DJ de 17/12/93).


Dessa forma, a mesma ação do agente público pode revestir-se tanto de ato de improbidade quanto de crime comum. Assim, por exemplo, a hipótese do inciso I do artigo 9.º da Lei 8429/92 pode implicar igualmente a existência do crime de corrupção passiva (CP, artigo 317). Tanto assim é que a Carta Federal, ao prever as penas pela prática de atos de improbidade administrativa, expressamente ressalva as conseqüências da ação penal cabível (CF, artigo 37, § 4.º), circunstância reiterada pelo caput do artigo 12 da Lei 8429/92.

Nessa perspectiva, não se pode tratar esses ilícitos político-administrativos como crimes ordinários, razão pela qual estou em que as regras especiais de competência por infrações penais comuns devam estender-se às ações por improbidade administrativa. Já as normas atinentes aos crimes de responsabilidade, aí sim, atraem a aplicação analógica com vistas a oferecer razoabilidade, homogeneidade e harmonia ao sistema de apuração de delitos político-administrativos praticados pelos agentes administrativos.

Se assim admito, o foro especial por prerrogativa de função, previsto constitucionalmente para os crimes de responsabilidade, deve ser aplicado aos casos de ações por improbidade administrativa, movidas contra as respectivas autoridades (CF, artigos 102, I, “c”; 105, I, “a”; 108, I, “a”, 96, III; 125, § 1.º c/c 25, caput).

Acrescento, ademais, que diversamente do que muito se propala, a prerrogativa de foro não se materializa em privilégio, no sentido pejorativo vulgarmente utilizado pela crítica leiga. Destina-se, isso sim, à segurança da própria sociedade, de modo a assegurar que a autoridade pública, por mais alta a função que exerça, seja processada e julgada na forma da lei, de maneira isenta, imune às influências externas e pressões de ordem política, pois o juízo estará no mesmo patamar hierárquico do réu. Terá, ainda, melhores condições de mensurar as razões de Estado que levaram a autoridade à conduta impugnada.

Por outro lado, não se pode exigir que os ocupantes de altos postos governamentais, que efetivamente governam o País, responsáveis que são por decisões políticas e estratégicas, e não simplesmente técnicas e profissionais, fiquem sujeitos ao rito comum de responsabilização aplicável genericamente aos servidores públicos. Na verdade o foro especial reflete uma prerrogativa a esses agentes políticos para o pleno desempenho de suas próprias funções, sem que essa condição, ao contrário do que se possa admitir, constitua-se em privilégio de índole meramente pessoal.”

58. Sobre matéria análoga, aliás, manifestou-se o eminente Ministro GILMAR MENDES, quando do julgamento da medida cautelar pleiteada nos autos da Reclamação 2186, verbis:

“Considero aplicáveis ao caso as razões adotadas pelo Ministro Nelson Jobim em decisão liminar proferida nos autos da RCL nº 2.138, verbis:

"O tema da ação de improbidade contra agentes políticos tem sido objeto de controvérsia. Não são poucas as vozes que defendem hoje a limitação da prerrogativa de foro e saúdam o uso da ação de improbidade contra toda e qualquer autoridade. Outros observam que, no sistema constitucional vigente, não há espaço para o manejo indiscriminado da ação de improbidade contra agentes políticos. Estariam estes submetidos a um regime próprio de responsabilidade previsto na Constituição e em leis específicas. A questão assume relevo peculiar tendo em vista a disciplina da Lei de improbidade. A Lei 8.429/92, a partir de tipos extremamente genéricos arts. 10 e 11, autoriza o afastamento cautelar e condenação à perda do cargo e dos próprios direitos políticos dos agentes públicos em geral, art. 12. (RCLMC 2186 – DF – Decisão de 03.10.2002)

A propósito da controvérsia, leio em GILMAR MENDES e ARNOLDO WALD: "A instituição de uma ‘ação civil’ para perseguir os casos de improbidade administrativa coloca, inevitavelmente, a questão a respeito da competência para o seu processo e julgamento, tendo em vista especialmente as conseqüências de eventual sentença condenatória, que nos expressos termos da Constituição, além da indisponibilidade dos bens e o ressarcimento do erário, poderá acarretar a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos do réu em caso de eventual sentença condenatória (CF, art. 37, § 4º). Não há dúvida aqui, pois, sobre o realce político-institucional desse instituto. A simples possibilidade de suspensão de direitos políticos, ou a perda da função pública, isoladamente consideradas, seria suficiente para demonstrar que não se trata de uma ação qualquer, mas de uma "ação civil" de forte conteúdo penal, com incontestáveis aspectos políticos.


Essa colocação serve pelo menos para alertar-nos sobre a necessidade de que não se torne pacífica a competência dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na Lei nº 8.429/92, as autoridades que estão submetidas, em matéria penal, à competência originária de cortes superiores ou até mesmo do Supremo Tribunal Federal. De observar que, enquanto na esfera penal são raras as penas que implicam a perda da função ou a restrição temporária de direitos (Código Penal, art. 47, I, e 92, I), na "ação civil" de que trata a Lei nº 8.429/92, todas as condenações implicam suspensão de direitos políticos por até 10 anos, além da perda da função pública (Lei cit., art. 12).

As implicações da sentença condenatória em "ação civil de improbidade" são destacadas por Cláudio Ari Mello, ao anotar que "o condenado por improbidade administrativa ver-se-á na indigna posição de não-cidadão, em face da perda dos direitos políticos" (Improbidade Administrativa – Considerações sobre a Lei nº 8.429/92, in RT – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 3ª, nº 11, p. 58, abr/jun 95). É evidente, pois, que, tal como anotado pela doutrina, a sentença condenatória proferida nessa peculiar "ação civil" é dotada de efeitos que, em alguns aspectos, superam aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, é certo, pois, que a condenação proferida na ação civil de que trata o art. 37, § 4º, da Constituição, poderá conter, também, efeitos mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal.

Não é preciso dizer, também, que muitos dos ilícitos descritos na Lei de Improbidade configuram, igualmente, ilícitos penais, que podem dar ensejo à perda do cargo ou da função pública, com efeito da condenação, como fica evidenciado pelo simples confronto entre o elenco de "atos de improbidade", constante do art. 9º da Lei nº 8.429/92, com os delitos contra a Administração praticados por funcionário público (Código Penal, art. 312 e seguintes, especialmente os crimes de peculato, art. 312, concussão, art. 316, corrupção passiva, art. 317, prevaricação, art. 319, e advocacia administrativa, art. 321). Tal coincidência ressalta a possibilidade de incongruências entre as decisões na esfera criminal e na ‘ação civil’, com sérias conseqüências para todo o sistema jurídico." (Competência para julgar a improbidade administrativa, in: Revista de Informação Legislativa n. 138, abril/junho1998, p. 213/214)

Sobre a eventual confusão ou interpolação entre os conceitos de improbidade administrativa e crime de responsabilidade, leio, ainda, em ARNOLDO WALD e GILMAR MENDES: "Em verdade, a análise das conseqüências da eventual condenação de um ocupante de funções ministeriais, de funções parlamentares ou de funções judicantes, numa "ação civil de improbidade" somente serve para ressaltar que, como já assinalado, se está diante de uma medida judicial de forte conteúdo penal. Essa observação parece dar razão àqueles que entendem que, sob a roupagem da "ação civil de improbidade", o legislador acabou por elencar, na Lei nº 8.429/92, uma série de delitos que, "teoricamente, seriam crimes de responsabilidade e não crimes comuns". (Ives Gandra da Silva Martins, Aspectos procedimentais do instituto jurídico do "impeachment" e conformação da figura da improbidade administrativa, in Revista dos Tribunais, v.81, n.685, 1992, p. 286/87).

Se os delitos de que trata a Lei nº 8.429/92 são, efetivamente, "crimes de responsabilidade", então é imperioso o reconhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal toda vez que se tratar de ação movida contra ministros de Estado ou contra integrantes de tribunais superiores (CF, art. 102, I, "c")" (Cf Competência para julgar ação de improbidade administrativa, cit, p. 213/215). Poder-se-ia sustentar, é verdade, como já fez o STJ, com o voto de desempate de seu então Presidente PÁDUA RIBEIRO, que, ante a ausência de disposição legal definidora da competência, não poderia aquela Corte processar e julgar as ações por ato de improbidade administrativa (Rcl 591, Relator: Min. Nilson Naves, DJ 15.05.2000). Houve dissenso. Enfatizou-se que a controvérsia não é no plano da lei, mas no da Constituição.


Leio em EDUARDO RIBEIRO: "Se partíssemos do princípio de que todas as normas jurídicas que atribuem competência hão de ser interpretadas estritamente, não se podendo sequer ter como por elas abrangidas outras hipóteses que, por força de compreensão, houvessem de sê-lo, a questão seria de facílimo deslinde, pois induvidoso não existir, no texto constitucional, disposição que, expressamente, estabeleça ser este Tribunal competente para a matéria. Não me parece, entretanto, que a tradição do nosso direito e a jurisprudência do País placitem tal entendimento.

Alguns exemplos podem ser citados e o ilustre advogado o fez da tribuna. Permito-me acrescentar outros dois. O Tribunal Federal de Recursos, com aprovação do Supremo Tribunal, se bem me recordo, entendeu que era de sua competência julgar, originariamente, os deputados estaduais nos crimes ditos federais. Não havia na Constituição, entretanto, norma que assim dispusesse. Competente seria, por certo, a Justiça Federal, em razão do contido no artigo 125, IV do texto constitucional então vigente. E como o artigo 122 disso não cogitava, a competência não seria do Tribunal Federal de Recursos, mas do juiz de primeiro grau. Decidiu-se, entretanto, do modo indicado. A atual Constituição determina, expressamente, que cabe aos Tribunais de Justiça o julgamento dos prefeitos.

O Supremo Tribunal Federal, entretanto, estabeleceu distinções. Tratando-se de crime eleitoral, será o prefeito julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral; se acusação referir-se a crime federal, o julgamento far-se-á por Tribunal Regional Federal. Nenhuma disposição, entretanto, atribui, para isso, competência a tais Cortes. Vê-se que se admitiu fosse ampliado o que está explícito no texto, para fazer compreender outras hipóteses que, logicamente, tendo em vista o sistema, nele se haveriam de ter como contidas No caso, solução análoga se impõe.

A ação de improbidade tende a impor sanções gravíssimas: perda do cargo e inabilitação, para o exercício de função pública, por prazo que pode chegar a dez anos. Ora, se um magistrado houver de responder pela prática da mais insignificante das contravenções, a que não seja cominada pena maior que multa, assegura-se-lhe foro próprio, por prerrogativa de função. Será julgado pelo Tribunal de Justiça, por este Tribunal ou mesmo, conforme o caso, pelo Supremo. Entretanto, a admitir-se a tese que ora rejeito, um juiz de primeiro grau poderá destituir do cargo um Ministro do Supremo Tribunal Federal e impor-lhe pena de inabilitação para outra função por até dez anos. Vê-se que se está diante de solução que é incompatível com o sistema." (RCL 591)

Na mesma linha, o MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: "Ouvi com grande atenção as brilhantes considerações aqui desenvolvidas pelos Srs. Ministros Demócrito Reinaldo e Fontes de Alencar. Parece-me, contudo, Sr. Presidente, que a ação tem como origem atos de improbidade que geram responsabilidade de natureza civil, qual seja, aquela de ressarcir o erário, relativo à indisponibilidade de bens. No entanto, a sanção traduzida na suspensão dos direitos políticos tem natureza, evidentemente, punitiva. É uma sanção, como aquela da perda de função pública, que transcende a seara do Direito Civil. A circunstância de a lei denominá-la civil em nada impressiona. Em verdade, no nosso ordenamento jurídico, não existe qualquer separação estanque entre as leis civis e as leis penais.

É muito comum existir o dispositivo de natureza em leis penais e vice-versa. Por isso, Sr. Presidente, enxergando nessas sanções natureza eminentemente punitiva, acompanho o Sr. Ministro Eduardo Ribeiro e aqueles que o seguiram." (RCL 591)

Não impressiona o argumento concernente à competência estrita ou da inextensibilidade da competência deste Tribunal ou de outros Tribunais Federais para conhecer de determinadas ações. A interpretação compreensiva do texto constitucional, também em matéria de competência, tem sido uma constante na jurisprudência do STF e do judiciário nacional em geral. Recentemente, o STF reconheceu a sua competência para processar todo mandado de segurança, qualquer que fosse a autoridade coatora, impetrado por quem teve a sua extradição deferida pelo Tribunal – RCL 2069, VELLOSO, sessão de 27.06.2002).


No caso não se afigura decisiva essa discussão, que poderá, todavia, ter aplicação em outras hipóteses. Também não se afigura relevante discutir se ação de improbidade, em eventual hipótese de desvio de poder, estaria sendo utilizada em lugar da adequada ação criminal.

É verdade, porém, que este Tribunal, por decisão de seu Presidente – MARCO AURÉLIO – deferiu liminar, em reclamação, em situação assemelhada: "O fato é de molde a atrair, conforme precedentes citados na inicial (Habeas Corpus n. 42.108, Relator: Ministro Evandro Lins, Revista Trimestral de Jurisprudência 33/791 e Inquérito n. 1504, Relator Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça de 17 de junho de 1999), a competência desta Corte para o inquérito, pouco importando haja sido rotulado de civil público. Sobrepõe-se ao aspecto formal a realidade, o tema de fundo, objetivo colimado" (RCL. 1110). Diversa é a situação que se coloca no presente feito. Cuida-se, aqui, de Ministro de Estado que teve decretada a suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de 08 anos e a perda da função pública (cargo efetivo de MINISTRO DE 1ª CLASSE do Ministério das Relações Exteriores) mediante sentença proferida pelo Juiz da 14a. Vara Federal por fatos ligados ao exercício de sua função ministerial. Daí alegar-se na presente RECLAMAÇÃO que, diante dos termos do art. 102, I, "c", da Constituição, compete ao Supremo Tribunal Federal, processar e julgar, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado, dentre outras altas autoridades.

Poder-se-ia configurar, assim, – é o que se afirma na presente reclamação – a usurpação de competência deste Tribunal para processar e julgar ministros de Estado por crime de responsabilidade. A questão é relevante. Não parece haver alternativas: (a) ou os agentes submetidos ao regime de responsabilidade especial da Constituição submetem-se igualmente ao regime da Lei da improbidade; (b) ou os agentes políticos, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade, não se submetem ao modelo de competência previsto do regime comum da Lei de improbidade. O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos.

O próprio texto constitucional refere-se especialmente aos agentes políticos, conferindo-lhes tratamento distinto dos demais agentes públicos. Está em HELY LOPES MEIRELLES: "Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. São as autoridades públicas supremas do Governo e da Administração, na área de sua atuação, pois não são hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais da jurisdição.

Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos, e, para tanto, ficam a salvo de responsabilização civil por seus eventuais erros de atuação, a menos que tenham agido com culpa grosseira, má-fé ou abuso de poder" (Direito Administrativo Brasileiro, 27a. edição, 2002, p. 76). Na mesma linha observa que essas prerrogativas são outorgadas com objetivo de garantir o livre exercício da função política. Transcrevo: "Realmente, a situação dos que governam e decidem é bem diversa da dos que simplesmente administram e executam encargos técnicos e profissionais, sem responsabilidade de decisão e opções políticas.

Daí por que os agentes políticos precisam de ampla liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções. As prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são privilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício de suas altas e complexas funções governamentais e decisórias. Sem essas prerrogativas funcionais os agentes políticos ficariam tolhidos na sua liberdade de opção e decisão, ante o temor de responsabilização pelos padrões comuns da culpa civil e do erro técnico a que ficam sujeitos os funcionários profissionalizados" (Direito Administrativo, cit., p. 77).


Não parece haver dúvida de que esses agentes políticos estão regidos por normas próprias, tendo em vista a peculiaridade do seu afazer político. Não é por acaso que a Constituição define, claramente, os agentes que estão submetidos a um regime especial de responsabilidade, como é o caso dos Ministros de Estado É verdade, também, que o STF tem conferido realce a essa distinção e dela extraído conseqüências relevantes. No RE 228.977-SP (NÉRI DA SILVEIRA) assentou-se que "a autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados [uma vez que] os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de duas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica" (INFORMATIVO 259).

Este Tribunal, em homenagem ao caráter eminentemente político da função, recusou a possibilidade de que se pudesse instaurar processo-crime contra o Governador sem a autorização de dois terços da Assembléia Legislativa. Trata-se de requisito de procedibilidade desenvolvido pela jurisprudência do STF a partir da ponderação sobre o próprio significado no princípio democrático no texto constitucional.

Destaco em CELSO DE MELLO, no HC 80.511-6,: "… Funda-se na circunstância de que, recebida a denúncia ou a queixa-crime pelo Superior Tribunal de Justiça, dar-se-á a suspensão funcional do Chefe do Poder Executivo estadual, que ficará afastado, temporariamente do exercício do mandato que lhe foi conferido por voto popular, daí resultando verdadeira ‘destituição indireta de suas funções’" (DJ 14.0901). Essa exigência traduz uma dimensão do princípio democrático. Não se admite a destituição indireta de autoridade sufragada pelo voto popular sem o consentimento expresso dos representantes do povo. Não parece haver outra interpretação possível. Do contrário, seria muito fácil comprometer o livre exercício do mandato popular, com a propositura de ações destinadas a afastar, temporariamente, o titular do cargo.

Diferentemente, a Lei de Improbidade Administrativa admite o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sempre que a medida se fizer necessária à instrução processual, art. 20, parágrafo único. Assim, a aplicação dessa Lei aos agentes políticos pode propiciar situações extremamente curiosas: (a) o afastamento cautelar do PRESIDENTE DA REPÚBLICA (art. 20, parágrafo único, da Lei n. 8.429/92) mediante iniciativa de membro do Ministério Público, a despeito das normas constitucionais que fazem o próprio processo penal a ser movido perante esta Corte depender da autorização por dois terços da Câmara dos Deputados (CF, art. 102, I, "b" c/c art. 86, caput); ou ainda o seu afastamento definitivo, se transitar em julgado a sentença de primeiro grau na ação de improbidade que venha a determinar a cassação de seus direitos políticos e a perda do cargo;

(b) o afastamento cautelar ou definitivo do PRESIDENTE DO CONGRESSO NACIONAL e do PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS nas mesmas condições do item anterior, a despeito de o texto constitucional assegurar-lhes ampla imunidade material, foro por prerrogativa de função em matéria criminal perante o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I "b") e regime próprio de responsabilidade parlamentar (CF, art. 55, II);

(c) o afastamento cautelar ou definitivo do PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, de qualquer de seus membros ou de membros de qualquer Corte Superior, em razão de decisão de juiz de primeiro grau;

(d) o afastamento cautelar ou definitivo de MINISTRO DE ESTADO, dos COMANDANTES DAS FORÇAS ARMADAS, de GOVERNADOR DE ESTADO, nas mesmas condições dos itens anteriores;

(e) o afastamento cautelar ou definitivo do PROCURADOR-GERAL em razão de ação de improbidade movida por membro do Ministério Público e recebida pelo juiz de primeiro grau nas condições dos itens anteriores. Essas hipóteses demonstram deixar ser um argumento ad absurdum o exemplo referido por REZEK no Conflito de Atribuições n. 35: "Figuro a situação seguinte: amanhã o Curador de Interesses Difusos, no Rio de Janeiro, dirige-se a uma das Varas Cíveis da Capital, com toda a forma exterior de quem pede a prestação jurisdicional, e requer ao juiz que, em nome do bem coletivo, exonere o ministro da Fazenda e designe em seu lugar outro cidadão, cujo luminoso currículo viria anexo." (RT 650/201). Assim, a admissão do convívio dos dois sistemas de responsabilidade para os agentes políticos propicia que um juiz substituto de primeiro grau suspenda, em caráter provisório, a pedido de um diligente membro do Ministério Público prestes a encerrar o estágio probatório, do exercício de suas funções, O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, ALGUNS MINISTROS DE ESTADO, O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, OU O COMANDANTE DO EXÉRCITO.


O que se indaga é se o texto constitucional admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade política-administrativa para os agentes políticos: (a) o previsto no art. 37, § 4º, e regulado pela Lei n. 8.429, de 1992, e (b) o regime de crime de responsabilidade fixado no art. 102, I, "c" da, Constituição e disciplinado pela Lei n. 1.079, de 1950. Os atos de improbidade, enquanto crimes de responsabilidade, estão amplamente contemplados no Capítulo V da L. 1.079, de 10.04.1950. Ela disciplina os crimes de responsabilidade (Dos crimes contra a probidade na administração – art. 9º). A pena prevista também é severa (art. 2º – perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública pelo prazo de até cinco anos). Por outro lado, a teor do art. 3º da L. 1079/1950, a imposição da pena referida no art. 2º não exclui o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis processuais penais.

Assim, em análise preliminar, não parece haver dúvida de que os delitos previstos da L. 1.079/1950, tais como os arrolados na L. 8.429/92, são delitos político-administrativos. É certo que se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, §4º) abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-á uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição.

Se, ao contrário, se entender que aos agentes políticos, como os Ministros de Estado, por estarem submetidos a um regime especial de responsabilidade, não se aplicam as regras comuns da lei de improbidade, há que se afirmar a plena e exclusiva competência do STF para processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição. Conclui-se também, num juízo preliminar, que, na segunda hipótese, não se cuida de assegurar ao agente político um regime de imunidade em face dos atos de improbidade.

O agente político há de responder pelos delitos de responsabilidade perante os órgãos competentes para processá-lo e julgá-lo. Também não impressiona, nesta fase inicial de análise, a consideração segundo a qual a ação de improbidade seria dotada de caráter reparatório. A simples possibilidade de superposição ou concorrência de regimes de responsabilidade e, por conseguinte, de possíveis decisões colidentes exige uma clara definição na espécie.

Os conflitos entre poderes e desinteligências institucionais decorrentes dessa indefinição de competência também parecem recomendar um preciso esclarecimento da matéria. Dos elementos aduzidos sugerem a plausibilidade jurídica do pedido e a notória relevância jurídico-política do tema. De outro lado, há o risco pela mora, consistente na possibilidade de julgamento das ações por órgãos judiciais absolutamente incompetentes. Defiro a liminar. Suspendo a eficácia da sentença reclamada. Susto a tramitação do processo até posterior deliberação."

De fato, conforme tenho sustentado, a simples possibilidade de suspensão de direitos políticos, ou a perda da função pública, isoladamente consideradas, afigura-se suficiente para demonstrar que as ações de improbidade possuem forte conteúdo penal, com incontestáveis aspectos políticos. No caso em exame, verifica-se que o pedido formulado pelo Ministério Público em ambas as ações alcançam não só o ressarcimento ao erário quanto aos alegados danos, mas também a perda dos direitos políticos, com a conseqüente proibição de exercer qualquer função pública. Não é difícil perceber a gravidade de tais sanções e a sua implicação na esfera de liberdade daqueles agentes políticos.

Quanto às implicações da sentença condenatória na ação de improbidade, registra Cláudio Ari Mello, que "o condenado por improbidade administrativa ver-se-á na indigna posição de não-cidadão, em face da perda dos direitos políticos", (Improbidade Administrativa – Considerações sobre a Lei nº 8.429/92, in RT – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 3ª, nº 11, p. 58, abr/jun 95). No âmbito da ação de improbidade, portanto, verifica-se que os efeitos da condenação podem superar aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, podendo conter, também, efeitos mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal.


Considerado o caráter eminente penal das sanções impostas pela Lei nº 8.429, resta evidente a ilegitimidade dos juízes de primeira instância para processar e julgar, com base na Lei nº 8.429/92, as autoridades que estão submetidas, em matéria penal, à competência originária de cortes superiores ou até mesmo do Supremo Tribunal Federal. Verifica-se, ademais, que muitos dos ilícitos descritos na Lei de Improbidade configuram, igualmente, ilícitos penais, que podem dar ensejo à perda do cargo ou da função pública, com efeito da condenação, como fica evidenciado pelo simples confronto entre o elenco de "atos de improbidade", constante do art. 9º da Lei nº 8.429/92, com os delitos contra a Administração praticados por funcionário público (Código Penal, art. 312 e seguintes, especialmente os crimes de peculato, art. 312, concussão, art. 316, corrupção passiva, art. 317, prevaricação, art. 319, e advocacia administrativa, art. 321).

Em verdade, a análise das conseqüências da eventual condenação de um ocupante de funções ministeriais, de funções parlamentares ou de funções judicantes, numa "ação civil de improbidade" somente serve para ressaltar que, como já assinalado, se está diante de uma medida judicial de forte conteúdo penal. De modo mais preciso, pode-se afirmar que, sob a roupagem da "ação civil de improbidade", o legislador acabou por elencar, na Lei nº 8.429/92, uma série de delitos que, "teoricamente, seriam crimes de responsabilidade e não crimes comuns". (Ives Gandra da Silva Martins, Aspectos procedimentais do instituto jurídico do "impeachment" e conformação da figura da improbidade administrativa, in Revista dos Tribunais, v.81, n.685, 1992, p. 286/87). Assim, na linha adotada pelo eminente Ministro Nelson Jobim, ao concluir que os delitos de que trata a Lei nº 8.429/92 são, efetivamente, "crimes de responsabilidade", afigura-se imperioso o reconhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal toda vez que se tratar de ação movida contra ministros de Estado ou contra integrantes de tribunais superiores (CF, art. 102, I, "c"). No mesmo sentido a doutrina de Sebastião Botto de Barros Tojal e Flávio Crocce Caetano (Competência e Prerrogativa de Foro em Ação Civil de Improbidade Administrativa, in Improbidade Administrativa, Questões Polêmicas e Atuais, coordenadores: Cassio S. Bueno e Pedro Paulo R. Porto Filho, São Paulo, Malheiros, 2001, fl. 359). Na mesma linha, em recente artigo, Aristides Junqueira Alvarenga (Ato de Improbidade Administrativa: crime de responsabilidade, Correio Braziliense, Caderno Direito e Justiça, ed. de 30.09.2002.”

59. O que o § 2º do art. 84, do CPP, introduzido pela Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, faz, na verdade, é reconhecer caráter penal (criminal) aos atos de improbidade administrativa. E isso pode o Congresso Nacional em tese fazer por ser a União Federal competente para legislar privativamente sobre Direito Penal (CF 88, art. 22, inciso I, c/c art. 48).

60. Não nos parece que a norma legal tenha aqui criado propriamente novas hipóteses de competência de Tribunais por prerrogativa de função, como sustentado na inicial. O que ela diz é que se o funcionário (por equívoco) ou a autoridade tem “prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública” para ser processado e julgado pela prática de crime comum (e isto obviamente já deverá estar previsto na Constituição), no caso de cometimento de ato de improbidade administrativa – a que se dá caráter penal – a ação de improbidade prevista na Lei nº 8.429/92 será proposta “perante o Tribunal competente”.

61. Não há falar, assim, na alegada violação do disposto nos arts. 125, § 1º; 102, I; 105, I, e 108, da Carta da República.

62. Creio, todavia (tal como, aliás, delineado nos votos da eminente Ministra ELLEN GRACIE e dos eminentes Ministros GILMAR MENDES, MAURÍCIO CORREA e ILMAR GALVÃO, proferidos no julgamento da mencionada Reclamação 2.138-6-DF, acompanhando o voto do Relator, o eminente Ministro NELSON JOBIM), concluindo sobre a caracterização de crime de responsabilidade em hipótese de suposto ato de improbidade administrativa praticado por Ministro de Estado, que não se pode – à luz da Constituição – dar a extensão que pretendeu dar à norma o legislador ordinário.


63. É que a improbidade administrativa é prevista no art. 37, § 4º, da CF 88 e nada leva a concluir pela norma lá inserta, o caráter penal que se pretende agora dar ao ato de improbidade. Pelo contrário, o seu caráter administrativo – e de Direito Administrativo – sobressai do próprio contexto constitucional em que é inserida a norma ao referir-se aos servidores públicos e aos princípios da administração pública.

64. Contudo, por existir também outra norma constitucional expressa definindo como crimes de responsabilidade os que atentem contra “a probidade na administração” (CF 88, art. 85, inciso V) é que penso ser possível atribuir tal caráter penal aos atos de improbidade administrativa desde que configurem tipicamente crimes de responsabilidade como previstos na Constituição e em lei federal.

65. Evidentemente somente há tais hipóteses relativamente a autoridades, que tenham foro por prerrogativa de função previsto no próprio texto da Constituição da República, para serem processados e julgados por crimes de responsabilidade pelos Tribunais competentes.

66. Não é o caso dos Governadores dos Estados e dos Prefeitos Municipais, em relação aos quais a Constituição de 1988 conferiu competência ao Superior Tribunal de Justiça e aos Tribunais de Justiça Estaduais, respectivamente, para processá-los e julgá-los por crimes comuns somente e não por crimes de responsabilidade (CF 88, art. 105, I, a, e art. 29, X). E o fez, aliás, coerentemente com o modelo federal, pois, não é competente o Supremo Tribunal Federal para processar e julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade. E mesmo na hipótese de crimes de responsabilidade de Ministros de Estado, somente é competente o STF se não forem conexos com aqueles da mesma natureza cometidos pelo Presidente da República (CF 88, art. 102, I, c, c/c art. 52, I).

67. Vale salientar, aliás, que o próprio advogado subscritor da inicial desta ação, o ex-Procurador-Geral da República ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, sustenta também, como doutrinador, o caráter penal dos atos de improbidade administrativa em geral, que é exatamente o que pretende estabelecer o § 2º introduzido pela Lei nº 10.628/02, ora impugnada. Diz S.Exa, verbis:

“Porque ato de improbidade administrativa é, na sua essência, crime de responsabilidade (também denominado, quiçá com maior propriedade, de infração político-administrativa), praticável não só pelo presidente da República, mas por todo e qualquer agente público, a Lei nº 1.079/50 estendeu sua aplicação aos Ministros de Estado (art. 13), aos Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 39), ao Procurador-Geral da República (art. 40), aos governadores e secretários dos estados-membros (art. 74), fazendo questão de repetir, relativamente a cada um deles, que o procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo atenta contra a probidade da Administração e é crime de responsabilidade.

POR SE TRATAR DE CRIME DE RESPONSABILIDADE, O PROCESSO E JULGAMENTO DOS AGENTES PÚBLICOS, SEJAM OU NÃO AGENTES POLÍTICOS, AOS QUAIS SE IMPUTA A AUTORIA DE ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, HÃO DE OBEDECER ÀS REGRAS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONALMENTE FIXADAS”.

(Vide “Reflexões sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro”, in Improbidade Administrativa – Questões Polêmicas e Atuais, Malheiros Ed., São Paulo, 2001, p. 86 e segs.)

68. Não nos parece, contudo, que lei ordinária sobre Direito Penal (na verdade, incluindo normas no CPP) possa simplesmente conferir caráter criminal aos atos administrativos em geral que configurem improbidade administrativa, segundo a Lei nº 8.429/92, quando a Constituição dá tratamento específico à improbidade administrativa e há a distinção até clássica entre a esfera administrativa e penal, como instâncias independentes para fins de sanção. Todavia, é também a própria Constituição que distingue o conceito de crimes de responsabilidade e as sanções próprias e específicas, assim como os órgãos do Judiciário ou do Legislativo competentes para processá-los e julgá-los.

69. E este Colendo Supremo Tribunal Federal tem reconhecido em inúmeras ações diretas de inconstitucionalidade a competência privativa da União Federal para legislar sobre crimes de responsabilidade, com fundamento no art. 22, inciso I.

70. Assim, parece-nos que não poderia o Congresso Nacional aprovar e o Presidente da República sancionar lei definindo como crimes comuns todos os atos administrativos tipificados como de improbidade administrativa, trazendo como consequência a aplicação do foro por prerrogativa de função nos Tribunais, inclusive no STF.

71. A inconstitucionalidade do § 2º, pois, é a nosso ver parcial, sem redução de texto, para conferir interpretação conforme a Constituição (na linha dos cinco votos já proferidos na Reclamação nº 2.138/DF), considerando aplicável apenas quando se trate de hipóteses de atos de improbidade administrativa configuradores de crimes de responsabilidade.

72. Ante o exposto, e pelas razões aduzidas, o parecer é, preliminarmente, no sentido do conhecimento da presente ação direta de inconstitucionalidade; e, no mérito, pela sua procedência em parte, para declarar a inconstitucionalidade do § 1º, do art. 84, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, bem como da expressão “observado o disposto no § 1º”, constante do § 2º, in fine, também acrescido pela mesma lei ao referido art. 84, salvo se o Supremo Tribunal Federal novamente reexaminar sua posição quanto ao cancelamento da Súmula 394, nos termos do item 51 acima; e ainda para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, conferindo interpretação conforme a Constituição ao mencionado § 2º, para considerá-lo aplicável apenas quando se trate de hipóteses de atos de improbidade administrativa configuradores de crimes de responsabilidade.

Brasília, 18 de fevereiro de 2003.

GERALDO BRINDEIRO

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

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