Regras do jogo

Não existe exclusividade da Polícia em investigações criminais

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11 de setembro de 2004, 7h10

Em dois artigos anteriores(1) (2), procurei demonstrar que não existe princípio no direito brasileiro que impeça a investigação de crimes diretamente pelos órgãos do Ministério Público. Da mesma forma, as regras contidas no artigo 144 da Constituição, se bem compreendidas, não asseguram às polícias qualquer exclusividade na investigação criminal.

O art. 144, §1°, IV, da Constituição assevera que a Polícia Federal se destina a «exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.» É desse dispositivo que se tem erroneamente concluído que somente a polícia poderia realizar investigações de natureza penal, função que estaria vedada aos membros do Ministério Público.

Acontece que, ao falar em «funções de polícia judiciária», no inciso IV, a Constituição não abrange a apuração de crimes, que vem prevista no inciso I, sem a cláusula de exclusividade. Senão, vejamos:

Art. 144. (…)

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/06/98)

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II – (…)

III – (…)

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

Vê-se, pois, que a Constituição distinguiu entre a função de apuração de crimes e a função de polícia judiciária. Ao tratar das Polícias Civis, no § 4° do mesmo artigo, a distinção é repetida, asseverando-se que lhes incumbem «as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares»

Tal compreensão tem reflexos evidentes para o tema em apreço, uma vez que a exclusividade foi mencionada apenas no inciso IV, relativo às funções de polícia judiciária e não no inciso I, que trata da apuração de infrações penais. Do ponto de vista hermenêutico, em face da clara distinção adotada pela Constituição, enfatizada por duas vezes, não se admite embutir a apuração das infrações na função de polícia judiciária, como usualmente se faz, com a conseqüência de lhe estender a cláusula de exclusividade. Onde a lei distingue, não cabe ao intérprete confundir!

Destacada a apuração de infrações penais, a função de polícia judiciária, ao menos no direito constitucional pátrio, deve ser entendida de forma mais restrita, circunscrita à colaboração das forças policiais com o Poder Judiciário no curso do procedimento penal, abrangendo o cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão e a realização de perícias e de outras diligências.(3)

Assim, a função de apuração de crimes (art. 144, §1°, I) não foi destinada às polícias com exclusividade, no mesmo espírito com que a matéria sempre foi tratada no âmbito legislativo. Não é demais lembrar que o Código de Processo Penal, no seu art. 4°, parágrafo único, estabelece que a competência da polícia judiciária «não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.» Como se tem salientado, a tese da exclusividade da polícia, se acatada, para além de prejudicar o trabalho desenvolvido pelo Ministério Público, teria efeitos deletérios também na atividade de outros órgãos administrativos que se dedicam à apuração de ilícitos penais, como os setores próprios da Receita Federal e do Banco Central.

Outro argumento de ordem constitucional contra a exclusividade é o fato de a menção figurar apenas no parágrafo referente à Polícia Federal. Não se repete no § 4°, que trata das Polícias Civis. Ora, se a exclusividade da polícia nas investigações é, como querem, princípio basilar do processo penal e mesmo garantia dos investigados, por que valeria apenas para a esfera federal, desprestigiando, outrossim, o princípio federativo da simetria das formas?

Finalmente, não se destinando a afastar das investigações nem o Ministério Público, nem outros órgãos que desempenhem essas funções, a menção à exclusividade, no art. 144, §1°, IV, tem como único objetivo impedir a atuação das Polícias Civis na esfera federal, intuito que é completado pela ressalva da competência da União existente no §4°. Nesse sentido, escreveram Lenio Streck e Luciano Feldens: «Logicamente, ao referir-se à ‘exclusividade’ da Polícia Federal para exercer funções ‘de polícia judiciária da União’, o que fez a Constituição foi, tão-somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar), razão pela qual observou, para cada uma delas, um parágrafo dentro do mesmo art. 144.»(4)

Seja pelo ângulo dos princípios jurídicos, seja por aquele da exegese constitucional, não existe exclusividade das polícias nas investigações. A polêmica sobre o poder investigatório do Ministério Público, que consegue surpreender profissionais e especialistas estrangeiros, somente pôde vicejar no Brasil como resultado da reação da corrupção contra uma das maiores inovações da Carta de 1988: um Ministério Público e uma Justiça independentes, efetivamente capazes de combater o crime.

Notas de rodapé:

1.O poder investigatório do Ministério Público » in Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União. Brasília : ESMPU, Ano II, , n. 8, jul./set. , 2003.

2.Investigação pelo MP : a questão da imparcialidade » , publicado no site Consultor Jurídico.

3. As idéias aqui desenvolvidas foram veiculadas pela primeira vez em mensagem eletrônica que dirigi à rede nacional dos Procuradores da República, no dia 16 de outubro de 2003.

4. Crime e Constituição, Forense, 2003.

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