Alíquota zero do IPI

Leia o voto de Cezar Peluso sobre o crédito da alíquota zero de IPI

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18 de setembro de 2004, 15h40

O direito de as empresas receberem crédito do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) que incide na aquisição de matéria-prima com alíquota zero não ofende a Constituição Federal. Isso porque a própria Carta autoriza “o contribuinte a creditar-se do valor do tributo incidente sobre insumos adquiridos sob o regime de isenção”.

Com esse entendimento, que faz referência a um voto do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, o ministro Cezar Peluso entendeu que o governo federal deve, sim, alguns bilhões às empresas que reclamam o tal crédito.

Para Peluso, apesar dos “esforços dialéticos da União, é evidente que, em relação à não-cumulatividade, assim a isenção, como a alíquota zero, produzem o mesmíssimo efeito jurídico e prático, não se justificando, pois, a idéia de tratamentos diferenciados”.

O julgamento que vai decidir se os bilhões em jogo nessa questão irão para os cofres da União ou integrarão a contabilidade de diversas empresas país afora foi suspenso, na quarta-feira (15/9), com o pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. O placar está 4 X 2 para a União.

Cezar Peluso rejeitou o recurso da União e entendeu que as empresas têm direito ao crédito, seguindo a posição do ministro Nelson Jobim, que adiantou seu voto em sessão anterior. O entendimento foi firmado depois que os ministros Marco Aurélio, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Carlos Ayres Britto davam ganho de causa à União.

O julgamento será retomado quando Gilmar Mendes apresentar seu voto numa próxima sessão do plenário.

Leia os principais trechos do voto

Voto do ministro Antônio Cezar Peluso no RE nº 353.657

4. Antes de analisar o mérito do recurso, entendo conveniente breve análise contextual, histórica e comparativa da natureza jurídica do IPI (imposto sobre produtos industrializados) e do princípio da não-cumulatividade:

Dispõe a Constituição Federal no art. 153, IV e § 3º, II:

“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(…)

IV – produtos industrializados;

(…)

§ 3º. O imposto previsto no inciso IV:

(…)

II – será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;”

Daí se vê logo que a Constituição da República atribuiu à União competência para instituir imposto sobre operações praticadas com produtos industrializados e, mediante modal obrigatório (verbo ser), pré-excludente de alternativa à lei ordinária a respeito, impôs seja não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.

Segundo ALCIDES JORGE COSTA, “os impostos sobre vendas, tomada esta expressão na acepção de impostos sobre o tráfico de mercadorias, admitem basicamente três modalidades:

“1. Imposto multifásico cumulativo: cobrado em cada uma das transações pelas quais a mercadoria passa desde a fonte de produção até entrega ao consumidor. O imposto pago numa transação não é levado em conta nas subseqüentes, de modo que o ônus tributário se vai acumulando.

2. Imposto monofásico: cobrado apenas uma vez, seja do produtor, seja do atacadista, seja do varejista, em um só ponto do processo de produção e distribuição.

3. Imposto de valor acrescido: cobrado em cada transação, desde a produção até entrega ao consumidor. O imposto recai, em cada transação, apenas sobre o valor acrescido à mercadoria pelo vendedor.”

O valor acrescido ou valor agregado corresponde à diferença entre o preço final de venda das mercadorias produzidas (ou vendidas) pelo contribuinte e o preço das mercadorias (adquiridas para revenda) ou produtos por ele adquiridos como matérias primas ou insumos. E pode ser apurado por diferentes métodos ou técnicas:

“O cálculo do valor acrescido admite duas formas: a pura ou sobre base real e a forma de cálculo sobre base financeira.

Pela forma pura ou sobre base real, que se atém ao conceito estatístico e econômico de valor acrescido, este se obtém mediante a dedução do valor da produção de um determinado período (quer vendida, quer mantida em estoque) do montante dos gastos de aquisição das matérias primas, materiais secundários e equipamento (ou a quota de depreciação deste, tal seja o tipo do imposto) utilizados na produção. Este método é de aplicação muito difícil e, por isso mesmo, não utilizado na prática. Sua adoção exigiria o emprego, no cálculo do valor da produção, de métodos de avaliação semelhantes aos de avaliação dos estoques de fim de exercício (custo histórico, custo médio, custo standard, LIFO, FIFO), com todas as dificuldades inerentes a tais métodos.

Pela forma financeira de cálculo, o valor acrescido é computado mediante dedução, do total das vendas de um período (quer de bens produzidos no período, quer já existentes em seu início), das aquisições de matérias primas e materiais secundários no mesmo período (quer utilizadas, quer as existentes em estoque ao fim do período); o tratamento dos investimentos depende do tipo do imposto. Esta é a forma adotada por motivos de ordem prática.


Dentro dos três tipos já assinalados (renda, consumo e produto bruto) e da fora financeira de cálculo, podem distinguir-se ainda dois métodos de cálculo do valor acrescido: o de adição e o de subtração.

O método de adição consiste em somar todos os componentes do valor acrescido de uma empresa num período dado: salários, juros, lucro líquido, depreciações, etc.

O método de subtração admite duas variantes: o de base sobre base e o de imposto sobre imposto.

Pelo método de subtração variante base sobre base, o valor acrescido resulta da diferença entre o montante das vendas e o das aquisições no mesmo período.

Pelo método de subtração variante imposto sobre imposto, o valor acrescido obtém-se deduzindo do imposto a pagar o imposto que incidiu sobre os bens adquiridos no mesmo período. Desnecessário acrescentar que, em qualquer das variantes, as deduções dependem do tipo de imposto : renda, consumo, produto bruto.

O método geralmente usado é o de imposto sobre imposto.”

Discorrendo sobre o antigo ICM, ALCIDES JORGE COSTA compara o imposto multifásico cumulativo com o imposto sobre valor agregado e aponta as razões que levaram o legislador a abandonar o imposto sobre vendas e consignações, adotando o ICM não-cumulativo:

“Este imposto (multifásico cumulativo) apresenta duas vantagens sobre os demais tipos. A primeira é a de tratar-se de um tipo mais tosco e, portanto, de mais fácil aplicação e compreensão, fator que, num país como o Brasil, não é desprezível. A segunda é a de ser o tipo que, para um determinado volume de arrecadação, exige uma alíquota mais baixa do que qualquer outro tipo, ao mesmo tempo em que difunde o impacto tributário por um número muito maior de empresas.

Estas vantagens são compensadas por desvantagens que o legislador teve em mente ao introduzir o tipo do valor acrescido. Assim é que o Relatório com que a Comissão encarregada de elaborar o ante-projeto de reforma tributária encaminhou sua proposta ao Ministro da Fazenda diz que é característica moderna dos impostos sobre a circulação, primeiro elaborada na França e imitada pela maioria dos países, a de só tributarem, em cada sucessiva operação, o valor acrescido, eliminado-se assim os notórios malefícios econômicos da superposição em cascata, de incidências repetidas sobre bases de cálculo cada vez mais elevadas pela adição de novas margens de lucro, de novas despesas acessórias, e do próprio imposto que recaiu sobre as operações anteriores.

A primeira desvantagem é a de que o imposto de vendas do tipo multifásico cumulativo incentiva a integração vertical das empresas. Se o tributo é pago em cada operação de que resulta a passagem da mercadoria de uma empresa para outra, até entrega ao consumidor, quanto mais integralizada verticalmente uma empresa, tanto menor será o ônus a que ficarão sujeitas as mercadorias por ela vendidas.

(…)

No comércio do café, as tradicionais vendas na praça de Santos, que eram muitas em virtude das quais o produto podia ser transferido várias vezes, viram-se quase condenadas ao desaparecimento em virtude do ônus insuportável criado pela incidência múltipla do imposto de vendas e consignações. A situação chegou a tal ponto que se tornou necessária legislação especial que concedeu isenção do tributo para as operações internas da praça de Santos, realizadas com café, quando destinadas à formação de lotes para exportação. As grandes empresas não eram afetadas pelo problema porque adquiriam o café diretamente dos produtores e o exportavam, ficando sujeitas apenas a duas incidências, na compra e na exportação.

(…)

O imposto multifásico cumulativo em cascata ressente-se de outro grave defeito: o de não constituir uma carga uniforme para todos os consumidores que são, afinal, quem o suportam. Este ônus será tanto maior quanto mais longo o ciclo da produção e da comercialização de cada produto. Como a essencialidade do produto não guarda relação alguma com a extensão do ciclo a que fica sujeito até chegar ao consumidor, pode acontecer – e acontecia muitas vezes – que o produto mais essencial seja o mais onerado. Por exemplo: jóias tem um ciclo de produção e comercialização normalmente mais curto que o de certos artigos de alimentação, como a carne.

Um imposto multifásico cumulativo torna impraticável uma desoneração completa dos produtos exportados. Por outro lado, um produto importado e vendido diretamente ao consumidor fica em posição altamente vantajosa na concorrência com produtos fabricados no país.

Evitar estes males é quase sempre possível, mas à custa de perda da simplicidade que é um dos maiores atrativos do imposto de vendas multifásico cumulativo.”

4.1. No Brasil, como o pressuposto de fato legitimador da competência para instituição do IPI é a existência de um produto industrializado (art. 153, IV da CF), não tomou a Constituição por aspecto material da regra-matriz de incidência (fato gerador) o valor agregado, como sucede nos países europeus, mas o valor da operação. Nesse sentido, não há em nosso sistema constitucional tributário um imposto sobre o valor agregado (fato gerador). Mas a regra de não-cumulatividade, prevista no § 3º do art. 153, há, é óbvio, de ter e produzir alguma eficácia.


4.2. A regra da não-cumulatividade (art. 153, § 3º, II) encontra-se no mesmo nível taxinômico ou hierárquico da norma de competência e, como tal, conforma-lhe o exercício (obrigatório). São duas normas que se completam e complementam, exigindo interpretação conjunta e coerente.

O § 3º, II, do art. 153 da Constituição, hospeda, mediante adoção de certa técnica, consistente na compensação do montante devido com o cobrado nas operações anteriores, uma finalidade e um limite objetivo.

A finalidade está na divisão ou distribuição do impacto financeiro do tributo entre os diversos elos da cadeia produtiva, de modo a que a tributação total (oneração) seja equivalente ao resultado da aplicação da alíquota sobre o preço final do produto (ao consumidor). Noutras palavras, é a exclusão da incidência, em cascata, do tributo que oneraria o produto final mediante acréscimo do imposto nas diversas etapas da cadeia produtiva.

O limite objetivo, esse volta-se ao legislador ordinário, que não pode disciplinar o tributo em desacordo com tal alcance da norma constitucional, ou seja, não pode vedar a apropriação do crédito, nem usar de artifícios para fraudar a finalidade imanente à norma constitucional, tornando o imposto cumulativo.

Temos, pois, um imposto multifásico sobre operações com produtos industrializados (valor total), mas que obedece à mesma técnica de distribuição do encargo financeiro (finalidade) adotada para os impostos que incidem sobre o valor agregado (método de imposto sobre imposto).

A não-cumulatividade, como limite constitucional objetivo, preordena-se à realização de certos valores, “como o da justiça da tributação, o do respeito à capacidade contributiva do administrado, o da uniformidade na distribuição da carga tributária”, e não decorre da definição do fato gerador, da base de cálculo, nem da qualidade do contribuinte do imposto, mas de norma independente, inserida no próprio texto constitucional. É o que acentua GILBERTO DE ULHOA CANTO, ao analisar o princípio em relação ao ICM:

“2.20 Ela (a não cumulatividade) é assegurada pela regra que prevê o abatimento, em cada operação, do montante pago nas anteriores, regra esta que não incide sobre nenhum dos elementos da própria obrigação tributária, porque diz respeito ao modo pelo qual o tributo será recolhido. É claro que a eficácia da regra é, em termos práticos, a mesma que ela teria se em seu lugar a Constituição houvesse baseado a não-cumulatividade do tributo em elementos da própria obrigação. Mas, é importante deixar marcada a diferença porque, como regra sobre o recolhimento a compensação do imposto devido com o já pago terá de ser examinada dentro desse contexto, e a sua observância compulsória se cinge à finalidade a que se destina.

2.21 A não–cumulatividade do ICM não é apenas um fenômeno econômico ou financeiro, embora sejam desta índole alguns dos seus fundamentos. É, também, principalmente, fenômeno jurídico a partir de quando a Constituição a enuncia como característica do tributo, que em virtude dela não poderá ser instituído e cobrado “em cascata”. O primeiro efeito da não-cumulatividade é que o montante global de ICM que grava determinada mercadoria ao fim do seu ciclo de produção e circulação não poderá exceder o produto da multiplicação da sua alíquota real pelo valor da última operação por ele tributada. A referência à alíquota real justifica-se pelo fato de o ICM ser calculado “por dentro”.

2.22 Outro efeito da não-cumulatividade do tributo é homólogo do primeiro: em qualquer fase do processo de produção e circulação por ele atingido o seu montante acumulado será apurado mediante a multiplicação da alíquota real pelo valor da mercadoria até então agregado.

2.23 Para que esses efeitos sejam logrados é necessário que cada contribuinte possa abater do montante do ICM calculado como devido sobre o valor da operação de que decorrerá a saída da mercadoria por ele promovida todos os recolhimentos anteriormente feitos pelos contribuintes que o antecederam no ciclo econômico.

(…)

2.24 O direito assegurado como forma de manter-se o ICM como imposto não-cumulativo é exercitável pelo contribuinte nos termos em que a Constituição o enuncia e a legislação complementar o regula. Ele não se insere no âmbito da própria obrigação tributária, já que não afeta o fato gerador, a base de cálculo ou o contribuinte. O seu efeito sobre o recolhimento do imposto consiste em determinar que em cada operação de saída o montante que o contribuinte irá desembolsar seja reduzido pelo montante pago nas operações anteriores. Trata-se de modalidade meramente financeira de garantir que o valor do imposto a ser desembolsado por qualquer contribuinte será apenas a diferença entre o montante que resulte da operação por ele promovida e o total recolhido pelos contribuintes que o antecederam no ciclo de produção e circulação”.


Nesse diagrama, traçado pelo art. 153, IV e § 3º, II, da Constituição Federal, analiso o mérito do recurso.

5. No RE n º 212.484/RS (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJ de 27.11.98), o Plenário desta Corte, ao julgar recurso contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região “que autorizou contribuinte do IPI a creditar-se do valor do tributo incidente sobre insumos adquiridos sob o regime de isenção”, firmou entendimento de que “não ocorre ofensa à CF (art. 153, § 3º, II) quando o contribuinte do IPI credita-se do valor do tributo incidente sobre insumos adquiridos sob o regime de isenção” (trecho da ementa).

Na oportunidade, a então recorrente argüira ofensa ao art. 153, § 3º, II, da Constituição, “segundo a qual a compensação do tributo, que é não cumulativo, deverá ocorrer entre o que for devido, em cada operação, e o que for exigido nas operações anteriores, inexistindo disposição que autorize a compensação entre o que for devido, em cada operação, e o que devesse ser pago, nas operações anteriores, não estivesse ela coberta por isenção.”

Prevaleceu, na decisão, o voto do Min. NELSON JOBIM:

“Sr Presidente, o ICMS e o IPI são impostos criados no Brasil, na esteira dos impostos de valor agregado.

A regra, para os impostos de valor agregado, é a não cumulatividade, ou seja, o tributo é devido sobre a parcela agregada ao valor tributado anterior. Assim, na primeira operação, a alíquota incide sobre o valor total. Já na segunda operação, só se tributa o diferencial.

O Brasil, por conveniência, adotou-se técnica de cobrança distinta.

O objetivo é tributar a primeira operação de forma integral e, após, tributar o valor agregado. No entanto, para evitar confusão, a alíquota incide sobre todo o valor em todas as operações sucessivas e concede-se crédito do imposto recolhido na operação anterior. Evita-se, assim, a cumulação.

Ora, se esse é o objetivo, a isenção concedida em um momento da corrente não pode ser desconhecida quando da operação subseqüente tributável. O entendimento no sentido de que, na operação subseqüente, não se leva em conta o valor sobre o qual deu-se a isenção, importa meramente em diferimento.

(…)

Com a vênia do eminente Ministro-Relator, ouso divergir, com o pressuposto analítico do objetivo do tributo de valor agregado. O que não podemos, por força da técnica utilizada no Brasil para aplicar o sistema do tributo sobre o valor agregado não-cumulativo, é torná-lo cumulativo e inviabilizar a concessão de isenções durante o processo produtivo.

Tenho cautela que impõe a técnica do crédito e não de tributação exclusiva sobre o valor agregado. Tributa-se o total e se abate o que estava na operação anterior. O que se quer é a tributação do que foi agregado e não a tributação do anterior, caso contrário não haverá possibilidade efetiva de isenção: é isento numa operação, mas poderá ser pago na operação subseqüente.”

6. No caso presente, a União reconhece o direito ao crédito em relação aos produtos isentos e, por boa conseqüência, admite a interpretação dada ao princípio da não-cumulatividade. Quer, no entanto, afastar a aplicação do precedente, sob alegação de que se trataria de “institutos diversos”, que não poderiam receber “tratamento idêntico”. Ou seja, a União reconhece, de modo categórico e formal, a premissa, mas descarta-a nas hipóteses de alíquota zero e de não-tributação. Logo, a premissa é incontroversa; a questão última está apenas em saber se se aplica, ou não, a essas duas hipóteses.

E, por sustentar que se não aplicaria, afirma que, “na isenção – diversamente do que ocorre com a alíquota zero – não há crédito tributário pois a norma isentiva impede o surgimento do crédito pela frustação da incidência da norma de tributação. Em outras palavras, amparado pela doutrina de Souto Maior Borges, a norma isentiva incide para que não incida a norma que gera o dever tributário. Por outro lado, na alíquota zero, verifica-se a incidência da norma tributária e surge o crédito tributário. No entanto este crédito é nulo pela sua multiplicação com um valor vazio, que nada exprime, não resultando em nenhuma soma pecuniariamente apreciável” (fls. 177/178).

Não obstante os esforços dialéticos da União, é evidente que, em relação à não-cumulatividade, assim a isenção, como a alíquota zero produzem o mesmíssimo efeito jurídico e prático, não se justificando, pois, a idéia de tratamentos diferenciados.

A diferença jurídica apreciável entre a isenção e a alíquota zero reside no fato de que esta pode concedida pelo Presidente da República mediante decreto, nos limites fixados em lei (art. 153, § 1º, da CF), ao passo que a isenção somente pode sê-lo por lei específica (art. 150, § 6º). A motivação política de uma ou de outra é variável, inspirada em razões de extrafiscalidade (instrumento célere de intervenção na economia), ou de maior proteção por força da exigência de trânsito pelo procedimento legislativo ordinário.


O resultado perante a não-cumulatividade é, todavia, o mesmo: tanto na isenção, quanto na alíquota zero, se não reconhecido ao adquirente o direito de se creditar do IPI relativo à operação correspondente, a desoneração degrada-se em simples diferimento do imposto, acarretando, até, aumento da carga tributária final, conforme se advertiu no julgamento do RE 353.668/PR:

“Negar o creditamento é negar que os efeitos da isenção, alíquota zero ou não-tributação intercorrentes alcancem o custo final do produto.

Nisso JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES é definitivo.

(…)

Não admitir para a hipótese de alíquota-zero e, mesmo, de não tributação, o que o STF reconheceu para a isenção, é inutilizar instrumentos de política governamental que, em nada, se diferenciam, quanto aos efeitos, da isenção.

Aliás, são mais ágeis.

A alíquota zero depende só de decreto.

A isenção, de lei.

As razões de decidir do RE 21.484 não se alteram.

A União não tratou o IPI no seu contexto macro” (do voto do Min. NELSON JOBIM).

A só nomenclatura, no contexto, não pode sobrepor-se aos efeitos do instituto. Doutro modo, bastaria ao legislador adotar a alíquota zero, por via de lei (verdadeira isenção), em etapas alternadas da cadeia produtiva, para se aniquilar a regra da não-cumulatividade do IPI, tornando-o cumulativo, com o agravo de se arrecadar mais do que se arrecadaria sem a concessão do que deveria ser “benefício fiscal”.

(…)

8. Quanto à alegação de ausência de lei específica que autorize o creditamento e de pretensa afronta ao art. 150, § 6º, da Constituição Federal, que a exige para concessão de “crédito presumido”, tampouco tem consistência.

Uma coisa é o direito à isenção, a alíquota zero e a não tributação; outra, o direito ao crédito do imposto relativo à aquisição de produtos isentos, não tributados, ou sujeitos à alíquota zero.

Os primeiros são espécies desonerativas (benefícios fiscais), que atingem a regra-matriz de incidência, enquanto o segundo apóia-se na regra constitucional da não-cumulatividade, que outorga ao sujeito passivo o direito subjetivo de suportar o encargo tributário proporcionalmente à sua participação no valor da cadeia produtiva.

Para que se concedam tais benefícios, a Constituição exige, em princípio, lei específica, como observou o Min. NELSON JOBIM, no julgamento do RE nº 353.668/PR, para evitar a inclusão, em projeto sobre outro assunto, de interesse do governo ou da maioria, de preceito destinado a beneficiar categorias, regiões ou situações particulares, mediante aprovação em bloco: “É uma regra limitadora indireta do direito parlamentar de oferecer emendas” (p. 668 do Ementário nº 2.114-4).

O direito ao crédito, esse repousa no art. 153, § 3º, II, da Constituição da República, e, como tal, não fica ao alcance do legislador ordinário, o qual carece de alternativa para o reconhecer, ou não. Diferentemente do ICMS, que também é não-cumulativo, a Constituição não contém restrição nem exceção alguma ao direito ao crédito que deva ser abatido pelo sujeito passivo do imposto.

Ambos impostos sujeitavam-se, aliás, ao mesmo regime de não-cumulatividade até à edição da Emenda Constitucional nº 23/83, antes da qual tanto a isenção, a alíquota zero, quanto a não-incidência davam ao adquirente o direito ao crédito (cf. Embargos de Divergência no RE nº 94.177, Rel. Min. DJACI FALCÃO, 01.12.1982). Ao propósito, recordou-se:

“Um ano após, os Estados, via Congresso Nacional, reagiram.

Era o problema, ainda de hoje, da Guerra Fiscal.

É promulgada a Emenda PASSOS PORTO (EC. 23, de 01.12.1983).

Ela alterou a redação do art. 23, II da EC nº 1/1969.

Acresceu, no final, a expressão “… a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele incidente nas operações seguintes;”

Caiu, assim, em relação ao ICM e exclusivamente a ele, a orientação do STF.

A isenção ou não-tributação intercorrentes, na cadeia produtiva relativa ao ICM, salvo se lei específica dispuser em contrário, passaram a não implicar crédito para compensação nas operações subseqüentes.

A constituição 1988 – no ICMS – foi mais longe.

A isenção ou não-incidência passou a ter dois efeitos:

a) o primeiro, igual ao de 1.983:

– continuaram a não implicar “crédito para a compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes” (CF art. 155, § 2º, II, a);

b) o segundo, uma novidade (mero complemento):

– passaram a acarretar “a anulação do crédito relativo às operações anteriores” (CF, art. 155, § 2º, Ii, b);


Nada se alterou quanto ao IPI” (do voto do Min. NELSON JOBIM, no RE nº 353.668, Ementário 2.114-4, p. 645).

Para o ICMS seria curial o raciocínio invocado pela União, pois o crédito de imposto decorrente de aquisição de produtos (mercadorias) isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero, traduziria benefício fiscal, enquanto expressamente excluída sua possibilidade pela Constituição (“II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação”… “a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;” – art. 155, § 2º, II, “a”, da CF).

Quanto ao IPI, entretanto, o direito ao crédito já se encontra previsto na própria Constituição, dentro do núcleo significativo da regra da não-cumulatividade. Se, aliás, tal direito relativo a aquisições isentas ou não tributadas não fosse conseqüência direta e linear da regra da não-cumulatividade, qual seria a razão por que foi, na Constituição mesma, aberta a exceção textual do art. 155, § 2º, II, “a”? Seria absurda exceção expressa a preceito cujo âmbito geral já a compreenderia!

9. Quanto à alíquota por aplicar neste caso e às conseqüências dessa atribuição, penso que tais matérias não foram ventiladas no recurso, de modo que se lhe encontrariam fora dos limites de cognição. Mas, porque não fiquem sem resposta, examino os argumentos suscitados a respeito nos memoriais.

Alega a União que, como não há lei específica que autorize o creditamento, nem alíquota aplicável à operação isenta, o reconhecimento do crédito importaria atuação “positiva” da Corte, pois seria mister fixar “valor” não previsto em lei.

O argumento funda-se em petição de princípio.

Se o direito ao crédito dependesse da previsão de lei ordinária, seria correto o raciocínio. Mas, como suponho haver demonstrado, esse direito nasce, em linha reta, da norma constitucional que proíbe seja cumulativo o IPI.

Uma das formas de garantir efetividade a essa regra constitucional é aplicar a alíquota, devida à saída dos produtos, sobre o valor dos que tenham sido adquiridos no processo produtivo (matérias primas ou insumos), porque se não anule a não-cumulatividade nessa etapa, nem se converta o benefício fiscal (isenção, alíquota zero, ou não-incidência) em simples diferimento do imposto. Não se trata, portanto, de nenhuma criação pretoriana, senão do resultado da intelecção e aplicação da norma constitucional que encerra uma finalidade e institui um limite objetivo.

A crítica à adoção da alíquota da saída para os produtos adquiridos, consoante a orientação jurisprudencial da Corte, no sentido de que tal procedimento significaria seletividade às avessas, por conceder crédito maior a produtos mais onerados, os quais pelo princípio da seletividade são os supérfluos, não constou do objeto do recurso extraordinário, mas apenas dos memoriais.

Incorre, porém, no mesmo vício de petição de princípio, porque supõe possibilidade de recuperação do encargo que teria incidido, se não fora o produto alcançado por benefício fiscal.

Explico. Se, por exemplo, o produto seja vendido por R$ 600,00, o valor do IPI corresponda a R$ 60,00 (10%), e a matéria prima custe R$ 200,00, há duas situações por considerar em relação ao encargo final:

i) matéria prima com benefício fiscal sem direito ao crédito vale R$ 60,00;

ii) matéria prima com benefício fiscal com direito ao crédito com base na alíquota de saída (10% = $ 20,00) vale $ 40,00.

No primeiro caso (i), o encargo financeiro abrange todo o valor relativo à primeira operação e, no segundo, apenas o valor acrescido pelo sujeito passivo, de acordo com a alíquota mais onerosa. Ou seja, a aplicação da alíquota à matéria prima não interfere na aplicação da alíquota seletiva ao montante agregado pelo sujeito passivo, que continua a assujeitar-se a esse valor.

10. Quanto à aplicação do art. 11 da Lei n° 9.779/99 ao caso, também suscitada pela União apenas nos memoriais, como argumento para negar a existência do direito ao crédito relativo aos produtos isentos, não tributados ou submissos à alíquota zero, saliento desde logo que a matéria não foi deduzida no recurso extraordinário, donde escapar-lhe ao âmbito de devolutividade.

10.1. De todo modo, não mereceria acolhida a objeção, pois recai sobre norma infra-constitucional, que, além de figurar hipotético objeto de mera inconstitucionalidade reflexa, não incidiria na espécie, ainda quando se supusesse vigente à data dos fatos da causa.

A decisão impugnada fundamentou-se no art. 153, § 3º, II, que prescreve à disciplina do IPI a observância do princípio da não-cumulatividade, “compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”, para garantir ao contribuinte o direito de se creditar do valor equivalente à aplicação da alíquota incidente nas saídas tributadas sobre o preço das matérias primas adquiridas (direito ao crédito).


O art. 11 da Lei n° 9.779/99, por sua vez, dispõe sobre o direito à manutenção do crédito, verbis:

“Art. 11. O saldo credor do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, acumulado em cada trimestre calendário, decorrente de aquisição de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, aplicados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à alíquota zero, que o contribuinte não puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos, poderá ser utilizado de conformidade com o disposto nos arts. 73 e 74 da Lei nº 9.430, de 1996, observadas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal – SRF, do Ministério da Fazenda.”

Eventual recurso a este dispositivo a título de fator condicionante da exegese da regra da não-cumulatividade, estampada no art. 153, § 3º, II, da Constituição, implicaria – esse, sim, procedimento hermenêutico às avessas – interpretação da Constituição conforme à lei e indevida restrição ao comando constitucional, mediante uso de norma inferior como parâmetro de interpretação constitucional e sem prévia discussão de sua natureza.

Porque fosse passível de reforma no âmbito deste recurso extraordinário, seria preciso admitir, antes, que a decisão impugnada teria contrariado disposições da Lei n° 9.779/99, coisa que, a todas as luzes, não cabe nos limites da cognição recursal.

10.2. Quanto à inaplicabilidade ao caso, noto que o art. 11 da Lei n° 9.779/99 tem por destinatário o adquirente de produtos tributados aplicados na industrialização de produtos “isentos ou tributados à alíquota zero”, e que a situação, aqui, é inversa: a aquisição é isenta, não tributada, ou sujeita à alíquota zero, mas a saída é tributada.

Noutras palavras, o presente recurso tem por objeto específico a questão constitucional da existência, ou não, do direito ao creditamento, em conta gráfica, do resultado da aplicação da alíquota atribuída ao produto vendido sobre o preço dos produtos isentos, não tributados, ou sujeitos à alíquota zero, ao passo que a Lei n° 9.779/99 regula a manutenção do crédito aos contribuintes que realizam vendas não tributadas, isentas, ou sujeitas à alíquota zero.

Não desconheço o fator econômico-financeiro, sublinhado pelo Min. NELSON JOBIM, no voto proferido no EDRE n° 353.668-1, em relação à diferença do impacto na cadeia produtiva, se adotado um ou outro entendimento quanto à aplicação da Lei n° 9.779/99, mas penso que tal análise foge à moldura deste recurso e da própria causa.

Como tenho insistido, a regra da não-cumulatividade do IPI (art. 153, § 2º, II) não contém, nem admite, por exegese, restrição como aquela que a Constituição prevê às expressas para o ICMS (art. 155, § 2º, II, “a” e “b”). Este o fundamento lógico-jurídico para o acórdão.

Como a restrição não pode adjudicada ao texto constitucional em relação ao IPI, tampouco pode criá-la o intérprete, notadamente sob o manto da não-cumulatividade, que vincula a tributação apenas ao que seja efetivamente agregado ao produto pelo contribuinte.

Partindo desta premissa, a Lei n° 9.779/99, que não foi discutida na causa, nem parece incidir de nenhum modo sobre os fatos, anteriores ao início de sua vigência, poderia ser avaliada de duas maneiras:

i) seria meramente declaratória, por reconhecer direito já previsto na Constituição Federal, e, nesse sentido, constituiria decorrência do decidido no RE n° 212.484 e no RE n° 350.446;

ii) mas, a não reputá-la meramente declaratória do preceito inscritoo no art. 153, § 3º, II, da Constituição (não-cumulatividade), teríamos de a considerar como fonte de benefício fiscal, à medida que permite a manutenção do crédito, ainda que as saídas sejam isentas, não tributadas, ou sujeitas à alíquota zero. E, quanto a benefício fiscal, em princípio, não haveria impedimento algum à sua concessão. Na verdade, conceder-se-ia aí novo benefício ao sujeito passivo que vende produtos isentos, não tributados, ou sujeitos à alíquota zero, porque, sobre não arcar com o impacto financeiro do que agregou à cadeia produtiva, também permanecerá com o crédito relativo à aquisição tributada.

Em qualquer hipótese, para saber aqui se aquela norma é, ou não, constitucional, seria indispensável ter havido prequestionamento a respeito e demonstração do paradigma de aferição em relação ao caso concreto, o que não ocorreu.

De todo modo, interpretar o disposto no art. 153, § 3º, II, à luz de tal dispositivo subalterno caracterizaria alargamento indevido do objeto do recurso extraordinário e, como já relevei, sobretudo interpretação constitucional conforme à lei, restringindo-se o alcance de norma constitucional a partir do texto da lei.

11. Do exposto, peço vênia ao eminente Min. Relator e aos que o acompanharam, para negar provimento ao recurso.

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