Pela culatra

Autora de ação contra Globo e Glória Perez é multada por má-fé

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6 de setembro de 2004, 17h41

A TV Globo e a escritora Glória Perez não precisam indenizar a autora de Um Clone bestial, Regina Luzia Lucas da Gama, por plágio. A decisão é do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que multou a autora da ação por litigância de má-fé. Ainda cabe recurso.

Regina entrou com ação na Justiça pedindo R$ 500 mil de indenização, mais 50% da receita bruta obtida com a veiculação da novela O Clone no Brasil e no exterior, além de 30% da receita publicitária. Também pediu a suspensão da exibição da novela no exterior. O TJ do Rio rejeitou o pedido.

“Não houve, por parte da autora da novela, qualquer traço de inspiração no livro escrito pela apelante que, de resto, é obra de baixa qualidade literária e que não dispõe de conteúdo narrativo que possa ser equiparado à trama da obra televisiva. Com efeito, a novela — exceto quanto à coincidência de que o clone foi produzido por indução genética, a partir de células de seu irmão — não traz qualquer outra similitude com a estória exposta n’Um clone bestial que trata de personagem maléfico (um louco, em verdade) que foi criado, não por acaso, mas propositadamente por seus pais, à semelhança do irmão para desgosto e arrependimento de sua mãe”, afirmou a segunda instância.

O TJ do Rio aplicou a multa de R$ 5 mil para a autora da ação, com base no artigo 17, V, do Código de Processo Civil. “Tal multa, embora possa não resultar em qualquer efeito econômico-financeiro para a autora, dada sua alegada condição de miserabilidade, atende a princípios que vão além da mera aplicação da lei. Trata-se de imposição ética que visa a reafirmar que o Poder Judiciário repele o abuso do direito de ação e sanciona a conduta de todo aquele que dele se utiliza como loteria, ajuizando demandas temerárias em busca de lucro fácil e desmedido ou, mesmo, atrás de notoriedade andywarroliana”, afirma a decisão.

Leia a decisão

APELAÇÃO CÍVEL Nº 2004.001.13379

Origem – 21ª Vara Cível da Capital

Juíza Sentenciante: Dra. Simone Gastesi Chevrand

Apelante: Regina Luzia Lucas da Gama

Apeladas: Glória Maria Ferrante Perez e TV Globo Ltda.

RELATOR: DES. MARCO ANTONIO IBRAHIM

Direitos autorais. Alegação de plágio. Novela O Clone. Alegação de que a trama da novela foi inspirada em libreto de sessenta e poucas páginas denominado Um Clone bestial. Prova pericial que atesta a originalidade da novela apontando apenas coincidências episódicas com a narrativa do livro que, na essência, destoa do drama televisivo cujo personagem principal em nada se assemelha ao clone ladrão, estuprador, assassino e que é retratado no livro com evidentes características esquizofrênicas. Lide temerária. Litigância de má-fé decretada.

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Cível n° 2004.001.13379 em que é apelante: Regina Luzia Lucas da Gama sendo apeladas Glória Maria Ferrante Perez e TV Globo Ltda acordam, por unanimidade os Desembargadores da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em negar provimento ao recurso nos termos do voto do relator e impor à apelante multa por litigância de má-fé.

RELATÓRIO

Trata-se de Ação indenizatória proposta por REGINA LUZIA LUCAS DA GAMA em face de GLORIA MARIA FERRANTE PEREZ e TV GLOBO LTDA., através da qual pretende a condenação solidária das rés ao pagamento de R$ 500.000,00 de indenização por danos morais, 50% da receita bruta obtida com a veiculação da novela O Clone no Brasil e no exterior e 30% de sua receita publicitária. Requer, ademais, a suspensão da exibição da novela no exterior com pedido de liminar.

Requereu também que passasse a constar da obra O Clone e de todos os seus derivados que a mesma seria adaptada do livro Um Clone Bestial, da autoria de Regina Luzia Lucas Gama. Por fim, requereu fossem as rés condenadas ao pagamento dos honorários da sucumbência, fixados em 20% sobre o valor total da condenação, acrescidos de atualização monetária e juros legais a contar da citação.

Para tal, alega a autora que é escritora, já tendo criado 15 obras literárias e que, no ano de 1997, concluiu mais uma de suas obras, com título Um Clone Bestial, que conta a história de um ser humano sem espírito e sem alma, criado essencialmente pela ciência, com as mesmas características físicas e genéticas de outro ser humano já existente, ou seja, uma besta criada pela ciência, daí o título dado à obra. Disse que a referida obra foi registrada na Biblioteca Nacional em 15 de agosto de 1997 e ainda, que, por não dispor a autora de condições financeiras para contratar uma editora, realizou uma produção independente com a ajuda de alguns amigos, imprimindo 1000 exemplares, os quais deixou em consignação em algumas livrarias.


Ocorre, prossegue a inicial, que, em junho de 2001, tomou conhecimento por jornais e revistas do lançamento da novela O Clone, de autoria da primeira ré, que seria exibida pela segunda ré ao final do ano de 2001, cujo tema central seria a clonagem humana. Alega que, ao assistir assiduamente aos capítulos da referida novela, surpreendeu-se ao perceber que a mesma nada mais era do que uma cópia modificada e adaptada de sua obra Um Clone Bestial. Relacionou diversos traços de semelhança entre as obras, entre eles tratar-se nas duas obras de clonagem de irmãos; ambos os clones terem um sinal de identificação; tanto o livro quanto a novela terem tratado de três temas principais – clonagem humana, religião e drogas; existência de temperamentos semelhantes entre os clones e os clonados; utilização de frases e cenas idênticas às do livro em sua novela; presença da mesma motivação para a criação do clone em ambas as obras etc…

Afirmou que a obra da autora serviu, no mínimo, como ponto de partida para a criação da novela O Clone. Logo, mesmo que se considerasse a referida novela como obra derivada da obra da autora, isto dependeria de sua autorização, o que não ocorreu, ficando caracterizado seu uso indevido, pelo que merece ser a autora indenizada pelos danos materiais e morais decorrentes do ilícito.

Contestação da primeira ré, argüindo, preliminarmente, a inépcia da inicial quanto aos pedidos formulados, por não ter sido a mesma quem recebeu a quantia em virtude da edição da obra e sim, a segunda ré. No mérito, afirma que autora apontou uma semelhança ou outra entre as obras, segundo seu próprio ponto de vista, sendo o livro da autora uma pequenina obra de 63 páginas, ilustrada com inúmeros desenhos, enquanto a novela da primeira ré apresenta 221 capítulos, com, pelo menos, uma hora de duração cada.

Destacou o fato de a abordagem da clonagem humana ser completamente distinta na novela da primeira ré, ou seja, enquanto no livro a clonagem se deu propositalmente pelos pais do clone, na novela, aconteceu por acidente. E ainda, ressaltou que o livro parte da premissa de que o clone é um ser sem alma e sem espírito, ao contrário da abordagem feita pela novela, que deixa em dúvida tal aspecto.

Afirma, ainda, que a autora não fez a prova do fato constitutivo de seu direito, isto é, não demonstrou que a obra da primeira ré teria sido cópia de seu livro. Destaca também que no livro da autora há apenas um parágrafo tratando do assunto drogas. Quanto à religião, aduz que, na novela, a abordagem do tema é feita objetivando demonstrar o choque cultural entre a religião católica e a muçulmana, apresentando premissa e objetivo completamente diversos dos do livro. Impugnou o pedido de danos morais por considerá-lo excessivo. Requereu a improcedência do pedido e ainda, a condenação da autora como litigante de má fé, por ter a mesma proposto ação sem fundamento e de forma temerária.

Contestação da segunda ré, repetindo os mesmos argumentos da contestação apresentada pela primeira ré, acrescentando que a primeira ré integra seu quadro de escritores exclusivos, sendo conhecida por abordar temas polêmicos em suas obras. Destacou, ainda, que o livro da autora não foi o pioneiro a tratar do tema clonagem, sendo este abordado no mundo das artes desde o início do século. Afirmou que as alegações irresponsáveis da autora caracterizam litigância de má fé e ainda, que não se encontram presentes os requisitos essenciais do plágio, quais sejam, prévio acesso e semelhança formal.

Saneador precluso em que foi rejeitada a preliminar. Realizada perícia técnica, concluiu o perito oficial não ter ocorrido o alegado plágio.

A sentença julgou improcedente o pedido, condenando a autora ao pagamento das despesas processuais e honorários de advogado, arbitrados em 10% sobre o valor da causa, observando-se o disposto no art. 12 da Lei 1060/50.

Apelou a autora, alegando que o laudo pericial desconsiderou todas as provas juntadas aos autos, se contradizendo em diversas oportunidades. Disse, ainda, que trata-se o caso presente de flagrante cópia adaptada e modificada pela primeira apelada da obra da apelante, tendo servido o livro da apelante como paradigma para o desenvolvimento do trabalho das apeladas, com pinceladas, adaptações e modificações requintadas, próprias de quem tem no meio artístico experiência renomada. Ressaltou o fato de que o volume ou o primor de uma obra não é parâmetro para existência ou não de plágio.

Contra-razões das apeladas, prestigiando a sentença de primeiro grau, requerendo seja negado provimento ao recurso, com integral manutenção da sentença proferida pelo Juízo a quo insistindo, entretanto, na aplicação do disposto no art. 17, inciso V, do Código de Processo Civil , de forma que a apelante seja condenada nas cominações do art. 18 do Código de Processo Civil .


VOTO

O laudo do perito do Juízo concluiu que não houve o alegado plágio e atestou a originalidade da novela apontando coincidências episódicas com a narrativa do livro Um Clone Bestial que, na essência, destoa do drama televisivo, cujo personagem principal em nada se assemelha ao clone ladrão, estuprador, assassino e que é retratado no livro com evidentes características esquizofrênicas, tanto que ouvia vozes que o incitavam à pratica de crimes hediondos.

Não houve, por parte da autora da novela, qualquer traço de inspiração no livro escrito pela apelante que, de resto, é obra de baixa qualidade literária e que não dispõe de conteúdo narrativo que possa ser equiparado à trama da obra televisiva. Com efeito, a novela – exceto quanto à coincidência de que o clone foi produzido por indução genética, a partir de células de seu irmão – não traz qualquer outra similitude com a estória exposta n’Um clone bestial que trata de personagem maléfico (um louco, em verdade) que foi criado, não por acaso, mas propositadamente por seus pais, à semelhança do irmão para desgosto e arrependimento de sua mãe.

Em que pese a boa capacidade técnica do perito oficial não se pode concordar com a afirmativa de que por serem recentes os processos de clonagem humana muito recentes, não existem muitas obras a respeito do tema. Trata-se de equívoco. A mais tosca consulta aos sites de busca na internet, como Google, Altavista, Yahoo, etc, revela que mesmo antes da edição do livro e da apresentação da novela, já havia milhares de livros técnicos, artigos científicos e de cunho religioso, projetos de lei, estórias, romances e discussões, no mundo inteiro, sobre a clonagem humana. Este próprio relator, quando estudante de Direito, apresentou perante a OAB, um trabalho jurídico sobre comércio de órgãos humanos em que abordava, inda que en passant, o tema da clonagem humana – isto nos idos de 1981…

A novela criada pelo gênio de Glória Perez encantou o País e foi responsável pela mais eficaz e comovente campanha contra drogas já realizada entre nós e esta questão nem de perto é ferida pelo livro escrito pela autora que apenas relata, em reduzidas linhas, que seu clone bestial se agradava de drogas.

O mesmo se diga quanto ao aspecto religioso, um dos temas centrais da novela, que trouxe luzes sobre o islamismo e seus hábitos confrontando-o com as práticas católico-ocidentais e que, no livro, se limita a tratar da devoção a Deus da mãe do clone que, aliás, trazia o sinal da Besta na cabeça (666). No ponto, a coincidência de ambos os clones ostentarem um sinal corpóreo em nada implica em plágio. Tais artifícios são comuns na cinematografia e na literatura sempre que são envolvidos personagens com características gemelares.

No mais parece mesmo absurdo comparar as duas obras, uma das quais foi destilada em mais de duas centenas de capítulos e teve sua trama tecida, em grande parte, pelas expectativas do público. Bem diferente da amadorística obra da autora cuja estória se desenvolve (efetivamente) em pouco mais de 40 pequenas páginas se se excluir o montante de gravuras, capas e agradecimentos como, atentamente, observou a crítica Bárbara Heliodoro.

Cabe destacar, nesse passo, a questão concernente à litigância de má-fé da apelante. Mera leitura do conjunto de pedidos feitos na inicial revela que a pretensão indenizatória da autora alcança cifras que, em caso de procedência, poderiam representar condenação na ordem de milhões de dólares. Com efeito, além de requerer a condenação solidária das rés-apeladas ao pagamento de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) à guisa de danos morais, a autora ainda pretende receber 50% da receita bruta obtida com a comercialização da novela O Clone, no Brasil e no exterior; 30% da receita bruta auferida pelas inserções publicitárias durante todo o período de exibição da novela e, dentre outros pedidos, a suspensão da exibição da novela no exterior (!)

E se mostra indispensável levar em conta tal estimativa da pretensão indenizatória para que se revele a má-fé processual da autora que, por puro oportunismo, ajuizou a demanda que é, de todo, temerária e o fez sob o benefício da assistência judiciária gratuita. Não tinha nada a perder. Aliás o próprio pedido de suspensão da exibição da novela no exterior já denotava a falta de seriedade da autora quanto às questões trazidas a Juízo, seja pela falta de jurisdição extra-territorial da Justiça Brasileira, seja pelo fato de que terceiros adquirentes dos direitos de exibição da novela, no exterior, não seriam alcançados por força dos próprios limites subjetivos da lide.

Impõe-se, dessa arte, a condenação da apelante nos termos do disposto no art. 17, V do Código de Processo Civil ao pagamento da quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Tal multa, embora possa não resultar em qualquer efeito econômico-financeiro para a autora, dada sua alegada condição de miserabilidade, atende a princípios que vão além da mera aplicação da lei. Trata-se de imposição ética que visa a reafirmar que o Poder Judiciário repele o abuso do direito de ação e sanciona a conduta de todo aquele que dele se utiliza como loteria, ajuizando demandas temerárias em busca de lucro fácil e desmedido ou, mesmo, atrás de notoriedade andywarroliana.

O certo é que já por ocasião da (irrespondível) contestação da 1a ré ficara mais que evidente a aventura jurídica em que se lançara a autora-apelante que na faina de demonstrar, a outrance, violação de seus direitos autorais, esbarrou em evidências de fato e de direito que, nem sempre, uma linguagem sutil e livresca pode delir…

À conta de tais fundamentos e a teor do disposto no art. 18 do Código de Processo Civil, condena-se a autora-apelante, como litigante de má-fé, ao pagamento de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para cada uma das rés-apeladas restando desprovido o recurso de apelação, mantida, na íntegra, a r. decisão de primeiro grau.

Estando a autora sob os auspícios da Assistência Judiciária Gratuita, eventual execução das verbas condenatórias, estará condicionada à perda de sua condição de hipossuficiência material, na forma do disposto no art. 12 da Lei no 1.060/50, atendida, assim, a orientação da jurisprudência dominante a respeito da qual o relator guarda bastas reservas.

Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2004.

DES. ——

Presidente

MARCO ANTONIO IBRAHIM

Desembargador – Relator

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