Dívida judicial

Governo prefere lei do credor com maior poder de retaliação

Autor

  • Joaquim Falcão

    é professor de Direito Constitucional e Diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro vice-presidente do Instituto Itaú-cultural e ex-membro do Conselho Nacional de Justiça.

12 de setembro de 2004, 9h05

O governo federal pretendeu que os empresários pagassem a conta. Propôs aumento de 0,6% na alíquota da contribuição previdenciária das empresas para fazer caixa e pagar a 1,88 milhão de aposentados o direito, reconhecido pela Justiça, à correção de até 39,7% sobre aposentadorias concedidas entre 1994 e 1997, por ocasião da vigência da URV. A reação foi tamanha que o governo recuou. Segundo Guido Mantega, esta despesa será enfrentada a curto prazo com o excesso da arrecadação. Em 23 de julho, o Presidente assinou medida provisória dispondo sobre o procedimento para o pagamento deste débito, que começa em 2005.

Esta questão se arrasta há mais de sete anos dentro do Poder Judiciário. Hoje, coloca-se como urgente. Nos últimos meses, os aposentados procuraram em massa a Justiça e obtiveram mais de 120 mil sentenças determinando a correção. Os tribunais estimam que, até o final do ano, outras 617 mil ações terminem favoravelmente aos aposentados. Esta corrida à Justiça fez com que o orçamento previsto para pagar os débitos do governo federal nos juizados, inicialmente calculado em R$948 milhões, fosse completamente consumido ainda em maio. A Justiça Federal pediu ao Ministério da Fazenda crédito suplementar de R$4,5 bilhões.

Se não pagar em 60 dias após a requisição judicial, o artigo 17, §2º da Lei 10.259/01 prevê o seqüestro do numerário suficiente à quitação da dívida. Sem o acordo, não seria de todo impensável que, a partir de agosto, juízes federais decretassem o seqüestro da receita do INSS para o governo cumprir a lei e a constituição. Como todos sabem, nos juizados especiais inexistem precatórios. Nas causas até 60 salários-mínimos, caso perca, o governo tem que pagar imediatamente.

Este caso evidencia aos governos, à mídia, aos empresários e a milhões de brasileiros uma realidade latente e, até agora, teimosamente ignorada. Ao lado da dívida pública e da dívida social, o governo tem outra importante dívida para com a sociedade: dívida judicial. Adiada, camuflada, e alimentada na lentidão do Poder Judiciário. Quando, como neste caso dos aposentados, que é apenas a ponta do iceberg, a Justiça é rápida e eficiente, o débito vem à luz.

Qual o seu valor exato? Ninguém sabe. Provavelmente nem mesmo o governo. Inexiste um sistema de estatísticas judiciais adequado. Criá-lo é uma tarefa que os novos presidentes do STF e STJ consideram prioritária.

Para que o governo não viva de sobressaltos a cada decisão do Judiciário mais ágil, conviria formular uma avaliação realista de seus débitos e desenhar uma estratégia preventiva e de longo prazo. Os juizados do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por exemplo, cada vez mais informatizados e com jovens juízes mais preparados, foram capazes de julgar 171.830 ações nos últimos 12 meses (72.417 sobre questões previdenciárias). Suas sentenças finais levam em média apenas nove meses para serem prolatadas. Uma simples análise de custo e beneficio mostra que o aposentado receberá mais e mais rápido indo à Justiça do que aceitando a proposta inicial do governo, que foi de pagar em até 8 anos.

Ao desenhar sua estratégia, o governo teria de considerar três tipos de dívida, segundo sua origem: dívida originaria da política econômica, a dívida dos precatórios e a dívida recorrida.

A da política econômica foi causada sobretudo por planos monetários e aplicações inconstitucionais de índices. Vem do passado mas se renova a cada pretensão de reforma como agora com a reforma da previdência. Só o débito referente à correção do FGTS – ainda não integralmente quitado – já custou cerca de R$28 bilhões. A dívida referente à questão da URV chegará ao valor aproximado de R$12 bilhões. Sem falar das que podem surgir da correção das cadernetas de poupança no Plano Verão, e outras.

A dívida judicial oriunda dos precatórios divide-se em duas: referente aos precatórios em dia ou aos atrasados. Precatório é um financiamento compulsório que o detentor de um direito reconhecido na Justiça dá ao governo-devedor. O governo de São Paulo, por exemplo, tem cerca de 10.000 atrasados. No Rio, as dívidas decorrentes de precatórios chegam quase a um bilhão de reais. Não pagá-los, atrasá-los , não cumprir a lei estimula a irresponsabilidade governamental. Atenta contra o ideal de celeridade e eficiência na prestação de Justiça.

Finalmente, existe também a terceira dívida judicial, de origem recursal. Está embutida em milhões de pleitos individuais contra prefeituras, governos estaduais, previdências. Pleitos nos quais o governo já perdeu em instâncias superiores, a jurisprudência já está firmada, mas que se arrastam nos tribunais através da estratégia de se recorrer a qualquer preço. O governo apela e ganha tempo, financiando seu caixa às custas do contribuinte. No caso, recorrer é financiar.

A dívida judicial está cada dia mais nítida. Inclusive para empresários e investidores estrangeiros. Não pagá-la é enviar ao mercado uma mensagem: as instituições jurídicas e econômicas não funcionam. Paga-se àqueles que pressionam mais. Vale a lei do credor com maior poder de retaliação. Os aposentados são os últimos, acredita-se. Sobe o custo Brasil. Sem enfrentar a questão da dívida judicial, dificilmente será construído o ambiente propício à estabilidade econômica e aos investimentos de longo prazo de que o país necessita.

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    é mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA), doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), professor de Direito Constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ, e membro do Conselho Nacional de Justiça.

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