Investigação criminal

Leia o voto de Joaquim Barbosa sobre investigação criminal pelo MP

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4 de setembro de 2004, 16h20

Se a Constituição Federal concedeu ao “Ministério Público a função de dar início à ação penal, sendo esta sua atividade-fim, implicitamente, por óbvio, concedeu-lhe também os meios necessários para o alcance de seu objetivo, caso contrário seu encargo constitucional nem sempre poderia ser cumprido”.

Com esse argumento, entre outros, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, entendeu que é legítimo o poder de investigação criminal do Ministério Público. O julgamento sobre a questão foi interrompido, na quarta-feira (1/9), pelo pedido de vista do ministro Cezar Peluso. Com a interrupção, o placar está 3 X 2 para o MP.

Para três ministros do Supremo, o Ministério Público não pode presidir inquéritos policiais, mas tem o poder constitucional de fazer investigações criminais. Os ministros Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto e Eros Grau entenderam que não é exclusividade da polícia a condução das investigações. Os dois ministros que votaram contra o poder investigatório criminal foram Marco Aurélio, relator da questão, e Nelson Jobim.

Para Joaquim Barbosa, não é razoável a “tese que postula o condicionamento e o aprisionamento da atuação do Ministério Público à atuação da polícia, o que sabidamente não condiz com a orientação da Constituição de 1988”.

O ministro entende que o que autoriza o MP a investigar “não é a natureza do ato punitivo que pode resultar da investigação (sanção administrativa, cível ou penal), mas, sim, o fato a ser apurado, incidente sobre bens jurídicos cuja proteção a Constituição explicitamente confiou ao Parquet“.

Segundo Joaquim Barbosa, nada impede que o Ministério Público, “que é o titular da ação penal pública e natural destinatário das investigações, proceda ele próprio a averiguações destinadas a firmar sua convicção”.

Leia a íntegra do voto

INQUÉRITO 1.968-2 DISTRITO FEDERAL

V O T O – V I S T A

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA: Sr. Presidente, pedi vista dos presentes autos para meditar melhor sobre as questões neles contidas.

Porém, antes mesmo de nos debruçarmos sobre elas, creio que se faz necessário um breve retrospecto do feito.

A denúncia foi oferecida com base em procedimento administrativo instaurado a partir de notitia criminis do Ministério da Saúde.

Imputa-se aos denunciados a autoria de crime de estelionato em prejuízo da União (art. 171, § 3º, do Código Penal), uma vez que se teriam beneficiado economicamente de fraudes perpetradas por médicos que trabalhavam na clínica de que os denunciados eram sócios, causando dano ao erário da União.

Coube ao ministro Marco Aurélio a relatoria do feito.

Ao submeter o caso ao Plenário, o ministro relator votou pela rejeição da denúncia, com o argumento de que inexiste justa causa, por falta de atribuição do Ministério Público para instaurar e presidir “inquéritos criminais”.

Antecipando o seu voto, o ministro Nelson Jobim acompanhou o relator.

Pedi vista dos autos para fazer uma análise mais minuciosa do caso concreto, bem como das teses em debate.

Preliminarmente, devo dizer que não vejo, na hipótese em análise, verdadeira “investigação criminal” como ficou consignado no voto do ministro Marco Aurélio.

Tomo como ponto de partida o fato de que todas as peças de investigação trazidas ao conhecimento do Ministério Público Federal foram autuadas para averiguar possível prejuízo ao patrimônio público (fls. 18).

Note-se que somente após longa apuração pelo próprio Ministério da Saúde (apenso, volumes 01 a 10) encaminhou-se ao Ministério Público o material coletado. Trata-se

inequivocamente de notitia criminis.

Assim, com base nessa vasta documentação, o procurador oficiante requereu ao Ministério da Saúde a designação de dois técnicos para proceder à análise dos documentos.

Designados esses técnicos, o representante do Ministério Público Federal formulou quesitos, tais como: “quais foram as irregularidades apuradas?”; “qual foi o período investigado?; “o SUS deve pagar pelo serviço prestado?”.

Não houve novas diligências para esclarecer outros fatos.

Ora, o que deve ser discutido é se a documentação levada ao conhecimento do Ministério Público Federal, fruto de apuração integralmente conduzida pelo Ministério da Saúde, serve ou não serve como justa causa para a denúncia em exame.

Mas, ainda que se considere como investigativa a atuação do Ministério Público neste caso, creio que há fundamento constitucional sólido para embasá-la. O fato objeto de investigação nestes autos (apuração de possíveis danos ao patrimônio público) insere-se num domínio que reputo perfeito à demonstração da irrazoabilidade da tese que sustenta a impossibilidade da investigação pelo Ministério Público. Aqui o fundamento constitucional não é o art. 129, I, mas o art. 129, III da CF/88. Diz o dispositivo:


“Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”

Isso significa que o Ministério Público tem atribuição constitucional expressa para instaurar procedimento investigativo acerca da matéria em exame.

O que autoriza o Ministério Público a investigar não é a natureza do ato punitivo que pode resultar da investigação (sanção administrativa, cível ou penal), mas, sim, o fato a ser apurado, incidente sobre bens jurídicos cuja proteção a Constituição explicitamente confiou ao Parquet.

A rigor, nesta como em diversas outras hipóteses, é quase impossível afirmar, a priori, se se trata de crime, de ilícito cível ou de mera infração administrativa. Não raro, a devida valoração do fato somente ocorrerá na sentença!

Note-se que não existe uma diferença ontológica entre o ilícito administrativo, o civil e o penal. Essa diferença, quem a faz é o legislador, ao atribuir diferentes sanções para cada ato jurídico (sendo a penal, subsidiária e a mais gravosa).

Assim, parece-me lícito afirmar que a investigação se legitima pelo fato investigado, e não pela ponderação subjetiva acerca de qual será a responsabilidade do agente e qual a natureza da ação a ser eventualmente proposta.

Em síntese, se o fato diz respeito a interesse difuso ou coletivo, o Ministério Público pode instaurar procedimento administrativo, com base no art. 129, III, da Constituição Federal.

Na prática, penso que é possível propor tanto ação civil pública com base em inquérito policial quanto ação penal subsidiada em inquérito civil. Essa divisão entre civil e penal é mera técnica de racionalização da atividade estatal. O que é de fato relevante é a obrigação constitucional e legal a todos imposta de se conformar às regras jurídicas, indispensáveis a uma convivência social harmônica.

Não quero com isso dizer que o Ministério Público possa presidir o inquérito policial. Não. A própria denominação do procedimento (inquérito policial) afasta essa possibilidade, indicando o monopólio da polícia para sua condução. Ocorre que a elucidação da autoria e da materialidade das condutas criminosas não se esgota no âmbito do inquérito policial, como todos sabemos. Em inúmeros domínios em que a ação fiscalizadora do Estado se faz presente, o ilícito penal vem à tona exatamente no bojo de apurações efetivadas com propósitos cíveis.

Nesses casos, como em muitos outros, o desencadeamento da ação punitiva do Estado prescinde da atuação da polícia.

Daí a irrazoabilidade da tese que postula o condicionamento, o aprisionamento da atuação do Ministério Público à atuação da polícia, o que, sabidamente, não condiz com a orientação da Constituição de 1988.

De fato, como bem lembram Lenio Streck e Luciano Feldens (Crime e Constituição, Forense, 2003), uma das novidades mais alvissareiras da Constituição de 1988 foi a criação de um Ministério Público independente do Poder Executivo, com garantias similares às do Poder Judiciário e com a missão de guardar os interesses transindividuais da sociedade e do regime democrático. Esse Ministério Público veio suceder um Ministério Público dependente do Poder Executivo – e, por extensão, do poder político – e, como dizem Streck e Feldens, “repassador de provas realizadas por uma polícia sem independência”.

Lembremos que esse novo Ministério Público constitui, juntamente com a Justiça Eleitoral, uma das raras e inovadoras instituições criadas pela Constituição de 1988 a despertar o interesse e o respeito da comunidade jurídica internacional. Pois bem. A essa instituição a Constituição conferiu a titularidade exclusiva da ação penal pública e o controle da atividade policial.

Note-se, por outro lado, que estamos diante de atividades que se enquadram perfeitamente no rol das missões constitucionais normalmente confiadas ao ramo do poder que representa a função executiva do Estado. De fato, a persecução criminal – creio que não há dúvidas a esse respeito – constitui atividade ontologicamente associada à idéia de “fiel execução das leis”.

Assim é desde Locke e Montesquieu, passando-se pela experiência do primeiro país a dotar-se de uma Constituição escrita, os Estados Unidos da América, cuja Carta de 1787 não deixa dúvidas sobre o tema quando, em seu art. II, Seção 3, diz que ao presidente incumbe velar pela fiel execução das leis.

Aliás, nos Estados Unidos, ninguém questiona ser a persecução criminal uma das mais importantes atribuições do Executivo, controlada em caráter primário pelo presidente e exercida no dia-a-dia pelo attorney general (procurador-geral ou ministro da Justiça), sob cujas ordens e diretrizes funciona o FBI (Federal Bureau of Investigations), a polícia federal daquele país.


Toda ação da polícia federal americana segue guidelines (instruções) determinadas pelo procurador-geral.

Mas mesmo nos Estados Unidos, com todo o rigor com que é concebida a noção de rule of law e de fiel execução das leis, a aplicação da lei penal e a persecução criminal não ficaram imunes a dificuldades ao longo do tempo. Essas dificuldades estiveram associadas à necessidade indeclinável de conciliação entre o dever de executar as leis e punir os eventuais infratores, de um lado, e, de outro, a obrigação constitucional de investigar, com o mesmo rigor, os membros do próprio Poder Executivo, em suma, os membros do establishment político.

Tais dificuldades, como todos sabemos, após os conhecidos episódios do caso “Watergate” – especialmente o chamado “massacre do sábado à noite”, em que três procuradores foram demitidos por um presidente que não queria se submeter ao dever constitucional de conformar-se aos ditames legais -, levaram os Estados Unidos a radicalizar na matéria e a criar a figura do procurador independente, incumbido de investigar fatos específicos nos quais estejam envolvidas pessoas que por sua posição institucional possam exercer algum tipo de pressão na conduta das investigações. Noutras palavras, para esses casos específicos, o direito norte-americano inovou em relação à multicentenária teoria da separação e divisão dos poderes, retirando do Executivo regular a atividade persecutória criminal.

Pois bem. O direito brasileiro radicalizou ainda mais que o norte-americano. A Constituição de 1988 instituiu, não para casos específicos e pontuais, mas em caráter permanente, um órgão independente do Executivo e confiou-lhe a titularidade da ação penal, além de outras atribuições de alta relevância que em outros sistemas constitucionais ficam a cargo de órgão de persecução subordinado ao Executivo. De fato, nossa Constituição, inovando e destacando-se sobremaneira das demais Constituições democráticas, optou por retirar essa função da esfera de influência do chefe do Executivo e entregou-a a uma instituição nova, independente, sui generis, com o claro intuito de deixar para trás as velhas práticas clientelistas e anti-democráticas que nos marcaram no passado, à luz das quais a persecução criminal sempre passou ao largo das classes sociais mais elevadas, do establishment político e econômico. A toda evidência, a Constituição não quis fazer dessa instituição mais um órgão dotado de agentes com funções pomposas e títulos sonantes, porém incumbido de um papel meramente decorativo, contemplativo, inerte. Não, não foi essa a intenção do constituinte de 1988.

Mas é precisamente a isso que nos conduzirá, se vencedora, a tese que postula a inviabilidade constitucional e legal de investigação por membro do Ministério Público.

O que a Constituição e a teoria constitucional moderna asseguram é que, sempre que o texto constitucional atribui uma determinada missão a um órgão constitucional, há de se entender que a esse órgão ou instituição são igualmente outorgados os meios e instrumentos necessários ao desempenho dessa missão. Esse é, em síntese, o significado da teoria dos poderes implícitos, magistralmente sintetizada entre nós por Pinto Ferreira em seus Comentários à Constituição Brasileira, vol. II, p. 132:

“As Constituições não procedem a enumerações exaustivas das faculdades atribuídas aos poderes dos próprios Estados. Elas apenas enunciam os lineamentos gerais das disposições legislativas e dos poderes, pois normalmente cabe a cada órgão da soberania nacional o direito ao uso dos meios necessários à consecução dos seus fins. São os chamados poderes implícitos.”

Concebida por John Marshall no célebre caso “McCulloch v. Maryland” e aplicada durante quase dois séculos de prática constitucional, em áreas que vão do direito tributário ao direito penal e administrativo, tal cláusula simboliza a busca incessante pela efetividade das normas constitucionais. Nesse sentido, não me parece ocioso citar trecho dessa famosa decisão, especialmente o ponto em que Marshall argumenta: “Ora, com largo fundamento se pode sustentar que um Governo a quem se confiam poderes dessa amplitude, da execução correta dos quais tão vitalmente dependem a felicidade e prosperidade da Nação, deve ter recebido também amplos meios para os exercer. Dado o poder, é do interesse da Nação facilitar-lhe o exercício. Nunca se poderia supor que fosse do seu interesse, ou estivesse no seu intuito embaraçar-lhe e tolher-se-lhe o exercício, recusando-lhe para isso os mais adequados meios”.

Arthur Pinto de Lemos Júnior, em trabalho publicado na RT em 2002, menciona com muita propriedade que a tese da aplicação da teoria dos poderes implícitos nessa matéria não constitui novidade para esta Corte, visto que, por ocasião do julgamento da ADI 1.547, o procurador-geral de Justiça do estado de São Paulo, Luiz Antonio Guimarães Marrey, sustentou que:


“(…) nada impede – e, antes, tudo recomenda – que o titular da ação penal se prepare para o exercício responsável da acusação. Como já se observou, há nessa hipótese um poder implícito, inerente ao seu poder específico papel na persecução penal: ninguém ignora que a lei quando confere a um Poder ou órgão do Estado a competência para fazer algo, implicitamente lhe outorga o uso dos meios idôneos. ‘It´s not denied that power given to the government imply the ordinary means of execution’, escreve Franklin H. Cook, que acrescenta: ‘The government which has a right to do an act, and has imposed on it the duty of performing the act, must according to the dictates of reasons, be allowed to select the means’.”

De fato, se a Lei Maior concedeu ao Ministério Público a função de dar início à ação penal, sendo esta sua atividade-fim, implicitamente, por óbvio, concedeu-lhe também os meios necessários para o alcance de seu objetivo, caso contrário seu encargo constitucional nem sempre poderia ser cumprido.

Se houvesse a imperativa inércia do promotor de Justiça criminal e sua impossibilidade de investigar os fatos, porquanto sempre na dependência do trabalho da polícia judiciária, como poderia o Ministério Público cumprir sua função constitucional de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” como prescreve o art. 129, II, da Carta Magna? Como poderia defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, previstos no art. 127, caput, da mesma Constituição?

Ora, esses meios de ação foram expressamente conferidos ao Ministério Público, tanto no plano constitucional, por força da própria natureza da função cuja titularidade lhe foi outorgada, quanto no plano legal. Com efeito, o art. 129, IX, da Constituição diz que são funções institucionais do Ministério Público “EXERCER OUTRAS FUNÇÕES QUE LHE FOREM CONFERIDAS, DESDE QUE COMPATÍVEIS COM SUA FINALIDADE”. Não me parece haver dúvidas de que a investigação da veracidade de uma notitia criminis que lhe chegue ao conhecimento tem total pertinência com uma das mais importantes dentre as atribuições do Ministério Público, que é o exercício da titularidade da ação penal. Não é por outra razão que a Lei Complementar 75/1993, Lei Orgânica do Ministério Público da União, em seu art. 8º, V, estipula que “para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência, REALIZAR INSPEÇÕES E DILIGÊNCIAS INVESTIGATÓRIAS”. Esse dispositivo, de clareza insuplantável, estabelece sem sombra de dúvida a relação meio-fim a que faz alusão o art. 129, IX, da Constituição. Dispositivo com dizeres similares é encontrado no art. 26 da Lei 8.625/1993, que disciplina a atuação dos ministérios públicos estaduais.

Quanto ao suposto óbice do art. 144, § 1º, IV, da Constituição, o qual para alguns teria estabelecido um monopólio investigativo em prol da Polícia Federal, valho-me mais uma vez de Strecker e Feldens, quando afirmam:

“Logicamente, ao referir-se à ‘exclusividade’ da Polícia Federal para exercer funções ‘de polícia judiciária da União’, o que fez a Constituição foi, tão-somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar), razão pela qual observou, para cada uma delas, um parágrafo dentro do mesmo art. 144. Daí porque, se alguma conclusão de caráter exclusivista pode-se retirar do dispositivo constitucional seria a de que não cabe à Polícia Civil ‘apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas’ (art. 144, 1º, I), pois que, no espectro da ‘polícia judiciária’, tal atribuição está reservada à Polícia Federal. Acaso concluíssemos distintamente, ou seja, no sentido do ‘monopólio investigativo’ da Polícia, teríamos de enfrentar importantes indagações para as quais não visualizamos qualquer possibilidade de resposta coerente com a tese restritiva.

Por exemplo: o que se passaria com as ‘diligências investigatórias’ imprimidas pelos demais órgãos da administração (Poder Executivo), os quais, conquanto não ostentem, ao contrário do Ministério Público, finalidade dirigida à persecução penal, as realizam no escopo de fomentá-la? Bem assim, o que ocorreria com as investigações criminais – que existem em pluralidade – levadas a efeito no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário?“

E eu pergunto: caso vencedora a tese do relator, que destino será dado às complexas e sofisticadas estruturas administrativas e investigativas criadas no âmbito do Executivo, fora, portanto, das estruturas das polícias, numa tentativa de aparelhamento mínimo do Estado para monitorar e coibir certas práticas criminosas que a cada dia crescem em ousadia e sofisticação, como os crimes de natureza financeira, especialmente o de lavagem de dinheiro?


A tese da primazia policial em matéria de investigação criminal choca-se também com outros aspectos da tradição jurídica brasileira. Tome-se, por exemplo, o direito administrativo, especialmente no campo específico das relações entre o Estado e seus agentes. Ninguém tem dúvida de que da relação entre a Administração e os agentes públicos decorrem três tipos distintos de responsabilidade: a civil, a administrativa e a penal (art. 121 da Lei 8.112/1990).

Os arts. 143 e 144 da referida norma impõem a todas as autoridades que tiverem ciência de irregularidade no serviço público a obrigatoriedade de promover a sua “apuração imediata”, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar. É sabido que a constatação da prática de diversos crimes, notadamente daqueles praticados contra a administração pública, dáse justamente no bojo dos procedimentos administrativo disciplinares.

Indaga-se: passaremos doravante a considerar inválidas as condenações resultantes de apurações levadas a efeito por autoridades administrativas em procedimentos investigatórios administrativos de natureza disciplinar?

Há ainda um enorme rol de situações idênticas, ou seja, de órgãos distintos da polícia judiciária que realizam investigações, as quais, muitas vezes, terão conseqüências penais.

Cito alguns deles.

O Banco Central conta em sua estrutura com o Departamento de Combate a Ilícitos Cambiais e Financeiros-DECIF, órgão diretamente vinculado à Diretoria de Fiscalização-DIFIS.

Por ele também são efetuadas diligências, as quais, além de servirem à instrução do procedimento administrativo, têm como destinatário o Ministério Público, para que este atue na esfera criminal contra os investigados. O Conselho de Coordenação de Atividades Financeiras igualmente realiza, certo que a seu modo, atividade investigatória, e o faz atuando como “órgão do Governo, responsável pela coordenação de ações voltadas ao combate à ‘lavagem’ de dinheiro”.

Tais exemplos, que não esgotam o rol de agentes e instituições legitimados a apurar fatos mediata ou imediatamente relacionados com infrações penais deixam claro – e de forma inequívoca – a ausência de exclusividade da polícia para a realização de tais “diligências investigatórias”.

Sr. Presidente, uma das facetas mais marcantes da jurisdição constitucional – e que a singulariza em face das outras formas de jurisdição – é o componente político que lhe é ínsito.

Político, mas não no sentido vulgar, partidário, mas numa compreensão que simbolize a atividade de velar pelo bem-estar na polis, pela segurança dos cidadãos, pela paz social, em suma, pelos destinos da nação. Noutras palavras, esse componente político da jurisdição constitucional se materializa quando as cortes, deixando temporariamente de lado a dogmática chã, que não raro empobrece o debate verdadeiro das questões, toma decisões à luz da realidade político-social concreta de cada país. Anoto, de passagem, que as grandes cortes constitucionais assim procedem não sem levar em conta o papel e a imagem que os respectivos países gozam ou almejam gozar no cenário internacional.

Tenho dito em algumas oportunidades que a função básica de uma corte constitucional é velar pela preservação de certos equilíbrios.

Pois bem. Creio que essa visão se aplica ao presente caso. Nitidamente estamos diante de uma situação em que cabe a esta Suprema Corte estabelecer o ponto justo, o equilíbrio ideal entre, de um lado, os direitos processuais das pessoas suspeitas da prática de crime e, de outro, os interesses maiores da sociedade, a segurança da população, o interesse em preservar o patrimônio público contra a corrupção e em extirpar da cena pública os indícios de penetração do crime organizado.

A Constituição de 1988, símbolo da inserção do nosso país no concerto das nações democráticas, oferece aos suspeitos da prática de crimes um rol de direitos, privilégios e prerrogativas que nos coloca em pé de igualdade com as mais sólidas democracias do planeta. Citem-se como exemplo o princípio da não-incriminação, o da reserva legal e da irretroatividade da lei penal, o da individualização da pena, o da amplitude da defesa etc. É importante assinalar que todo esse arcabouço constitucional-penal tem como primeiro objetivo a proteção do inocente. Aliás, essa proteção reforçada do inocente faz com que o sistema feche até mesmo os canais de acesso à mais segura e autêntica fonte de apuração da verdade, isto é, o acusado, que tem para protegê-lo o princípio da não-incriminação.

Assim deve ser, pois, como disse certa vez Learned Hand, grande jurista e magistrado norte-americano, “no sistema criminal o acusado tem todas as vantagens”. (“Under our criminal procedure the accused has every advantage. While the prosecution is held rigidly to the charge, he need not disclose the barest outline of his defense. He is immune from question or comment on his silence; he cannot be convicted when there is the least fair doubt in the minds of any one of the twelve (…)”) (Learned Hand, in United States v. Garsson, 291 Fed. 646, 679, S.D.N.Y., 1923, apud Stephen Saltzburg & Daniel J. Capra, American Criminal Procedure, Cases and Commentaries, 5th ed., 1996, p. 767).


Mas, Sr. Presidente, proteção reforçada ao acusado não há de ter como contrapartida a ineficácia dos mecanismos e instituições voltadas à apuração e à persecução das atividades delituosas. A todas essas prerrogativas do cidadão acusado deve haver um contraponto, sob pena de se criar um desequilíbrio em prol da criminalidade. É a velha antítese entre segurança e liberdade. Explico-me, para me fazer devidamente compreendido: entendo que, paralelamente ao fortalecimento dos direitos do cidadão, aí incluído o cidadão suspeito ou o já condenado ou em vias de ser condenado, a Constituição há de fornecer ao Estado e aos seus órgãos de persecução criminal os meios de cumprir suas missões constitucionais e legais com eficácia.

Neste ponto sirvo-me mais uma vez de notável jurista e magistrado do mundo anglo-saxão, Lord Denning, que, em seu magistral The Due Process of Law, já dizia:

“Ela (a liberdade pessoal) há, é claro, de ser confrontada com a segurança social, isto é, com a paz e a boa ordem da comunidade na qual vivemos. A liberdade do homem justo não tem qualquer valor se ele pode ser vítima do assassino ou do assaltante. Toda sociedade deve ter meios de se proteger dos criminosos.” (No original: “It (personal freedom) must be matched, of course, with social security, by which I mean, the peace and good order of the community in which we live. The freedom of the just mand is worth little to him if he can be preyed upon by the murderer or the thief. Every society must have means to protect itself from marauders.” (Lord Denning, The Due Process of Law, Butterworths, 1980, p. 101)

Em suma, compelir o Ministério Público a uma postura meramente contemplativa seria, além de contrário à Constituição e ao status constitucional que essa instituição passou a ter a partir de 1988, desservir aos interesses mais elevados do país, instituir um sistema de persecução penal de fachada, incompatível com o visível amadurecimento cívico de nosso país e com a solidez das nossas instituições democráticas.

Por fim, Sr. Presidente, creio ser importante assinalar que a tese que veda qualquer tipo de investigação pelo Ministério Público, além de ferir a Constituição e a lei complementar já mencionada, não encontra sustentação nem mesmo no vetusto Código de Processo Penal, que, em seu art. 4º, parágrafo único, diz o seguinte:

“Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.”

A JURISPRUDÊNCIA DO STF SOBRE A MATÉRIA

Embora desnecessário para o deslinde deste caso, faço um breve retrospecto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a questão levantada pelo eminente Relator.

A jurisprudência desta Corte sobre a matéria vem oscilando ao sabor dos casos trazidos para julgamento e das nuances espelhadas em cada um deles.

No HC 77.371, julgado pela Segunda Turma em 1º.09.1998, ficou expressamente consignado no voto do eminente relator, ministro Nelson Jobim:

“Quanto à aceitação, como prova, de depoimento testemunhal colhido pelo Ministério Público, não assiste razão ao paciente, por dois motivos:

a) não é prova isolada, há todo um contexto probatório em que inserida; e

b) a Lei Orgânica do Ministério Público faculta a seus membros a prática de atos administrativos de caráter preparatório tendentes a embasar a denúncia.” (RTJ 167/250)

Na ementa do acórdão ficou consignado:

“(…)

Legalidade da prova colhida pelo Ministério Público. Art. 26 da Lei 8.625/93.

Ordem denegada.” (RTJ 167/248 – grifo nosso)

No mesmo ano de 1998, em 7 de dezembro, a Segunda Turma veio novamente a enfrentar o tema, no julgamento do HC 77.770, rel. min. Néri da Silveira. Consta do respectivo acórdão:

“(…) 4. Com apoio no art. 129 e incisos, da Constituição Federal, o Ministério Público poderá proceder de forma ampla, na averiguação de fatos e na promoção imediata da ação penal pública, sempre que assim entender configurado ilícito. Dispondo o promotor de elementos para o oferecimento da denúncia, poderá prescindir do inquérito policial, haja vista que o inquérito é procedimento meramente informativo, não submetido ao crivo do contraditório e no qual não se garante o exercício da ampla defesa. (…)” (DJ 03.03.2000)

Ainda no mesmo ano, em 15 de dezembro, e perante a mesma Segunda Turma, foi julgado o RE 205.473, rel. min. Carlos Velloso.

Nesse julgado, que contrasta singularmente com o posicionamento tomado pela Turma havia apenas uma semana, ficou assentado:


“(…)

I – Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, CF, no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (CF, art. 144, §§ 1º e 4º). (…)” (RTJ 173/640 – grifo nosso)

Por fim, em 06.05.2003, a mesma Segunda Turma, no julgamento do RHC 81.326, ausentes os ministros Maurício Corrêa e Celso de Mello, prosseguiu em sua reviravolta jurisprudencial, consignando na ementa do acórdão:

“(…)

A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do Parquet realizar e presidir inquérito policial.

Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime.” (DJ 1º.08.2003 – grifo nosso)

Noto, Sr. Presidente, que nesse último precedente, de que foi relator o ministro Nelson Jobim, S. Exa. Funda essencialmente a sua nova visão sobre o tema não na inteligência específica da Constituição de 1988, vista numa perspectiva global e sistemática, mas, sim, em interpretações de textos legais que datam de 1936 (Projeto Rao), 1941 (Código de Processo Penal) e 1957 (decisão do Supremo Tribunal Federal da lavra de Hungria).

Tais interpretações, ainda que válidas para um determinado período, não o são necessariamente para outro, especialmente tendo-se em conta a radical transformação do quadro constitucional e especialmente o saliente papel que se procurou atribuir ao Ministério Público no Estado brasileiro. Em suma, o método hermenêutico de cunho historicista, além de suas deficiências intrínsecas.

Sr. Presidente, eis a síntese do meu voto:

I) O inquérito policial, como a sua própria denominação está a indicar, é procedimento cuja condução cabe exclusivamente à polícia;

II) No entanto, a elucidação dos crimes e das condutas criminosas não se esgota no âmbito do inquérito policial. Tal elucidação pode ser fruto de apurações levadas a efeito por diversos órgãos administrativos, à luz do que dispõe o § único do art. 4º do CPP.

III) Nada impede que o Ministério Público, que é o titular da ação penal pública e natural destinatário das investigações, proceda ele próprio a averiguações destinadas a firmar sua convicção.

IV) No caso dos autos, contrariamente ao que sustentado pelo ilustre Min. Marco Aurélio, não houve investigação por parte do Ministério Público Federal.

Peço vênia, assim, ao ilustre relator e ao ministro Nelson Jobim, para deles discordar quanto ao fundamento de inexistência de justa causa por falta de atribuição do Ministério Público.

É como voto na questão preliminar. Quanto ao mérito, voltarei a me manifestar, se for o caso, após o voto do ilustre relator.

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