‘Com anel de doutor’

Parlamentares não querem prestar contas para sociedade

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

4 de setembro de 2004, 16h16

É de conhecimento público a inexistência de atividades laborativas às segundas e sextas-feiras pelos nobres deputados estaduais do Estado de São Paulo e pelos parlamentares em geral. Vergonhosamente, após pedido de informações feito pela Associação de Defesa da Harmonia da Ordem Constitucional ( AD HOC), tanto a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo quanto a Câmara de vereadores, simplesmente ignoraram os pedidos ao arrepio da Constituição Federal.

A ALESP e a Câmara podem não acreditar, mas o artigo 5º, XXXIII da Constituição Federal de 1988 não pode ser revogado pela arrogância ou pela inoperância das Casas de Leis. No sistema jurídico brasileiro, a Emenda Constitucional não pode ser substituída pela desídia e nem pela comodidade.

Também junto à Câmara Federal foram feitos dois pedidos, ainda sem resposta. Por que as Casas de Leis — sintomaticamente — não respondem a tais pedidos, mesmo obrigadas que são pela Constituição Federal de 1988?

Não é preciso ser jurista para descobrir: não querem prestar contas do trabalho que — em tese — realizam para o povo. A necessidade de prestação de contas do efetivo trabalho parlamentar às segundas e sextas-feiras é decorrência dos princípios da publicidade, da moralidade, da eficiência e da impessoalidade.

Aliás, seria de interesse da própria Casa de Leis, a demonstração cabal de que o dinheiro público é devidamente aplicado em finalidades igualmente públicas. Desta forma, a própria Casa Legislativa — em tese — tem o interesse em demonstrar sua conduta séria no trato com o dinheiro público e o efetivo trabalho todos os dias da semana.

Assim, de rigor a apresentação da prestação dos serviços realizados às segundas e sextas-feiras para a associação e para toda a população. A autora requereu tais informações junto às referidas Casas por duas vezes sem que houvesse qualquer resposta.

Elas podem não acreditar, mas ainda existe direito de petição em nosso país. Tal comportamento além de ilícito demonstra a evidente covardia e falta de respeito não só pela autora como também com o contribuinte que paga para ter efetivo trabalho parlamentar.

Inúmeras matérias jornalísticas acerca da abominável prática de inexistência de atividades laborativas por parlamentares às segundas e sextas-feiras são de conhecimento público. Somente a arrogância somada à ausência de escrúpulos pode justificar tal vergonhosa prática.

Tentando manter vigente os princípios constitucionais da moralidade, legalidade, impessoalidade e até mesmo o elementar direito de petição é que a associação apresentou ação civil pública de prestação de contas das atividades laborativas às segundas e sextas-feiras contra a ALESP e a Câmara Municipal. Apresentará, também, contra a Câmara dos Deputados.

A ausência de prestação de contas pelos nobres deputados e vereadores viola frontalmente o Princípio da Legalidade, à medida que é de obviedade ululante o dever de prestar contas do efetivo trabalho realizado.

É óbvia a necessidade de lei para atos referentes a gastos públicos. Nenhuma lei autoriza tal despudorado comportamento. E, ainda que houve seria clara sua inconstitucionalidade.

Como é de conhecimento dos operadores do direito, ao contrário do que ocorre na administração particular, o Administrador Público não pode fazer tudo o que não está proibido e sim apenas o que a lei autoriza. O que não está permitido está vedado.

Nesse sentido a elementar lição de HELY LOPES MEIRELLES(1):“Na Administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.”

Além do princípio da legalidade, também o princípio da moralidade restou maculado. A falta de prestação de contas por parte de parlamentares à Casa de Leis fere, evidentemente, qualquer princípio mínimo de moral. Tal despudorado comportamento não tem qualquer corroboração doutrinária ou jurisprudencial. Aliás, nem mesmo em nenhuma modalidade de moral existente no mundo civilizado.

Note-se que tal regra beneficia a atuação política com dinheiro público, já que possibilita o exercício de atividade política para fins privados. A inexistência de prestação de contas favorece e camufla a enojante prática de fazer campanha em horário de expediente.

Qualquer do povo– sendo desnecessários quaisquer rudimentos de conhecimento jurídico — está apto a reconhecer que fazer campanha em horário de expediente não se enquadra no conceito de moral nem mesmo numa casa de tolerância!

A necessidade de prestação de contas de toda e qualquer atividade que envolva dinheiro público está prevista — com clareza solar — no artigo 70 Parágrafo único da Carta Federal de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 que dispõe:“Parágrafo Único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.”

Tal regra de prestação de contas é decorrência dos princípios da publicidade, da moralidade, da eficiência e da impessoalidade insculpidos no artigo 37 da Carta Federal. Qualquer democracia já impõe tal dever sendo mera redundância a regra do artigo 70 da CF. Aliás, pessoas com moral mais consistente fariam voluntariamente tal prestação de contas.

Será que a música do grupo Paralamas do Sucesso, que diz “São trezentos picaretas com anel de Doutor”, está certa mesmo? Ou será que a conta foi subestimada?

Notas de rodapé

1. “Direito Administrativo Brasileiro”, Editora Malheiros, 27ª edição, pág. 86.

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