Estatuto do desarmamento

Justiça suspende ação penal contra comerciante por posse de arma

Autor

4 de setembro de 2004, 15h54

Quem possuía arma de fogo sem registro não poderia ter sido preso, nem denunciado, antes de terminar o prazo prorrogado para a entrega das armas à polícia, conforme os artigos 29, 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento. Esse foi o entendimento da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Paraná.

A Câmara concedeu Habeas Corpus parcial a Ambrósio Dovhi, que mantinha em sua casa duas armas de fogo. Com a concessão da ordem, foi trancada a ação penal, mas não foi concedida a devolução das armas apreendidas.

Da decisão não cabe mais recurso porque o procurador de Justiça José Júlio Amaral Cleto emitiu parecer pela concessão da ordem.

A ação penal foi proposta pelo Ministério Público estadual. O juiz Eduardo Novacki, da Vara Criminal da Comarca de Prudentópolis, no Paraná, recebeu a denúncia. Inconformado, o advogado do comerciante, Ayr Azevedo de Moura Cordeiro, impetrou Habeas Corpus. Ele alegou que deveria ser trancada a ação penal e as armas deveriam ser restituídas ou paga uma indenização ao seu cliente.

Cordeiro afirmou que seu cliente não poderia ter sido denunciado por posse de arma conforme prevê o artigo 12, porque na ocasião da apreensão ainda havia prazo para entrega das armas às autoridades policiais.

De acordo com o juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo, da Câmara do Tribunal de Alçada, no dia 19 de março foi publicada, no Diário da Oficial da União, a Medida Provisória 174/04, que “ampliou a validade legal dos portes já concedidos e os prazos para o registro inicial e entrega das armas de fogo irregularmente possuídas”.

Os juízes concluíram, por unanimidade, que “o crime pelo qual o paciente foi denunciado (artigo 12 do Estatuto do Desarmamento), não era típico à época do oferecimento da acusação, pois tratando-se de norma penal em branco, a descrição da conduta incriminadora necessitava ser integrada por uma norma futura, a qual somente passou a viger em 2 de julho do corrente ano”.

“De fato, como precedentemente anotado, se o paciente, voluntariamente, poderia entregar as armas de fogo que foram apreendidas no interior de sua residência, a apreensão efetivada foi ilegal, caracterizando, inclusive, o constrangimento ilegal com o oferecimento e recebimento da denúncia”, concluiu o relator.

Processo nº 0268376-3

Leia a íntegra do Acórdão:

HABEAS CORPUS – ARTIGO 12 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI Nº 10.826/03) — PACIENTE DENUNCIADO ANTES DO DECRETO QUE REGULAMENTOU OS PRAZOS DOS ARTIGOS 29, 30 E 32 DO REFERIDO DIPLOMA LEGAL — IMPOSSIBILIDADE — NORMA PENAL EM BRANCO — ATIPICIDADE — ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA PARA O EFEITO DE TRANCAR A AÇÃO PENAL.

1.Tendo sido ampliado temporalmente a data de início dos prazos previstos nos artigos 29, 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, não é lícito ao paciente responder ação penal como incurso nas sanções do artigo 12 do referido diploma legal, pois que somente seria típico o fato a ele imputado após o advento do decreto de regulamentação.

2.Podendo o paciente, voluntariamente, entregar as armas de fogo que foram apreendidas no interior de sua residência, caracteriza constrangimento ilegal o oferecimento e o recebimento da denúncia.

3.Inexiste tipicidade formal, na conduta de possuir arma de fogo em residência ou em empresa, durante a vacatio legis indireta (arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento), ou mesmo enquanto perdure a situação do art. 31 da Lei nº 10.826/03.

4.A restituição de coisa apreendida é estranha às hipóteses previstas à concessão de habeas corpus, que garante o direito de locomoção.

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de HABEAS CORPUS Nº 268.376-3, de PRUDENTÓPOLIS — VARA CRIMINAL, em que é impetrante o BEL. AYR AZEVEDO DE MOURA CORDEIRO, paciente AMBRÓSIO DOVHI e impetrado o JUIZ DE DIREITO DA VARA CRIMINAL DA COMARCA DE PRUDENTÓPOLIS.

1.O relatório da douta Procuradoria Geral de Justiça, o qual adoto, por brevidade, assim resume a questão tratada nos autos, verbis: O Bel. Ayr Azevedo de Moura Cordeiro, impetrou a presente ordem de habeas corpus em favor de Ambrósio Dovhí, argumentado que o referido paciente está a sofrer constrangimento ilegal, por parte da autoridade impetrada, acusado em tese, pelo crime capitulado no artigo 12 da Lei 10.826/2003.

Aduz para tanto, que em virtude da regra prescrita pelo artigo 1º da Lei 10.884/04 o qual alterou o termo inicial de contagem de prazos aludidos na Lei 10.826/2003, os prazos previstos nos artigos 29, 30 e 32, passaria a fluir 180 (cento e oitenta) dias após a publicação do decreto que os regulamenta, assim não poderia haver apreensão de armas possuídas por alguém no interior de sua residência, antes da regulamentação da aludida lei.

O impetrante alega que deveria ser determinado o trancamento da ação penal que sofre o paciente, restituindo-se as armas apreendidas no interior de sua residência, ou ordenando-se o pagamento de indenização, nos termos das Leis nº 10.826/03, bem como Lei nº 14.171/03 (Lei do Estado do Paraná) e Decreto Estadual nº 2.276/03.


Solicitadas às devidas informações junto à autoridade apontada como coatora, esta noticia que efetivamente o paciente foi preso em flagrante em data de 26 de março p. passado pelo cometimento, em tese, da infração do artigo 12 da Lei 10.826/2003, na mesma data foi arbitrada fiança e posto em liberdade; sendo recebida a denúncia foram determinadas as diligências necessárias, estando designado seu interrogatório para o dia 21.09.2004.

Face às informações mencionadas, a liminar foi indeferida, pois o pedido de liminar para trancamento da ação penal não poderia ser concedido naquele momento, uma vez que é necessário o pronunciamento da Câmara Criminal a respeito (fls. 70/72).

Ao final, o il. representante da douta Procuradoria Geral de Justiça, Procurador de Justiça, Dr. José Júlio Amaral Cleto, pronunciou-se pela concessão da ordem.

É O RELATÓRIO.

2. Afirma o impetrante que se o paciente poderia, voluntariamente, entregar as armas de fogo que foram apreendidas do interior de sua residência, não poderia a polícia fazer a apreensão das mesmas, estando caracterizada a falta de justa causa para a ação penal (fls. 05).

Do exame das peças que instruem o presente remédio heróico, verifica-se que o ora paciente foi preso em flagrante delito e denunciado como incurso nas sanções do artigo 12 da Lei nº 10.826/03, pela prática do seguinte fato delituoso:

Em data de 26 de março de 2004, por volta das 16h20min, no interior da residência situada na Rua Principal, 585, Vila Mariana, nesta cidade e comarca de Prudentópolis, o denunciado AMBROSIO DOVHI, com vontade livre e ciente da ilicitude de sua conduta, matinha em sua residência, sob sua guarda, armas de fogo de uso permitido, em desacordo com determinação legal, consistindo em um revólver, calibre 32, sem marca e nº legíveis, bem como um revólver calibre 32, marca Taurus nº de série 23514 (auto de apreensão de fls. 09), ambos em perfeito estado de funcionamento, aptos para disparo, conforme auto de exame de eficiência de fl. 17 (fls. 08/09).

O paciente foi preso em flagrante delito em data de 26 de março de 2004, a denúncia oferecida em 22 de abril e recebida em data de 04 de junho do corrente ano (fls. 53 – TA).

Com efeito, dispõe os artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento:

Art. 30 – Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.

Art. 32 – Os possuidores e proprietários de arma de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados nos termos do regulamento desta Lei.

Entretanto, com a edição Medida Provisória nº 174/2004, posteriormente convertida na Lei nº 10.884/2004, a data de inícios dos prazos acima referidos foi adiada, verbis:

Art. 1º – O termo inicial dos prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da data da publicação do decreto que os regulamentar, não ultrapassando, para ter efeito, a data limite de 23 de junho de 2004.

Outrossim, o Decreto nº 5.123, de 1º de julho de 2004, passou a vigorar na data de sua publicação no Diário da Justiça da União, que se deu em 02 de julho de 2004.

Assim, como foi ampliado temporalmente a data de início dos prazos previsto como foi ampliado temporalmente a data de início dos prazos previstos nos artigos 29, 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, o paciente não poderia ter sido denunciado nas sanções do artigo 12 do referido diploma legal, pois que somente seria típico o fato a ele imputado após o advento do decreto de regulamentação.

Damásio de Jesus, em artigo inserto na revista Síntese, à propósito do tema, leciona:

Os arts. 29, 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento dispõem sobre os prazos:

1. de expiração das autorizações para o porte de arma de fogo concedidas em face da legislação anterior (art. 29);

2. para o registro das armas de fogo ainda não registradas (art. 30);

3. de entrega das armas de fogo não registradas à Polícia Federal (art. 32).

Afirmam essas disposições:

“Art. 29. As autoridades de porte de armas de fogo já concedidas expirar-se-ão 90 (noventa) dias após a publicação desta Lei.

Parágrafo único. O detentor de autorização com prazo de validade superior a 90 (noventa) dias após sua publicação, sem ônus para o requerente”.

“Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos”.


“Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.

Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo e no art. 31, as armas recebidas constarão de cadastro específico e, após a elaboração de laudo pericial, serão encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, ao Comando do Exército para destruição, sendo vedada sua utilização ou reaproveitamento para qualquer fim”.

Ocorre que, de acordo com a Medida Provisória nº 174, de 18 de março de 2004, publicada no Diário Oficial da União de 19 de março de 2004, a data de início dos prazos dos referidos dispositivos foi adiada. Eles deveriam ser considerados a partir da data da publicação da Lei nº 10.826/03, a qual ocorreu em 23 de dezembro de 2003. Nos termos da mencionada Medida Provisória, porém, cumpre que sejam contados a partir do dia da publicação do decreto de regulamentação do Estatuto do Desarmamento, ainda não editado.

A Medida Provisória nº 174/04, na verdade, ampliou temporalmente a validade legal dos portes já concedidos e os prazos para o registro inicial e entrega das armas de fogo irregularmente possuídas.

No caso do art. 29, na redação original, sem se levar em conta a medida provisória, as autorizações de porte de armas de fogo já concedidas expiraram 90 dias após 23 de dezembro de 2003 (data da publicação da Lei nº 10.826/03) Depois desse prazo, deveriam ser consideradas ilícitas a sua propriedade, posse etc., conduzindo os fatos, por exemplo, à tipicidade do crime descrito no art. 14 do Estatuto do Desarmamento (porte ilegal de arma de fogo de uso permitido). Diante da medida provisória, o lapso de 90 dias teve sem termo a quo alterado, passando para o dia da publicação do decreto de regulamentação, ainda inexistente.

Na hipótese do art. 30, em sua feição primitiva, os proprietários e possuidores de armas de fogo em situação irregular, isto é, não registradas, sob pena de responsabilidade criminal, precisavam legalizá-las no prazo de 180 dias após a publicação da Lei nº 10.826/03 (23 de dezembro de 2003). Depois desse lapso, não sendo registradas, incidiria, em princípio, o crime do art. 12 da nova Lei Especial (posse irregular de arma de fogo de uso permitido). Em face da Medida Provisória nº 174/04, esse prazo terá início na data da publicação da regulamentação vindoura.

De acordo com a primeira redação do art. 32, os detentores de armas de fogo não registradas tinham o prazo de 180 dias, após a publicação da Lei nº 10.826/03 (23 de dezembro de 2003), para entregá-las à Polícia Federal. Omisso o detentor, recairia o fato, por exemplo, nas malhas dos crimes dos arts. 12 ou 14 da Lei nova (posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso permitido). Por força da medida provisória, teremos como data inicial do prazo o dia da publicação do decreto de sua regulamentação.

Vê-se que a Lei nova, qual seja a que instituiu o Estatuto do Desarmamento, fixou um período original para que os cidadãos afastassem suas armas de fogo da ilegalidade ou renovassem os registros concedidos nas hipóteses de seus arts. 29, 30 e 32. Desde que houvesse a regulamentação da Lei nº 10.826/03, ultrapassados os limites temporais permissivos, quais sejam 90 ou 180 dias a partir de 23 de dezembro de 2003, passariam a viger as normas penais incriminadoras, de modo que a sua propriedade, posse, detenção, porte etc. configurariam crimes. Com o advento da Medida Provisória nº 174, alterando o dies a quo da contagem dos lapsos, foi adiada a data de vigência das normas definidoras dos tipos penais delitivos da Lei nº 10.826/03, no que tange às matérias reguladas pelos mencionados dispositivos, pressupondo-se já vigente o decreto regulamentador. De maneira que não se deve o observar períodos de 90 ou 180 dias posteriores a 23 de dezembro de 2003, e sim os mesmos prazos a partir da publicação das futuras disposições de regulamentação, ficando condicionada a incriminação à entrada em vigor do novo decreto. Vê-se que, por via oblíqua, o Executivo alterou a eventual data de início de vigência das normas incriminadoras da Lei nova, aquelas que exigem regulamentação. Assim, por exemplo, um fato o qual seria considerado crime em face da Lei nova desde 22 de março de 2004, isto é, 90 dias depois da publicação do Estatuto do Desarmamento, passou a condicionar a sua tipicidade à edição do novo Regulamento”.

Vigente o Estatuto do Desarmamento, a maioria de suas normas se encontra sem eficácia, pois não foi regulamentado. Significa que algumas definições de crimes não podem ser aplicadas, por exemplo: as normas as quais tratam de armas de fogo de uso permitido e restrito. Não sabemos, legalmente, quais os seus conceitos, tendo em vista que a Lei das Armas de Fogo foi revogada pelo Estatuto do Desarmamento; o Decreto nº 2.222/97 disciplinava a lei anterior, que foi revogada; e a Lei nova — o Estatuto — não foi ainda regulamentada. Resultado: certas normas incriminadoras da Lei nº 10.826/03 não podem ser aplicadas, lembranças, como ressalva, as que não necessitam de regulamentação.


A Medida Provisória nº 174/04, como vimos, determina que os prazos dos arts. 29, 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento só tenham início a partir da data da publicação do novo Regulamento. Não podia fazê-lo, segundo nossa opinião. De maneira que, para nós, os termos iniciais dos prazos dos referidos artigos não sofreram alteração. Vencidos, porém, as normas incriminadoras podem ser aplicadas? Exemplo: no dia 22 de março de 2004, venceu o prazo de 90 dias pra que o detentor de porte pudesse renovar a autorização (art. 29). Já no dia 23 de março, sem renovação do porte, o portador da arma de fogo podia ser preso em flagrante pelo crime do art. 14 do Estatuto (porte ilegal de arma de fogo)?

Cremos que não, por não existir regulamentação de como proceder-se à renovação do porte. O mesmo se pode dizer de outros delitos, como os definidos no art. 12 do Estatuto, conforme nos esclarece MARCELO LESSA BASTOS.

Diante do Estatuto do Desarmamento, as normas de algumas figuras delitivas que não necessitam de regulamentação entraram em vigor no dia 23 de dezembro de 2003, data da publicação da Lei nº 10.826/03. Exemplos: omissão de cautela (art. 13), disparo de arma de fogo (art. 15), supressão ou alteração de marca ou numeração de arma de fogo (art. 16, parágrafo único, I) e tráfico internacional de arma de fogo (art. 18). Nesses casos, não configurando as disposições normas penais em branco, a tipicidade independe de complemento (regulamentação). Nos outros crimes, contudo, constituindo-os dispositivos leis penais em branco, a adequação típica fica condicionada à inobservância de ‘determinação legal ou regulamentar’ (elemento normativo dos tipos), a ser prevista no complemento.

Chega-se à conclusão de que, nas definições as quais requerem complemento, qual seja a regulamentação, como ela ainda não existe, são atípicos todos os fatos cometidos a partir da data da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento (23 de dezembro de 2003). É o que ocorre, por exemplo, nas figuras que mencionam armas de fogo de uso restrito, permitido e proibido (arts. 12, 14 e 16). Como não sabemos quais sejam, isto é, não temos elementos para classificá-las como de uso permitido, proibido ou restrito, não podemos enquadrar os fatos nos modelos legais. Criou-se uma de espécie de anistia temporária, perdurando a impunidade até que seja regulamentado o Estatuto do Desarmamento e satisfeitos determinados prazos.

Em suma, salvo as normas de incriminação que não dependem de regulamentação, somente serão típicos os fatos descritos no Estatuto do Desarmamento após:

1º) o advento do decreto de regulamentação;

2º) ultrapassados os prazos dos arts. 29, 30 e 32 da Lei nº 10.826/03, quando renovados seus termos iniciais (grifei – Maio de 2004, página 17/20).

Segundo magistério de Cezar Roberto Bitencourt, leis penais em branco são as de conteúdo incompleto, vago, lacunoso, que necessitam ser complementadas por outras normas jurídicas, geralmente de natureza extrapenal. Na linguagem figurada de Binding, ‘a lei penal em branco é um corpo errante em busca de sua alma’. Como conclui Luiz Régis Prado, ‘portanto, na lei penal em branco, o comportamento proibido vem apenas enunciado ou indicado, sendo a parte integradora elemento indispensável à conformação da tipicidade’ (Manual de Direito Penal, Parte Geral, 6ª edição, Editora Saraiva, 2000).

Júlio Fabbrini Mirabete, em seu Manual de Direito Penal, ao tratar da norma penal em branco, leciona:

Referem-se os doutrinadores às chamadas normas penais em branco (ou leis penais em branco). Enquanto a maioria das normas penais incriminadoras é composta de normas completas que possuem preceito e sanções integrais de modo que sem aplicadas sem a complementação de outras, existem algumas com preceitos indeterminados ou genéricos, que devem ser preenchidos ou completados. As normas penais em branco são, portanto, as de conteúdo incompleto, vago, exigindo complementação por outra norma jurídica (lei, decreto, regulamento, portaria, etc.) para que possam ser aplicadas ao fato concreto. Esse complemento pode já existir quando da vigência da lei penal em branco ou ser posterior a ela (Editora Atlas, 19ª edição, 2003).

E, ainda, a lição de Luiz Regis Prado:

A lei penal em branco pode ser conceituada como aquela em que a descrição da conduta punível se mostra incompleta ou lacunosa, necessitando de outro dispositivo legal para a sua integração ou complementação. Isso vale dizer: a hipótese legal ou prótase é formulada de maneira genérica ou indeterminada, devendo ser colmatada/determinada por ato normativo (legislativo ou administrativo), em regra, de cunho extrapenal, que fica pertencendo, para todos os efeitos à lei penal. Utiliza-se assim do chamado procedimento de remissão ou de reenvio a outra espécie normativa, sempre em obediência à estrita necessidade.


Portanto, na lei penal em branco, o comportamento prescrito (ação ou omissão) vem apenas enunciado ou indicado (só parcialmente descrito), sendo a parte integradora elemento indispensável à conformação da tipicidade penal. Mas a conseqüência jurídica aplicável encontra-se regularmente prevista (Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. I, parte geral, 4ª edição, Editora RT).

Dessa maneira, conclui-se que o crime pelo qual o paciente foi denunciado (artigo 12 do Estatuto do Desarmamento), não era típico à época do oferecimento da acusação, pois tratando-se de norma penal em branco, a descrição da conduta incriminadora necessitava ser integrada por uma norma futura, a qual somente passou a viger em 02 de julho do corrente ano.

Daí, com propriedade, consignou o culto Procurador de Justiça, Dr. José Júlio Amaral Cleto, em seu proficiente parecer, verbis:

A impetração merece prosperar.

A Medida Provisória nº 174, de 18 de março de 2004, em seu artigo 1º, dispõe que: “o termo inicial dos prazos previstos nos artigos 29, 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da data de publicação do decreto regulamentar”.

A Lei nº 10.826/03 dispôs, no art. 30 que “os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta lei, solicitar o seu registro, apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos”. Tal dispositivo também constou na lei anterior (art. 5º, Lei nº 9.437/97).

Na nova legislação, a possibilidade do desarmamento voluntário foi ampliada, e muito, pois o art. 32 autoriza que “os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta lei, entregá-las a Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei”.

Vale dizer que o art. 30 diz respeito à arma de fogo suscetível de registro pelo cidadão comum, é o caso em questão; enquanto o art. 32 refere-se às armas de uso restrito ou proibido, quando impossível o seu registro, importando a entrega na sua perda, mediante indenização, se houver boa-fé.

Na residência do paciente foi encontrada armas de fogo de uso permitido (calibre 32), fato ocorrido ainda no curso do prazo de vacatio legis indireta, segundo o disposto na Medida Provisória nº 174.

Logo, o dispositivo penal imputado ao paciente ainda não possui eficácia.

Neste sentido, alguns doutrinadores analisaram sob tal tema e salientaram que:

“As pessoas que possuem em sua residência ou em sua empresa (neste último caso, favorecendo-se só o titular ou o responsável legal) armas de fogo seja de uso permitido ou restrito, bem como munições ou acessórios para armas de fogo, não estão sujeitas à prisão ou a qualquer outro constrangimento ilegal, durante o prazo de vacatio legis indireta (artigos 30 e 32) ou mesmo enquanto perdure a situação do artigo 31 da Lei nº 10.826/03. Não existe, portanto tipicidade formal na conduta de possuir arma de fogo em residência ou em sua empresa. Logo, não se pode falar nessas circunstâncias em estado de flagrância. Também não cabe processo nem indiciamento. (…) Não há hoje tipicidade material na conduta de possuir arma de fogo em residência ou empresa (pelo seu titular ou responsável legal), porque os possuidores e proprietários dessa arma podem registrar ou entregá-la para a polícia Federal, no prazo de cento e oitenta dias (artigos 30 e 32) ou a qualquer tempo artigo (artigo 31). Enquanto perdura a força normativa dessas anistias (cento e oitenta dias em relação aos artigos 30 e 32 e a qualquer tempo no que concerne ao artigo 31) não há que se falar e delito de posse de arma de fogo”.

Apenas a título de comento, embora tal crime seja considerado crime permanente, ocorre à interrupção da consumação no momento da prisão em flagrante, na vigência da nova lei.

Logo, ela é aplicável em relação à integridade da conduta, pois “o crime permanente existe quando a consumação se prolonga no tempo, dependendo da ação do sujeito ativo” Ou como nos diz Fernando Capez: “Crime permanente: o momento consumativo se protai no tempo e o bem jurídico é continuamente agredido” (fls. 72/75).

De fato, como precedentemente anotado, se o paciente, voluntariamente, poderia entregar as armas de fogo que foram apreendidas no interior de sua residência, a apreensão efetivada foi ilegal, caracterizando, inclusive, o constrangimento ilegal com o oferecimento e recebimento da denúncia.

Com efeito, até que sobrevenha o termo final dos prazos elencados nos arts. 29, 30 e 32 da Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, alterados pela Lei nº 10.884, de junho de 2004 que em seu artigo 1º dispôs que o termo inicial dos prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, passa a fluir a partir da data da publicação do decreto que os regulamentar, cujo Decreto nº 5.123 de 1º de julho de 2004, que regulamentou o Estatuto do Desarmamento, foi publicado no DJU em 02 de julho de 2004, é manifesto o constrangimento ilegal.

De outro lado, o pedido de restituição das armas, deverá observar o art. 120 do CPP, sendo também, matéria estranha ao conhecimento deste writ, a pretendida indenização, sendo que uma pretensão à evidência prejudica a outro, sendo inadmissível, também, a supressão de um grau de jurisdição.

Por tais razões, concedo parcialmente a ordem, para o efeito de trancar a ação penal.

EX POSITIS, ACORDAM os Juízes integrantes da Quarta Câmara Criminal, por unanimidade de votos, em conceder parcialmente a ordem, consoante enunciado.

Participaram do julgamento os Senhores Juízes Lídio J. R. de Macedo, Presidente, com voto, e Arquelau Araújo Ribas.

Curitiba, 12 de agosto de 2004

LAURO AUGUSTO FABRÍCIO DE MELO

Juiz Relator.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!