Anaconda Mãe

No Brasil, Anaconda repete história francesa do caso Dreyfus.

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13 de setembro de 2004, 14h40

Naquela manhã, típica do mês de outubro, o mundo desabou sob seus pés ao sentir o peso de uma acusação de ter acobertado a ação de inimigos do Estado, passando-lhes informações sigilosas. Ele era um jovem funcionário público, estudioso, com um futuro promissor, embora fosse de origem semita — e semitas são os judeus, os árabes, os aramaicos.

As provas contra ele eram extremamente frágeis. A maior evidência resumia-se a um documento que, segundo análise feita por três peritos, vinculava-o “irrefutavelmente” ao crime.

O caso ganhou rapidamente as manchetes dos jornais. Linchado pela imprensa, pilhado em sua dignidade, o jovem funcionário insistia em alardear sua inocência.

Mesmo assim foi levado a julgamento. O processo era sigiloso, mas os jornais continuavam divulgando a acusação e a campanha de linchamento público. O caso seguia em direção a uma condenação inapelável.

E para justificar a condenação, espalhavam-se boatos e deixava-se vazar para os jornais a existência de um documento nos autos, secreto, arrasador, um documento que não se podia publicar. Na verdade, valiam as informações e a “comunicação secreta”, fora dos autos e a portas fechadas, entre os acusadores e os juízes, sem o conhecimento da defesa. Invocavam-se as “razões de Estado”.

De nada adiantavam as provas da defesa e, para o acusado, tudo era crime, tudo o incriminava e comprometia. Por conhecer outro idioma: é um crime; algumas vezes visita sua terra: é um crime; tem ânsia de saber: é um crime. Tudo é crime, sempre crime.

Outro agente do Estado, revendo as provas de modo imparcial, descobriu sem muito esforço o verdadeiro criminoso. Nada. A “intelligentsia” recusava-se a rever sua posição, pois reconhecer publicamente o erro equivaleria a uma desmoralização, um enfraquecimento das instituições.

Determinados, a esposa do servidor e um pequeno grupo de pessoas que acreditavam em sua inocência iniciaram uma empreitada de esclarecimento público sobre a injustiça do processo.

O caso acabou por dividir a opinião pública. De um lado, aqueles que acreditavam na inocência do jovem servidor. Defendiam os direitos individuais e o respeito pelo indivíduo. De outro, o grupo dos que queriam sua condenação, composto por anti-semitas, funcionários públicos e outros que acreditavam que ele deveria ser sacrificado em nome de algo maior, pois “o bem coletivo está acima do individual” (l´individu ne doit pas primer l´État).

A manifestação pela inocência do jovem funcionário acabou ganhando impulso quando um jornal publicou em destaque, no dia 13, um artigo contendo a opinião corajosa de um homem dotado de um grande senso de justiça, que denunciou a iniqüidade que estava sendo cometida.

A questão trouxe à tona, de forma crua, arrebatadora, um Judiciário podre e decadente, subserviente e submisso à acusação. Mais que isso, revelou a capacidade humana em cometer injustiças, revelou personalidades covardes, pusilânimes e omissas. Algumas dessas figuras, agentes do erro judiciário, destacaram-se e acabaram sendo “acusadas” no artigo publicado:

Um deles, por suas maquinações insanas e culpadas.

Dois deles, por haverem fabricado uma informação infame, parcialmente monstruosa, na qual o segundo lavrou o imperecível monumento de sua torpe audácia.

Outros dois, por tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um por fanatismo e o outro por espírito de corpo.

Também foram “acusados” três peritos, por seus pareceres enganadores e fraudulentos.

Um outro ainda foi “acusado” por haver feito na imprensa uma campanha abominável, enganando a opinião pública.

Outros também foram “acusados”, por tornarem-se cúmplices, ao menos por fraqueza, de uma das maiores iniqüidades do século, e especialmente um deles, por haver tido em suas mãos as provas da inocência e não as haver utilizado.

Também foi “acusado” todo um órgão colegiado, por ter condenado alguém com fundamento em informações secretas.

Por fim, foi “acusado” um segundo órgão colegiado, por haver coberto toda esta ilegalidade.

E toda a questão entrou para a história. Porque este, caro leitor, é o resumo de um caso que abalou a França no final do século XIX e ficou mundialmente conhecido como O Caso Dreyfus.

O jovem funcionário público era Alfred Dreyfus, um Capitão do Exército francês, de origem judaica, injustamente acusado de passar informações sigilosas ao governo da Alemanha em troca de compensações financeiras.

O “homem conhecido por seu senso de justiça”, que denunciou num jornal a iniqüidade do processo (sob o título J’Accuse! – Eu acuso!), não era ninguém menos que o famoso escritor francês Émile Zola.

O tenente-coronel Georges Picquart foi quem, revendo as provas, descobriu o verdadeiro criminoso. Por sua insistência pela verdade, acabou sofrendo fortes retaliações.

Outros heróis surgiram e marcaram a história, como o jovem escritor Bernard Lazare e o Grande Rabino da França Zadoc Kahn, além de advogados, jornalistas e políticos de destaque.

O “cavalete de tortura” do capitão Dreyfus começou em 13 de outubro de 1894, quando recebeu uma convocação para comparecer ao gabinete do Chefe de Estado-Maior, onde posteriormente foi acusado e preso.

De lá para cá, 110 anos se passaram. Mas a história sempre se repete.

O eminente advogado e desembargador federal aposentado Américo Masset Lacombe escreveu um artigo — publicado exatamente no dia 13 pela Folha de S. Paulo — intitulado “A Balança e a Espada”, no qual apontou, destemidamente, os erros e as iniqüidades de um famigerado caso, um processo iniciado em 13 de outubro, que está em curso na Justiça Federal de São Paulo. Neste processo figuram como acusados, dentre outros, dois juízes federais, Casem Mazloum e Ali Mazloum. Dois homens de família e de fé. Sim, de fé! Muçulmanos, descendentes de árabes. Porém brasileiros, dignos, patriotas, que dariam suas vidas por este país!

A injustiça desse processo contra os Mazloum também foi denunciada em outros jornais, revistas e artigos publicados inclusive na mídia eletrônica (“A gula da cobra”, Revista Istoé n. 1809; “Operação Anaconda – Fatos que a imprensa ignorou”, artigo do insigne Promotor de Justiça da Cidadania Marcelo Duarte Daneluzzi; e “Uma visão crítica da Operação Anaconda”, do nobre advogado Romualdo Galvão Dias, Corregedor do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP).

Em relação a ambos os magistrados, meus irmãos, propalou-se a acusação de “venda de sentenças”. Mas até hoje os acusadores não se dignaram em apontar nos autos do processo ou em vir a público revelar qual sentença eles venderam afinal. Nada!

A imprensa — sobretudo a tal “imprensa investigativa” — jamais se deu ao trabalho de questionar os acusadores qual sentença eles venderam. A exceção única ficou por conta de uma matéria da jornalista Rita Magalhães, do Jornal da Tarde. Acossada pela insistência da jornalista, a procuradora regional da República Janice Agostinho Barreto Ascari rendeu-se e, finalmente, reconheceu que os juízes Mazloum não venderam qualquer sentença (Jornal da Tarde, 23 de junho de 2004, página A-12).

A verdade é que os juízes Casem e Ali Mazloum não venderam e nem são acusados de vender sentença.

Orgulho-me de minha família. Orgulho-me dos meus irmãos Casem Mazloum e Ali Mazloum, juízes decentes e corajosos, que jamais se curvaram a interesses e pressões da mídia, do Ministério Público ou de advogados. Sempre julgaram como um juiz deve julgar: segundo a lei e sua consciência.

Querem condenar Casem Mazloum pela acusação ter sido contemplado com passagens para o Líbano, embora tenha comprovado documentalmente tê-las adquirido?

Querem condenar Casem Mazloum por ter “engendrado” um grampo telefônico que, comprovadamente, jamais foi realizado (ouvido em juízo, o delegado que atuou nas investigações disse ter apurado que grampo algum foi feito)?

Querem condenar Casem Mazloum pela ridícula (sim, ridícula!) acusação de falsidade na declaração de imposto de renda, embora reste evidente tratar-se de um simples e corriqueiro erro de digitação? Por que essa opção pela interpretação que mais prejudica, aquela que conclui pela má-fé? Porque não se admite cuidar-se de mero erro de digitação? Por que esse tratamento diferenciado?

O que dizer então da também ridícula acusação de uso de placa reservada? Querem condenar Casem Mazloum por algo lícito? Casem recebeu a placa reservada de um órgão público, para sua segurança pessoal (diz a acusação que o objetivo era evitar multas de trânsito)! Centenas de juízes, promotores, procuradores e desembargadores usam também placas reservadas (sem falar nas placas de bronze), obviamente também para segurança pessoal! Por quê esse tratamento diferenciado?

Por quê agarra-se e opta-se sempre e sempre pela interpretação que mais prejudica, aquela que conclui pela má-fé? Por quê esse tratamento diferenciado, personalizado?

Ali Mazloum. Querem condená-lo porque, como juiz natural, exigiu a integralidade das provas de um processo que presidia? Ali Mazloum agiu como qualquer juiz, cioso de suas responsabilidades — dentre as quais garantir o devido processo legal e o princípio constitucional da ampla defesa do réu — procederia (diz a acusação que Ali, com isto, tencionava “proteger os interesses da quadrilha”). Por quê esse tratamento diferenciado? Por quê se opta sempre pela interpretação que prejudica, que leva à conclusão de má-fé?

Por quê sempre esse tratamento diferenciado, personalizado e sob medida para meus irmãos?

Meus irmãos, quadrilheiros? Casem, porque fotografado ao lado de outros investigados numa festa de casamento… Ali, nem isso… Mas tudo e qualquer coisa em relação a eles é “comprometedor”.

Assim como no Caso Dreyfus, tudo é crime, sempre crime. Assim como no Caso Dreyfus, sempre a convicção preestabelecida e soberana de culpa e má-fé dos juízes Casem Mazloum e Ali Mazloum.

A história se repete. Sempre se repete. Está sendo escrita neste exato momento. Mas a história jamais foi complacente com aqueles que cometeram injustiças ou que permitiram, de alguma forma — por indiferença ou covardia — que ela prevalecesse. A história não compadece com os injustos. Povo algum jamais foi e nem nunca será indulgente com a barbárie e a iniqüidade.

Mas o homem teima em cometer sempre os mesmos erros, a repetir sempre as mesmas falhas que levam sempre às grandes injustiças. Disso resulta que haverá sempre um Capitão Dreyfus, vale dizer, existirão sempre inocentes sendo acusados por crimes que não cometeram.

Mas se é assim, a esperança que fica é que, com certeza continuam também a existir entre nós pessoas que encarnam os espíritos nobres e corajosos, de caráter firme e senso de justiça, de Émile Zola e Georges Picquart, sempre prontos para realizar gestos de coragem e firmes em apontar as mazelas e injustiças do sistema judiciário, um escrevendo em algum jornal, num dia 13 de um mês qualquer, a opinião denunciadora da acusação vergonhosa, outro apontando os verdadeiros criminosos após a revisão imparcial da prova infame.

*A charge acima foi publicada na época — parte da campanha de difamação e linchamento público — retrata o Capitão Dreyfus na forma de uma cobra.

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