Voto vencido

Conheça o voto de Marco Aurélio contra a contribuição dos inativos

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15 de setembro de 2004, 17h10

Para o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, introduzir a título de contribuição um ônus nos salários dos aposentados, diminuindo seus proventos, significa ofensa à dignidade da pessoa humana. O posicionamento foi adotado pelo ministro na votação da contribuição de inativos no dia 18 de agosto.

Marco Aurélio acompanhou o voto da ministra Ellen Gracie, relatora da questão, pela não contribuição dos inativos. Também votaram no mesmo sentido os ministros Carlos Ayres Britto e Celso de Mello. O placar final, porém, foi pela contribuição dos inativos — 7X4.

O STF decidiu que é constitucional a cobrança do desconto de 11% de aposentados e pensionistas. Contudo, com o aumento do limite de isenção dos inativos para R$ 2,5 mil.

Leia a íntegra do voto de Marco Aurélio:

18/08/2004

TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.105-8 DISTRITO FEDERAL

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, confesso que não esperava defrontar com a matéria em debate. Desde a primeira hora, aprendi a confiar nos representantes do povo brasileiro, nos deputados federais e nos senadores da República.

Considerei, tão logo apresentado o projeto concernente à reforma da previdência, com a extensão ora verificada, que a Carta da República a todos sujeita indistintamente. O Estado tudo pode mas com estrita observância do que se encontra na Constituição Federal, diploma que submete o Executivo; que, sob a minha óptica, submete o Legislativo e o próprio Judiciário.

Como é normal toda vez que há alternância no Poder, vivemos uma época que enquadraria como de verdadeiro encantamento.

Os primeiros dias do mandato do novo governante são profícuos quanto à introdução de reformas que visem — dada uma certa política governamental, sempre momentânea, isolada — a consertar, com “c” e com “s”, o Brasil.

Nesse caminhar, olvida-se que vivemos em um Estado Democrático de Direito, levando em conta os parâmetros que, objetivando a segurança jurídica, necessitam ser respeitados.

Nós, hoje, no Supremo Tribunal Federal, ainda estamos no rescaldo dos incêndios provocados pelos diversos planos econômicos.

Os últimos dirigentes sempre chegaram ao Executivo com um plano milagroso. Notou-se, de uma forma constante, o predomínio da visão tecnocrata em detrimento da jurídica, como se, de uma hora para outra, pudessem simplesmente apagar o que estabelecido, atropelando situações constituídas, direito adquirido, para ter-se um novo regramento.

Senhor Presidente, situo a matéria em discussão e vejo que a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP atuou de maneira estratégica, vindo a submeter a esta Corte o que a ela pareceu, de imediato, mais conflitante com a Lei Maior.

Atacado é apenas o artigo 4º da Emenda nº 41, de 19 de dezembro de 2003. Um pesadelo, em si, para aqueles que, nos respectivos lares, pensavam que o Estado preservaria a conjuntura existente.

Preceitua esse artigo — e vemos que não está em jogo situação em curso, regime jurídico — a tese fascista — perdoem-me os que entendem de modo diverso — segundo a qual não há direito adquirido a regime jurídico, mas tão-somente casos legitimados, consoante a Carta de 1988, a lei máxima desta República.

Art. 4º Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

E aí o parágrafo único estabelece, como já glosado em votos, a distinção relativamente aos servidores inativos e aos pensionistas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, servidores e pensionistas da própria União.

O SR. MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – V. Exa. permite fazer uma distinção?

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Sim.

O SR. MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Ainda que se afirme a inexistência de direito adquirido a regime jurídico, não se pode negar esta verdade: há direito adquirido em qualquer regime jurídico, no interior dele. Seja o celetista, seja o estatutário.

Obrigado pelo aparte.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Imaginava-se encaminhar projeto de emenda constitucional ao Congresso, à época, Senhor Presidente, quando, entrevistado por um seriíssimo jornalista de um grande jornal de São Paulo – Fausto Macedo -, disse eu que vivíamos à luz de parâmetros contidos em um documento rígido e não flexível – a Constituição do País. Afirmei, então, que o menosprezo a direito adquirido, à situação jurídica perfeita e acabada, somente seria possível se o poder constituinte fosse um poder constituinte originário, e não derivado, como o que existe no Congresso, submetido às balizas do artigo 60. O jornalista, que não dominava e não domina o Direito, indagou-me: quando é que se tem o poder constituinte originário? E respondi que se estabelece o poder constituinte originário, que tudo pode, quando se desmembra uma fatia territorial, por exemplo, e se cria um novo país, uma nova nação; ou quando há uma revolução, imperando a força das armas, e não a força do Direito.


O jornal, para esquentar o conteúdo da entrevista, apontou que eu estaria a proclamar a conveniência de uma revolução para viabilizar a modificação substancial, a alcançar situações constituídas de aposentados e pensionistas.

A Revista Isto É, que circula esta semana, noticia a que ponto se pode chegar no desvirtuamento dos fatos, muito embora essa revelação não recupere o que perdido à época em que versados, de forma distorcida, certos acontecimentos – refiro-me ao caso Ibsen Pinheiro.

Senhor Presidente, na oportunidade da elaboração da Carta de 1891, caminhou-se, nas discussões, para a mitigação da aposentadoria e do instituto da pensão. Entretanto, voz altiva surgiu em prol da preservação de princípios, da ordem natural das coisas, apontando que era preciso preservar o instituto da aposentadoria e o da pensão. Refiro-me ao sempre lembrado mestre baiano Rui Barbosa. E, para afastar, inclusive, visões, à época, “moralizadoras”, distorcidas, proclamou ele, como fiz inserir no voto prolatado no Recurso Extraordinário nº 163.204-6/SP.

O cidadão, que a lei aposentou, jubilou ou reformou, assim como o a que ela conferiu uma pensão, não recebe esse benefício, a paga de serviços que esteja prestando, mas a retribuição de serviços que já prestou, e cujas contas se liquidaram e encerraram com um saldo a seu favor, saldo reconhecido pelo estado com a estipulação legal de lhe mortizar mediante uma renda vitalícia na pensão, na reforma, na jubilação ou na aposentadoria.

O aposentado, o jubilado, o reformado, o pensionista do Tesouro são credores da Nação, por títulos definitivos, perenes e irretratáveis.

Sob um regime, que afiança os direitos adquiridos, santifica os contratos, submete ao cânon da sua inviolabilidade o Poder Público, e, em garantia delas, adstringe as leis à norma tutelar da irretroatividade, não há consideração de natureza alguma, juridicamente aceitável, moralmente honesta, socialmente digna, logicamente sensata, pela qual se possa autorizar o estado a não honrar a dívida, que com esses credores contraiu, obrigações que para com eles firmou.

A aposentadoria, a jubilação, a reforma, são bens patrimoniais, que entraram no ativo dos beneficiados como renda constituída e indestrutível para toda a sua vida, numa situação jurídica semelhante à de outros elementos da propriedade individual, adquiridos, à maneira de usufruto, com a limitação de pessoas, perpétuas e intransferíveis.

Na espécie das reformas, jubilações ou aposentadorias, a renda assume a modalidade especial de um crédito contra a Fazenda; e, por isto mesmo, a esta não seria dado jamais exonerar-se desse compromisso essencialmente contratual, mediante um ato unilateral da sua autoridade.

Palavras suplantadas? Não, Presidente. Tenho em mão trecho dos debates ocorridos quando da elaboração da Carta em vigor, em face da proposta da Assembléia Nacional Constituinte de expungir do Diploma da República a referência a direito adquirido.

Disse Vossa Excelência, então constituinte Nelson Jobim, hoje Presidente desta Corte:

É fundamental que tenhamos a máxima atenção com relação à emenda fusionada de autoria dos Constituintes Agassiz Almeida e Ronan Tito, uma vez que se pretende suprimir do texto do § 4º, a expressão direito adquirido, e que está assim redigido:

A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.

Pretende-se que o texto passe a ter a seguinte redação:

A lei não prejudicará o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.

Objetiva-se, com isso, suprimir do texto constitucional a garantia de que a lei nova não retroagirá.

Sr. Presidente, Srs. Constituintes, é fundamental que se tenha presente que as Constituições brasileiras de 1824 e de 1931 diziam e proibiam, diretamente, – estou lendo o teor – a irretroatividade da lei, ao dizerem que era vedado prescrever leis retroativas. É o § 3º do art. 13 da Constituição de 1891.

Depois disso, por influências francesas, passou o texto a ser redigido de outra forma, e se levou em conta o problema do direito adquirido. Quando se diz que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, está-se dizendo que a lei nova não retroagirá.

Diz expressamente Pontes de Miranda, em seu Tratado:

O efeito retroativo, que invade o passado, usurpa o domínio de lei que já incidiu, é efeito de hoje, riscando, cancelando o efeito pretérito: o hoje contra o ontem, o voltar no tempo, a reversão na dimensão fisicamente irreversível.

Sr. Presidente, Srs. Constituintes, ao se suprimir a garantia do direito adquirido, estaríamos introduzindo, pela supressão, a possibilidade da retroatividade da norma legal, princípio hoje pacífico e patente no constitucionalismo americano e no sul-americano, como também nas regras de sobredireito existentes no Direito Continental.

Diz-se, e se dirá aqui, que as Constituições européias não prevêem no seu texto a proteção ao direito adquirido. Diz-se e se dirá aqui que somente as Constituições americana, mexicana e brasileira o elevaram a regra constitucional. Mas por uma razão muito simples – e o Sr. Relator sabe disso – é que a tradição constitucional nossa, americana e sul-americana é a regra de sobredireito estar esculpida no texto constitucional, e não pretender que a regra de sobredireito esteja colocada a um nível baixo da lei ordinária. O que temos que ter presente é que a Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 é anterior à Constituição de 34, — corrigindo-se a referência — que veio definir o problema do direito adquirido. Isso é o que precisamos ter presente, porque a retroatividade se caracteriza no seguinte – e eu pediria um breve instante de meditação — toda vez que se constitui um fato no mundo social e esse fato é uma hipótese de uma norma legal – no dizer de Pontes de Miranda – essa norma incide sobre o fato, e da eficácia da norma sobre o fato produz-se um direito que é o direito de quem tem a possibilidade de exercê-lo, ou não.


E continuou Vossa Excelência:

Ora, se isso é verdade, se antes da incidência da norma ao fato concreto, jurisdicionando-o e/ou “jurisdecisando-o”, tornando-o jurídico, produz-se no plano do Direito um efeito, que é o efeito de constituir um direito subjetivo para depois, no futuro, um ou dez anos depois, nova regra dizer que aquele fato não é mais fato gerador de direito, todo direito que se constituíra anteriormente teria desaparecido, porque estaríamos permitindo a retroeficácia da norma jurídica, ou seja, a incidência da norma jurídica em fatos constituídos anteriormente e o justo de ontem passa a ser o injusto de hoje, e o direito de ontem passa a não ser o direito de hoje. Isso fere substancialmente um dogma básico na estrutura jurídica. É preciso que tenhamos presente que o direito é uma técnica de controle social, que visa determinada fixação do trânsito social das individualidades e das coletividades futuras. Na medida em que admitirmos essa retroatividade, na medida em que a suprimirmos teremos a instalação da insegurança, porque ninguém mais terá condição de preestabelecer uma regra de conduta, porque estará sujeito ao dono do poder do momento, alterar o sistema jurídico e vir a mexer, a alterar substancialmente os direitos que se constituíram preteritamente.

A regra do direito adquirido não atinge, absolutamente, o problema do Direito Público. Aqui foi dito e se dirá que isto é uma forma de, suprimindo o dispositivo, possibilitar as negociações do Brasil com as multinacionais, no que diz respeito ao petróleo.

Foi aqui, nesta mesma tribuna, que tive a possibilidade de sustentar a necessidade nas relações, no que diz respeito à saúde da fixação dos contratos de Direito Público. E o nosso Direito já prevê que, nas relações jurídicas de Direito Público, a possibilidade unilateral da rescisão é algo assegurado à entidade pública, e, portanto, não vale o argumento.

O que se quer, em síntese, é alterar substancialmente uma tradição, que é célebre no Brasil, que pode possibilitar e assegurar a manutenção da ordem e a segurança jurídica, que é o compromisso desta Constituinte.

É por isso que clamo pelo não acolhimento da emenda e pela sua rejeição.

Poderia terminar o voto aqui e simplesmente proclamar que as normas em discussão conflitam, a mais não poder, com o direito adquirido, assegurado constitucionalmente, mas o dever de juiz leva-me a tecer considerações sobre a previdência no setor público e no correr dos anos, reportando-me ao texto primitivo da Carta, que não encerrava — e por isso mesmo não cabe falar em critério atuarial — o sistema contributivo. A aposentadoria, a satisfação dos proventos e de pensões sempre se mostrou ônus, em si, da União.

Na Carta de 1988, é certo, abriu-se margem à disposição, pelos Estados, visando o custeio da previdência local. Se formos ao texto primitivo, ao § 1º do artigo 149, já alterado pela Emenda Constitucional nº 41, constataremos que o sistema não seria elaborado em prejuízo, mas em benefício dos servidores. E, mais que isso, a contribuição deveria ocorrer em vista de dois objetos: a assistência social e a aposentadoria. Isso leva a crer, não fosse esse sentido sempre utilizado pelo legislador pátrio, que a contribuição deveria ficar a cargo de servidores na ativa.

Em 1993, veio à balha a Emenda Constitucional nº 03. Introduziu-se, então, no artigo 40, o § 6º, sobre o caráter contributivo, devendo os aposentados contribuírem para uma nova aposentadoria? A aposentadoria no além prescinde de contribuição, porque basta, para alcançá-la, a própria morte. Previu, sim, a Emenda Constitucional nº 03/93 a contribuição dos servidores na ativa. Houve, então, com a Emenda nº 20/98, um substancial avanço: afastou-se expressamente essa proclamação linear, segundo a qual não há direito adquirido a regime jurídico, não bastasse a Lei nº 8.112/90, a revelar que o regime jurídico — então único — dos servidores da União é o regime contratual, no que o artigo 13 preceitua que, quando da posse do servidor, será lavrado termo do qual constarão direitos e obrigações inalteráveis por qualquer das partes.

Disse eu que a Emenda nº 20/98 veio a desmitificar assertiva de não haver direito adquirido a regime jurídico, como se se pudesse brincar com o próprio homem, olvidando a dignidade assegurada pela Carta da República. Refiro-me aos §§ 14, 15 e 16 introduzidos no artigo 40. Viabilizou-se, mediante o § 14, a adoção do teto, quanto a proventos e pensões, relativo aos trabalhadores em geral, à previdência social. Dispôs-se que a adoção desse teto por União, Estados e Municípios necessitaria da criação da previdência complementar, para aplicar-se aos servidores já integrados ao sistema, às situações jurídicas em curso. O legislador, no entanto, não parou aí com a Emenda nº 20/98; ele foi adiante e, observando os ditames constitucionais, previu, no § 16, que a integração ao novo sistema dependeria da manifestação expressa do servidor – foi pedagógico o legislador. Leio a norma, que não foi alterada pela famigerada Emenda Constitucional nº 41/2003:


§ 16 Somente mediante sua prévia e expressa opção, o disposto nos §§ 14 e 15 poderá ser aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar.

O que é isso senão a admissão do direito do servidor ao respeito ao regime jurídico presente quando da arregimentação? Submeteu-se ele a um concurso público, confiando nas balizas oferecidas para a prestação dos serviços.

Precisamos distinguir – porque o Direito é uma ciência, possui institutos, vocábulos com sentido próprio – o servidor ativo do servidor inativo; o servidor ativo/servidor inativo do pensionista ou, na maioria das vezes, da pensionista.

Não podemos, sob pena de grassar a babel, confundir expressões e partir para o significado dessas expressões segundo, como apontei, a política governamental em curso, a quadra vivida.

O ministro Néri da Silveira, que durante um bom período teve assento na cadeira que está à minha direita, sempre proclamou que o Supremo Tribunal Federal, como guarda da Carta da República, é um Tribunal compromissado com princípios que são perenes, com política institucional – no bom sentido, refiro-me à palavra “política” – que consagre, em si, esses princípios.

A aposentadoria visa à ociosidade, considerado o serviço público, respeitando-se o previsto no tocante à satisfação de proventos. Não podemos, no campo tributário, desprezar a natureza jurídica do que serve a manter hoje, no sistema contributivo, a própria previdência social, e aí — perdoe-me quem sustenta o contrário — desconhecer o que Sacha Calmon afirma como natureza comutativa e sinalagmática da própria relação jurídica Administração Pública, Estado e servidor aposentado.

O SR. MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Vossa Excelência me permite um aparte?

No meu voto, deixei claro que, embora não se possa de todo afastar o caráter tributário da contribuição previdenciária, é preciso, no entanto, vê-la não como ortodoxa figura de Direito Tributário. Há peculiaridades que fazem dessa contribuição um instituto especialíssimo. É o único direito —— a aposentadoria e a pensão —— para cujo gozo o servidor público despende recursos do seu bolso. Ele entra numa relação jurídica tricotômica: de um lado, contribuição; de outro lado, retribuição; por um terceiro lado, paridade entre os vencimentos e os proventos, ou entre os vencimentos e a pensão que vier a ser concedida. E tudo isso garantido duplamente pela cláusula da irredutibilidade, que está noS artigos 37 e 194, IV.

E, como disse Celso Antonio Bandeira de Mello, se não bastasse a questão do direito adquirido, seria um direito adquirido qualificado pelo fato de sua transformação em ato jurídico perfeito. Lembro-me de que o Ministro Sepúlveda Pertence, sem querer comprometê-lo com esta minha tese —— tenho esse cuidado de dizer ——, foi muito feliz ao falar da irredutibilidade enquanto modalidade de direito adquirido, ou seja, é um direito adquirido qualificado, acrescentando algo ao direito adquirido. A irredutibilidade, parece-me, no pensar do Ministro Sepúlveda Pertence, é um “plus” em relação ao direito adquirido puro e simples. Espero não estar traduzindo mal o pensamento de Sua Excelência, a quem tanto admiro.

E Celso Antonio Bandeira de Mello, num parecer, que tenho como primoroso, que chegou às nossas mãos por intermédio da CONAMP, confirma exatamente o que diz no seu livro “Ato Administrativo e Direito dos Administrados”, lido pelo eminente Ministro Eros Roberto Grau, confirmando aquilo que sabemos de Celso Antonio. Não há contradição no fato de Celso Antonio pensar juridicamente por meio de um parecer ou pensar por meio de uma monografia. Nele há sempre uma coerência que faz dele um dos mais luminosos e definitivos juristas deste País.

De sorte que agradeço ainda uma vez o aparte a mim concedido, concordando com o pensamento que Vossa Excelência vem desenvolvendo até agora.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, no caso da contribuição criada, tivemos até a sinceridade dos dirigentes, porque se apontou, de uma forma categórica, que ela visa – da mesma forma que o IPMF/CPMF à salvação da saúde – à salvação da previdência social.

Ora, para fazer caixa, é possível, sem uma contraprestação, lançar mão da contribuição? Não, Presidente. A exação que se cobra, hoje em dia, surge, a meu ver, como um verdadeiro imposto.

E, neste julgamento, fixarei um ponto de vista sobre um outro instituto que será considerado pela Corte, mais dia ou menos dia, numa evolução da própria jurisprudência. Refiro-me ao confisco. Num levantamento feito, deparei com um rol de 37 tributos hoje existentes no Brasil, por coincidência, perfazendo, no caso, 37% do Produto Interno Bruto.


O confisco precisa ser manejado por esta Corte no contexto da carga tributária, e não mais apenas tributo a tributo. Há de perquirir-se se há confisco, ou não, tendo em conta a exacerbação da carga tributária – hoje, um dos maiores empecilhos para o crescimento da nação e criação de empregos para os jovens projetados no mercado ano a ano.

Há mais, Presidente. Publicação recente revelou uma simulação da carga tributária direta e indireta. Teve-se presente uma família com renda mensal de R$ 2.500. A publicação é de revista de grande circulação no território nacional, do mês de junho, se não me falha a memória. Esclareceu-se que, desses R$ 2.500, R$ 531 mensais são gastos em tributos e contribuições diretos; R$ 390 em tributos indiretos; e R$ 740 em despesas com saúde e educação, que deveriam ser providos pelo próprio Estado. Uma família com renda mensal de R$ 7.500 paga R$ 2.006 mensais em tributos e contribuições diretos; R$ 1.110 em tributos indiretos; e R$ 1.680 em dispêndios com saúde e educação, que, repito, deveriam ser custeados pelo Estado. Um total de R$ 4.796, ou seja, 63,9% da renda familiar.

Há aqui configurado um verdadeiro confisco, no que, a par de não se repor o poder aquisitivo dos benefícios, dos vencimentos dos servidores, tem-se a audácia, digo mesmo a audácia, de onerá-los.

Desejo parafrasear, também, o ministro Gilmar Mendes com uma inversão. Diante do quadro, notamos a soma de infelicidades para aqueles que hoje estão aposentados e para aqueles que hoje recebem pensão.

A Carta de 1988 vigora, até hoje — e vigorou, portanto, surgindo daí um direito no patrimônio dos trabalhadores em geral –, com um preceito que obstaculiza a incidência da contribuição sobre proventos e pensões. Refiro-me ao inciso II do artigo 195. E a Emenda Constitucional nº 41 não aboliu do cenário jurídico o dispositivo do artigo 40, o § 12, que determina a observância dos parâmetros da previdência geral relativamente aos servidores.

Há mais, Presidente. Esta Corte conta com uma jurisprudência sumulada a respeito da segurança jurídica. Refiro-me ao Verbete nº 359, consoante o qual a aposentadoria é regida pela legislação em vigor na data em que atendidos os requisitos fixados em lei, constantes da legislação ordinária e, acima de tudo, da Constituição Federal, que está no ápice da pirâmide das normas jurídicas.

Ter-se-á, em relação a esses servidores — e repito aqui, voltamos ao estágio anterior, a 1988, a nos mostrar que, com a passagem do tempo, paulatinamente, ocorria a diminuição dos proventos –, a esses aposentados, pensionistas, um decesso; sofrerão uma diminuição de onze por cento do que percebido. As incoerências, a meu ver, saltam aos olhos. Aposentados da União que não contribuíram e se aposentaram sem contribuir – se vivos – virão a contribuir. Também aqueles que usufruem pensão e os detentores da imunidade constitucional — introduzida pela Emenda Constitucional nº 20/98, a qual incentivou a permanência no serviço –, que estão na ativa hoje, e, portanto, não contribuem, se resolverem se aposentar, virão a contribuir. Da mesma forma, aqueles que hoje têm, para compensar essa maldade feita num mês de festas, o mês de dezembro, o abono igualizado ao tributo incidente.

Presidente, diria que se deu uma no cravo e outra na ferradura. A Emenda Constitucional nº 41/03 preservou os parâmetros alusivos aos proventos quanto à quantia a ser observada; preservou, como deveria ocorrer, em vista do instituto do direito adquirido, as pensões que vinham sendo usufruídas. De outro lado, porém, rasgando a Carta da República, desconhecendo a norma do artigo 60, surpreendendo aqueles que se encontravam nos respectivos lares, certos do respeito às regras da aposentadoria, às regras da pensão, criou essa contribuição que, a todos os olhos, não é uma contribuição; criou esse ônus referente ao “custeio”, visando ao “custeio” da própria previdência. Ou seja, talvez para minimizar o rombo da previdência social e da previdência dos servidores públicos, principalmente da União – que, certamente, não foi provocado pelos servidores públicos e, por isso mesmo, não podem ser tidos os aposentados e pensionistas como bodes expiatórios -, criou-se o tributo, rotulando de contribuição, e contribuição não é.

Ao ser aprovada e, diria mais, ao tramitar a PEC que deu origem à Emenda Constitucional nº 41/03, olvidou-se o § 4º do artigo 60 da Constituição Federal, segundo o qual não será objeto de deliberação — porque se cobra seriedade dos representantes do povo — a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Presidente, precisamos preservar a Carta da República para, realmente, constatar que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a cidadania, a pressupor uma vida gregária sob ordem, e a dignidade da pessoa humana. Volto a afirmar que o Estado tudo pode, mas desde que proceda com observância irrestrita ao que se contém na Constituição Federal. E, a esta altura, introduzir, quanto a servidores que estão aposentados há um, dois, três, quatro, cinco, dez, quinze anos, ou mais, a título de contribuição, um ônus, diminuindo-se-lhes os proventos, é algo que conflita frontalmente com a nossa Constituição Federal e implica, até mesmo, ofensa à dignidade da pessoa humana. O que se dirá relativamente a pensionistas?

Peço vênia aos Colegas, para acompanhar a relatora, declarando a inconstitucionalidade do artigo 4º como um todo, julgando procedente, portanto, o pedido inicial.

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