Contribuição de inativos

Conheça o voto de Carlos Ayres Britto sobre contribuição de inativos

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1 de setembro de 2004, 19h36

“A finalidade do regime previdenciário público é conferir benefícios (e não malefícios) a cada um dos participantes do sistema. Por isso mesmo, não pode operar senão na perspectiva da configuração de direitos subjetivos que se tornem indisponíveis para o Ente mantenedor de tal sistema. Daí não se poder acusar a contribuição previdenciária pública de expediente feridor do princípio da irredutibilidade de vencimentos, pois, afinal, quem se beneficia do desconto financeiro mensal é o próprio servidor-segurado”. O entendimento é do ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, que votou pela não contribuição dos inativos.

O julgamento no STF sobre a constitucionalidade do desconto foi favorável ao governo, por sete votos a quatro. A decisão, no entanto, foi pelo meio termo. Ao mesmo passo que não afastou a contribuição, aumentou o limite de isenção dos inativos para R$ 2,5 mil.

Segundo Britto, “as aposentadorias e pensões dos servidores públicos efetivos seriam custeadas com recursos do Tesouro, tão-somente. Se prefere, no seu nascedouro, a Lei Suprema de 1988 nem sequer estabelecia regime de auto-financiamento previdenciário para os servidores públicos civis federais (pessoal ativo, registre-se), em tema de aposentadoria e pensão. Tudo era direta e exclusivamente custeado pelo Erário”.

Leia a íntegra do voto:

V O T O

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO

Senhor Presidente, Senhor Procurador-Geral da República, Senhores Ministros, do exame dos dispositivos referidos pela eminente Relatora, todos pertencentes à Emenda Constitucional nº 41, de 2003, depreende-se que a emenda inseriu no corpo normativo da Constituição Federal de 1988 a cobrança de contribuição previdenciária aos inativos e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com as respectivas autarquias e fundações. Mais que isto, introduziu no sistema previdenciário público a novidade do caráter “solidário”. E aqui, Sr. Presidente, abro um parêntese para dizer que, num primeiro momento, identifiquei essa solidariedade como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estampado no inciso I do art. 3º:

“Art. 3º

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;”

Depois, porém, apercebi-me de que a solidariedade, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, em verdade, é fraternidade, aquele terceiro valor fundante, ou inspirador da Revolução Francesa, componente, portanto — esse terceiro valor –, da tríade “Liberté, Igualité, Fraternité”, a significar apenas que precisamos de uma sociedade que evite as discriminações e promova as chamadas ações afirmativas ou políticas públicas afirmativas de integração civil e moral de segmentos historicamente discriminados, como o segmento das mulheres, dos deficientes físicos, dos idosos, dos negros, e assim avante.

A solidariedade de que trata a Emenda nº 41 não decola do inciso I do art. 3º da Constituição. São figuras jurídicas, portanto, estanques, separadas, autônomas, que não mantêm entre si uma relação de pertinência ou de defluência.

Com o objetivo de fixar o entendimento da matéria desde as suas origens, permito-me uma breve lembrança da genealogia do sistema previdenciário público na Carta de Outubro e suas alterações formais. É que a Magna Lei, promulgada a 5 de outubro de 1988, consagrou um regime previdenciário para os servidores públicos federais não contributivo.

Significando, então, que as aposentadorias e pensões dos servidores públicos efetivos seriam custeadas com recursos do Tesouro, tão-somente. Se se prefere, no seu nascedouro, a Lei Suprema de 1988 nem sequer estabelecia regime de auto-financiamento previdenciário para os servidores públicos civis federais (pessoal ativo, registre-

se), em tema de aposentadoria e pensão. Tudo era direta e exclusivamente custeado pelo Erário (neste sentido, o texto da minha própria lavra, intitulado “A Lei Federal nº 9.783/89 e suas Inconstitucionalidades”, 2ª tiragem revista e ampliada, ASIPUFS, Universidade Federal de Sergipe, ano de 1989, p. 12).

Com o advento da Emenda Constitucional nº 03, de 17 de março de 1993, no entanto, e, mais especificamente, com a inclusão do § 6º no art. 40 da Lex Maxima, introduziu-se um dispositivo para possibilitar a cobrança de contribuições dos servidores públicos, visando ao custeio, juntamente com os recursos do Tesouro, das respectivas aposentadorias e pensões. Ato contínuo, questionou-se nesta egrégia Corte a extensão do dever de contribuição aos aposentados e pensionistas do Setor Público.

A tese vencedora, por maioria, foi cristalizada no julgamento da ADI 1.141-2/DF (DJ de 18.10.96), conduzida pelo voto do eminente Ministro-relator Octavio Gallotti, no sentido de que, em face da perfeita simetria de regime jurídico ativo-inativo e paridade remuneratória, possível seria a cobrança da contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas. Isto, ressaltese, antes da promulgação da Emenda nº 20/98. De toda maneira, de logo permito-me discordar da presente exegese, data venia, a partir dos fundamentos mais adiante lançados.


Prossigo na etiologia do sistema jurídico-constitucional previdenciário, para recordar que ele, já a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de agosto de 1998, passou a ser caracterizado pelo trinômio contribuição-retribuição-paridade (art. 40).

É como dizer: o servidor contribui, durante um tempo mínimo de logo fixado pela Constituição (35 anos para o sexo masculino, e 30 anos para o sexo feminino) e o Estado lhe retribui com o benefício da aposentadoria; ou com o benefício da pensão por morte, se for o caso. Mas esse benefício corresponde, matematicamente, à remuneração que o servidor vinha percebendo no momento da passagem da atividade para a situação de inatividade permanente.

Instaurou-se, portanto, do ângulo do servidor público efetivo — e aqui peço a atenção dos eminentes Ministros: acho que se instaurou uma relação jurídica não ortodoxamente tributária –, mas uma relação jurídica do tipo securitário, perfeitamente definida: suportaria ele — servidor — o pagamento de uma contribuição por um período determinado, considerando um limite de idade específico, visando a obtenção de um prêmio futuro (e a eminente Relatora falou de aposentadoria enquanto prêmio). Quer dizer: os proventos da aposentadoria, ou da futura pensão dos respectivos dependentes, conforme o caso. E tudo em homenagem a uma peculiaridade do regime de aposentadoria ou de pensão pública: a peculiaridade de se constituírem — também peço a atenção para esse aspecto — nos únicos direitos subjetivos para cujo gozo o servidor paga do seu próprio bolso.

Não existe outro direito subjetivo para cuja aquisição o servidor público desembolse recursos: décimo terceiro, repouso semanal remunerado, férias, terço ferial, não existe; só aposentadorias e pensões são direitos subjetivos demandantes de autocusteio, autofinanciamento pelo servidor público.

Noutros termos, o objetivo específico do sistema é oferecer proteção a quem previdentemente desembolsou recursos para formação de uma economia que, embora comum ao funcionalismo (a eminente Ministra Ellen Gracie falou dessa economia conjunta), é de aplicabilidade

benfaseja individual. É ainda afirmar: a finalidade do regime previdenciário público é conferir benefícios (e não malefícios) a cada um dos participantes do sistema. Por isso mesmo, não pode operar senão na perspectiva da configuração de direitos subjetivos que se tornem indisponíveis para o Ente mantenedor de tal sistema. Daí não se poder acusar a contribuição previdenciária pública de expediente feridor do princípio da irredutibilidade de vencimentos, pois, afinal, quem se beneficia do desconto financeiro mensal é o próprio servidor-segurado.

Quero lembrar, nessa linha de pensamento, que estamos diante de uma insólita relação securitária, no bojo de uma relação jurídica funcional definida como de Direito Público e, portanto, unilateralmente ditada pelo Estado.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Em termos,

Excelência, porque, se formos à lei alusiva ao Regime Jurídico Único, vamos ver que o sistema é contratual.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – É isso

que quero acrescentar. Há um traço de contratualidade nesse regime securitário. Tanto assim que a Constituição, no capítulo da Previdência Social Geral, usa oito vezes a palavra “segurado” e nenhuma vez a palavra “contribuinte”. Usa quatro vezes a palavra “filiado” ou “filiação” e, no capítulo do Sistema Tributário, a Constituição não usa nenhuma vez a palavra “segurado”; usa vinte vezes a palavra “contribuinte”. Ou seja, ainda que soe estranho aos nossos ouvidos, o contribuinte de contribuição previdenciária não é contribuinte. É segurado.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Mas Ministro Carlos Britto, o que é, no fundo, um contribuinte de um tributo? É alguém que está obrigado a despender algo seu em favor, perfeito?

O SENHOR MINISTRO AYRES CARLOS BRITTO – Até aí

estamos de acordo. É o art. 3º do Código Tributário.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Perfeito. E

segurado, posto no regime previdenciário, é facultativo ou

obrigatório?

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – É

obrigatório. Até aí estamos outra vez de acordo.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Então, daí,

Vossa Excelência poderá perfeitamente deduzir que se trata de

um contribuinte.

O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Art. 195,

II, Ministro Carlos Britto.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Mas

vamos atentar para a inespecificidade das situações ou a

dicotomia das situações. Qual é o tributo que exige do Estado

retribuir com dinheiro? Nenhum.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Quem sabe

Vossa Excelência esteja cuidando de empréstimo compulsório?


O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO –

Empréstimo compulsório para quem o considera tributo.

Entretanto, aposentadoria é retribuída com dinheiro que não

foi objeto de mútuo feneratício.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Ministro

Carlos Britto, não é retribuição com dinheiro; é benefício.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Mas

traduzido em pecúnia.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Mas é claro.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Inatividade sem

perda.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Isso

não invalida o meu raciocínio.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Se Vossa Excelência for ao sistema constitucional tributário, artigo 149, encontrará norma matriz da contribuição social de seguridade social.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Vou colocar outro complicador aos nossos quadros mentais: qual é o tributo que o Poder Público repassa para a iniciativa privada totalmente? Sei que Poder Público pode delegar as atividades de fiscalização e arrecadação, mas não a de destinação.

Ora, a Constituição mesma diz que o Estado pode ser contribuinte de instituto de previdência privada complementar. E não existe um tributo que tenha essa destinação. Quero, apenas, chamar a atenção para a necessidade de se examinar com um novo olhar a questão.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Mas na

previdência privada tem-se contribuinte obrigatório?

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Quero apenas mostrar a necessidade de se ver com um novo olhar, com um novo par de olhos, essa figura da contribuição previdenciária; a identidade com os tributos lato sensu não é ortodoxa e precisamos reconhecer essa peculiaridade de regime jurídico.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Mas, Vossa

Excelência, com isso, está criando um suspense incrível.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Vou

desfazer o suspense. É nessa linha de pensamento que se pode constatar o óbvio: a que verbo recorreu o legislador de reforma para instituir o regime contributivo da previdência pública? “Assegurar”, por ser essa voz de comando a invariavelmente utilizada para outorgar direitos subjetivos, conforme se vê das seguintes passagens: art. 5º, incisos V, VII, XIV, XXVIII, XXXIV, etc.

Este, claramente, o regime constitucional público-previdenciário que vige entre nós. Agora, do ângulo do Poder Público, exclusivamente, o dispositivo constitucional em causa (art. 40, caput) estabeleceu que a Previdência Social deverá ser organizada com observância de critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema. É deduzir: cabe ao Poder Público, enquanto exclusivo gestor das verbas arrecadadas, fazê-las render o suficiente para assegurar a continuidade vitalícia dos benefícios que são próprios do sistema; estabelecendo, para tanto, uma política de número de funcionários, fixação de base de cálculo e de percentual de descontos previdenciários o bastante para o alcance perene daquele patamar da auto-suficiência financeira.

Ou seja, é questão do equilíbrio atuarial e financeiro, não diz respeito ao servidor. Diz exclusivo respeito ao gerente. Compete ao gerente administrar a arrecadação de recursos para fazê-los render o suficiente para a auto-sustentação financeira do sistema. Não interessa ao servidor, mas, sim, ao governo. Quero dizer que, muitas vezes, a questão da Previdência, quando se fala em déficit, Sra. Relatora, não é uma questão de Previdência, porém de providência, providência gerencial do Poder Público. Tanto assim, tanto o sistema é teoricamente rentável e autosuficiente que o mercado previdenciário privado experimenta o maior assanhamento para abocanhar uma fatia desse promissor segmento. E os fundos de pensão, em todo o mundo, que nadam em dinheiro, não evidenciam eles que o sistema é rentável, é auto-sustentável?

O SR. MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) – Não se esqueça que o dinheiro público vai ao fundo de pensão.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Claro, Vossa Excelência tem razão. É sempre bom a gente se lembrar

disso, aqui no Brasil.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Interessa a entrada nesse campo.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Pouco importando, para o servidor, se a gestão desses recursos se dará pelo próprio Estado, ou por interposta pessoa privada, naturalmente habilitada em processo público de licitação. Como foi cuidadoso o legislador de reforma: mesmo na excepcional hipótese de o volume de recursos aportados para o custeio do regime previdenciário não se revelar suficiente, ele (o autor da Emenda nº 20) tratou de suplementar essa contabilidade atuarial, mediante o aporte de novas fontes de receita para o mesmíssimo custeio. É curioso, não vi isso em nenhum dos pareceres tão bem feitos, tão alentados, tão elaborados com proficiência, não vi uma citação desse emblemático art. 249 da Constituição Federal.


O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Faltou desequilíbrio, Ministro. Esta ação está absolutamente desequilibrada, todos os pontos de vista são numa direção; só restou a manifestação, de ofício, do Advogado-Geral da União. Fora disso, só há pontos de vista que convergem na direção dos interesses corporativos.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Mas seria corporativo o

interesse geral como é o interesse dos servidores?

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Bem, é a específica regra de garantia em que o novidadeiro art. 249 consiste, nesta aclaradora legenda:

“Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos respectivos servidores e seus dependentes, em adição aos recursos dos respectivos tesouros, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir fundos integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e a

administração desses fundos.”

É nisso que reside a solidariedade: a sociedade e o Estado se emparceiram para desenvolver ações de seguridade social em benefício dos aposentados e pensionistas. É o que está dizendo o artigo 249. É nesse sentido que a solidariedade pode ser interpretada. Tanto que a Constituição já falava, desde a origem, desde a redação

originária que a seguridade social resulta de uma ação conjunta da sociedade e do Estado, e nem precisou falar de solidariedade. Era uma solidariedade que já estava implícita, embutida, e somente agora veio a ser explicitada.

De tudo quanto foi exposto, é de se concluir que os proventos da aposentadoria e eventuais pensões se constituem em direito subjetivo do servidor público ou seu dependente, quando for o caso, desde que preenchidos os requisitos constitucionais. Noutros termos, a partir do momento que o servidor público passa a preencher as condições de gozo do benefício, já não poderá, por efeito de nenhum ato da ordem legislativa (art. 59), ser compelido a contribuir para o sistema previdenciário: nem por determinação legal, nem por imposição de Emenda Constitucional. E por que isto? Em livro recentemente publicado pela Editora Forense, sob o título “Teoria da Constituição” (2003), nota 9 das páginas 112/113, escrevi:

“(…) se um determinado funcionário alcança o tempo mínimo de 35 anos de contribuição previdenciária, ele ganha o direito à aposentadoria com proventos integrais, e esse direito, por fluir direta e exclusivamente de uma norma geral, se categoriza como adquirido.

Contudo, se o funcionário formaliza o seu pedido de aposentação e a Administração Pública expede o respectivo ato, com seqüenciada aprovação pelo Tribunal de Contas, o direito subjetivo, que era do tipo adquirido, passa a se chamar ato jurídico perfeito. E se alguém impugna em Juízo a validade de tal aposentadoria, vindo o Judiciário a definitivamente confirmar, não a impugnação, mas o ato executiva da aposentação, o direito subjetivo, que já teve a sua fase de direito adquirido e o seu estágio de ato jurídico perfeito, agora muda

outra vez de nome e passa a se chamar coisa julgada (…)”.

As três hipóteses invocadas estão acobertadas pelo manto da petrealidade (art. 60, § 4º, IV – CF), pois direito individual insculpido no inciso XXXVI do art. 5º (“A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”). Justamente ele, art. 5°, constitutivo dos direitos subjetivos públicos, ou direitos oponíveis ao próprio Estado, marcadamente.

Ora, caso a lei venha a entrar em rota de colisão com as régias situações jurídicas ativas, padecerá de vício insanável de inconstitucionalidade. Quanto a essa conclusão, as posições doutrinárias e jurisprudenciais são uníssonas.

Entretanto, pergunta-se: E se a Emenda Constitucional não assegurar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada? Em face da dignidade da espécie normativa invocada, seria possível? Penso que não. Explico:

Retornando a lidar com o bloco dos três institutos, aduzimos que não tem relevância o fato de a legenda constitucional somente incluir a lei (não a emenda) como norma proibida de retroagir para prejudicá-los. Já enfrentamos academicamente a questão, em parceria com WALMIR PONTES FILHO (“Direito adquirido contra as emenda

constitucionais”, estudo publicado no bojo da coletânea DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL, vol. II, Malheiros Editores, ano de 1997, pp 151/161), e os fundamentos então lançados parecem-nos resistir a contraditas.

Ampliamo-nos, até, nesta oportunidade, convencidos que estamos de que a Lex Legum encerra, na matéria, o seguinte esquema de interpretação:

I – tudo o que a lei está habilitada a fazer

fica inteiramente à mercê das emendas constitucionais, sem


que a Magna Carta necessite, portanto, de dizê-los às

expressas;

II – daqui não se deduz, entretanto, que tudo o que a lei não esteja habilitada a fazer fica também interditado às emendas. Nada disso! As emendas constitucionais podem tudo o que a lei pode e vão além: podem tudo o que a lei não pode, salvante recair sobre matérias clausuladas de petrealidade pela Constituição. Pronto! É esse racional esquema de exegese da Constituição que explica o fato de ela própria, Constituição, jamais dizer sobre que matérias podem recair as emendas. Não há necessidade da indicação desse vínculo entre determinadas matérias e a conformação normativa por via de emenda, porque a emenda pode tudo que a Magna Carta reserva para as leis (pouco importa se leis ordinárias, ou complementares, ou

delegadas, etc.)

Em tema de suas próprias emendas, quando o Código Político substitui o silêncio pela fala expressa é para dizer o que elas não podem. Elas não podem incidir sobre as matérias clausuladas como pétreas ou intangíveis ou irreformáveis, como, por exemplo, “a forma federativa de Estado”, “o voto direto, secreto, universal e periódico”, “a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias individuais” (de cuja redação a garantia dos direitos adquiridos faz parte, quer referentemente aos direitos concedidos por regra constitucional, quer os deferidos por outra modalidade de lei em sentido material).

Melhor técnica legislativa, impossível! Se a Constituição de 1988 fala a toda hora da leis, seja para lhes franquear certos conteúdos, seja para interditá-los, é porque já prescreveu, nas entrelinhas, que pedir o adjutório delas é reqüestrar a edição das emendas. E interditar as leis não é interditar as emendas, salvante, insista-se, naquelas matérias que desfrutam de intangibilidade perante a ação legislativo-conformadora do Estado (que não matérias apropriadamente chamadas de pétreas).

De outra parte, nenhum mal existe em reqüestrar a todo instante a lei porque a banalização da lei em nada trivializa a Constituição, que permanece formalmente a mesma. De revés, a banalização das emendas (que fatalmente ocorreria pela técnica de se dizer tudo que a elas competisse, tintim por tintim) acarretaria a banalização do próprio Texto Magno, que já não seria formalmente o mesmo a cada emenda produzida. A Constituição não pode prestigiar tanto as suas emendas a ponto de dar a sua vida por elas.

Permito-me agora dizer o seguinte: os que defendem a possibilidade de emenda ofender o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada partem de uma só base intelectiva: a Constituição não proibiu as emendas, só proibiu as leis de fazê-lo. Se esse raciocínio fosse levado às últimas conseqüências, cairíamos todos em contradições grotescas. Por exemplo: quando a Constituição falou da lei como veículo impositivo de deveres – positivos ou negativos –, só falou de leis (Art. 5º, II): “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei “; Ela não disse “senão em virtude de emenda”. E esse silêncio quanto às emendas iria interditá-las para impor obrigações positivas ou negativas a terceiros? É evidente que não.

Quando a Constituição falou de crime de responsabilidade (art. 85), disse que o Presidente da República incorreria em crime de responsabilidade quando deixasse de cumprir as leis ou as decisões judiciais. Ela não falou de emendas. Entretanto, é claro que ofender uma emenda é, sim, crime de responsabilidade. A Constituição simplesmente não falou de emenda porque não precisou.

Quando a Constituição emite o discurso de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI), ela está dizendo direito/lei, qualquer ato da ordem normativa constante do art. 59 da Constituição. A emenda está ali, prefigurada.

Então, entendo que as emendas estão proibidas de ofender as três emblemáticas e estelares figuras: o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Quanto à questão das cláusulas pétreas – a preocupação do Ministro Joaquim Barbosa –, eu lembraria que elas, na Constituição de 1988, não cumprem uma função conservadora, mas, sim, impeditivas de retrocesso, ou seja, garantem o progresso. O progresso então obtido é preciso ser salvaguardado. Quem nega à Constituição de 1988 esse caráter de uma constituição avançada, que fez do indivíduo hipossuficiente perante o Poder Público e do trabalhador hipossuficiente perante o empregador? Uma Constituição que se preocupou, sim, com distribuição de renda, com moralidade administrativa.

Uma Constituição entranhadamente nacionalista, a ponto de fazer do mercado interno patrimônio nacional (art. 219): “O mercado interno integra o patrimônio nacional…”; a ponto de fazer da soberania nacional no plano econômico o primeiro fundamento da ordem econômica; a ponto de dizer que eram objetivos da República Federativa do Brasil — como efetivamente são –:


“I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o

bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Ministro, V.Exa. me permite? Qualquer emenda neste sentido será inconstitucional.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Será, porque os fundamentos e objetivos da República são pétreos por definição.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Pois é, mas uma emenda harmônica com o que pretende, não faz sentido.

O SR. MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Uma emenda harmônica não. Uma emenda que robusteça esse teor de proteção do hipossuficiente é bem recebida. A petrealidade não chega ao ponto de impedir que uma norma protetiva receba adensamento. Pois não, Ministro Joaquim Barbosa.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Ministro

Carlos Britto, entendo que o intérprete da Constituição, o juízo constitucional, não pode, de forma alguma, enclausurar-se naquilo que os juristas anglo-saxões chamam de “ivory tower complex” – na torre de marfim – e discutir conceitos, dogmas, ignorando completamente a realidade social à qual o texto constitucional se aplica. O que está em jogo aqui, neste País, todos nós sabemos: é um sistema de aposentadoria de pessoas que se retiram, em sua grande maioria, da vida pública aos 45, 46 anos de idade.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – O que não ocorreu com V.Exa.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Poderia ter ocorrido se eu não tivesse sido nomeado para o Supremo Tribunal Federal.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Pois bem, a minha tese é basicamente esta: temos que exercer um juízo de ponderação de tudo o que Vossas Excelências acabam de dizer. Entendo, sim, que a teoria das cláusulas pétreas é muito importante para a preservação de um núcleo essencial, um núcleo de alta relevância.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Nós não podemos, de forma alguma, bastardizá-la ao ponto de achar que uma pequena contribuição, uma contribuição sobre o vencimento de quem, diferentemente do que ocorre no mundo inteiro, se jubila percebendo mais do que ganha na atividade, não podemos, de forma alguma, entender que essa pequena contribuição de caráter solidário possa vir a constituir uma violação à Constituição. Se levarmos adiante esse raciocínio, estaremos petrificando a Constituição, levando à ruptura do pacto. Esse catálogo imenso de direitos sociais — excelente que temos — há de ser examinado com granum sales.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Já fizemos isso aqui.

Examinamos que direitos — observadas primeira, segunda e terceira gerações –, realmente, são materialmente fundamentais. Esse sim. Agora, direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito são garantias materialmente constitucionais, não tenho dúvida.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – A questão que se coloca: é

um direito absoluto?

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Não, absoluto não. Mas a

Constituição…

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES – Se me permite um aparte? Estou me furtando participar do debate porque essa questão, obviamente, vai se estender, mas acho que já aprendi aqui hoje muito mais do que em tantas aulas que freqüentei – acho que freqüentei até muitas aulas. Em relação a essa questão de cláusula pétrea, há tantos caminhos para enfrentá-la. A temática da interpretação das cláusulas pétreas é um caminho extremamente rico para a discussão. Agora, afirmar simplesmente, como fez o Ministro Joaquim Barbosa – e, obviamente, não tenho nenhum compromisso com a tese que está se assentando a partir do voto da Relatora – que as cláusulas pétreas são instrumento de conservadorismo ou instrumentos antidemocráticos, traz-me certa preocupação, parece-me altamente delicado e veja que tivemos em um texto constitucional.

O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – São antimajoritárias.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES – Sim, antimajoritária, mas não

antidemocrática.

O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Não temos o adjetivo

antidemocrática.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES – Tivemos um texto

constitucional que não era democrático, a Carta de 1937, que

tem uma forma de dissolver até decisões do Supremo Tribunal

Federal, o artigo 96.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Todos sabemos disso.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES – Só estou lembrando. Temos que ter muita cautela com esse tipo de afirmação.

O SR. MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Exatamente a isso que convidei o Colegiado.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES – Certo. Mas há espaço exatamente para se fazer um esforço hermenêutico, um


distinguishing, sem fazer essas afirmações apodídicas.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Sr. Presidente, quando o Ministro Joaquim Barbosa falou que as futuras gerações estariam sendo sacrificadas pela geração contemporânea da Constituição, lembrei-me de um argumento muito usado pelos constitucionalistas — logo chamados de neoconstitucionalistas — europeus, que justificavam a reforma de Constituições, inclusive de cláusulas pétreas, para possibilitar o facilitado ingresso de seus Estados na União Européia. E o argumento era exatamente esse: uma geração não pode sacrificar a outra, não tem o direito de emparedar o futuro. Acontece que há uma diferença entre geração e nação. A Constituição originária é obra de quem? Da nação — o cacófato “da nação” é inevitável, não tenho como fugir dele.

O SR. MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) – Cuidado com a história.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – “Da nação”. E, dentro de uma mesma nação, as gerações vão se sucedendo. Toda nação é multigeracional. Não há espaço para uma geração se sentir oprimida por outra se a nação permanece a mesma, ou seja, assim como o rio é um único rio da nascente à foz — nascente, foz, corrente — tudo é uma só coisa, a nação de ontem é a mesma nação de hoje, do ponto de vista ontológico ou de sua identidade cultural. Se a geração atual entende que essa Constituição já se esclerosou, já não serve como locomotiva social, e as instituições nascidas à sombra dela já se esclerosaram, entraram em colapso cardíaco ou coisa que o valha, o que impede essa nova geração de pugnar por uma nova Constituição? Mas, enquanto a Constituição permanecer, tem que ser respeitada sem que haja, no interior dela, essa fricção geracional preocupante. Parece-me que não!

O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – As gerações da América Latina costumam ser muito curtas.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – É verdade. Mas não sou adepto do neoconstitucionalismo, permaneço fiel à Emmanuel Joseph Sieyés, citado pelo eminente Presidente, acho que ele foi insuperavelmente o grande intelectual no campo da dicotomia: poder constituinte — poder reformador. Em suma, só queria terminar lembrando dois óbices que são colocados, habitualmente, contra a teoria da intocabilidade do direito adquirido perante as emendas. Um é de que a tese do direito adquirido não impediu que em 1977, por efeito de uma emenda — acho que foi a Emenda nº 7 –, o divórcio fosse instituído no Brasil. Aí se diz, ora, e quem se casou antes, debaixo da cláusula de impossibilidade de separação judicial ou de impossibilidade de contrair novas núpcias, como ficou diante da Lei do Divórcio? E o direito adquirido a permanecer numa relação íntegra? Eu respondo o seguinte: não existe esse direito adquirido. O que havia era uma proibição de contrair novas núpcias para cada um dos casados. Não existia o direito adquirido de permanecer casado, o que havia era proibição de contrair novas núpcias. E apenas se removeu uma proibição. Ou seja, não havia autonomia de vontade para casar de novo e veio a lei e disse que ela ficaria assegurada.

Para concluir, é preciso que a gente volte a falar, ainda que rapidamente, da questão da escravidão. Sei que o Ministro

Pertence tem esse tipo de preocupação. A escravidão foi abolida no Século XIX, à luz da Carta de 1824.

O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Todas as grandes reformas à Constituição de 1824 se fizeram inconstitucionalmente por lei ordinária.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Já procurei uma resposta na própria Constituição. A Constituição de 1824 não fazia do direito adquirido uma figura jurídica autônoma, cumprindo essa função de bloqueio de qualquer legislação. Não havia a figura do direito adquirido enquanto garantia genérica para todo e qualquer direito. A

Constituição assegurava o direito de propriedade, porém, ao falar dos escravos, fez por forma oblíqua, dissimulada, disse que somente era cidadão com direito a votar os libertos. Ora, mas ao prever isso sem dizer o que significava liberto remeteu para a lei a disciplina de abolir a escravidão e tornar o escravo liberto. E mais ainda, ela dizia que só era constitucional o que dissesse respeito à separação dos Poderes e aos direitos e garantias individuais. Como, entre os direitos e garantias individuais, não explicitou o de submeter alguém à escravidão — e ela disse que tudo mais iria para a legislação comum –, a legislação comum ocupou o seu espaço muito bem e aboliu a escravatura.

O SR. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Brilhante defesa.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – E aboliu até muito tarde. Devia ter vindo bem mais cedo. Sr. Presidente, concluo dizendo o seguinte: por essas razões que lancei à mais douta consideração de V.Exas., e por todas aquelas razões que enxerguei no muito bem lançado voto da eminente Relatora Ellen Gracie, peço todas as vênias ao Ministro Joaquim Barbosa para acompanhar, com esses acréscimos que faço, o voto da Ministra Ellen Gracie.

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