Cena brasileira

Judiciário brasileiro está em estado de greve há muitos anos

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26 de outubro de 2004, 16h16

Tem um velho ditado que reza que o “bom empregado” é aquele que não falta ao trabalho. Não por disciplina, mas para que não saibam que ele na verdade é totalmente inútil. Pois bem, o ditado tem muita significância em épocas de greve. O país dá mostras de que está com areia na engrenagem, pulsando com arritmia, quase parando. Aliás, algumas coisas já pararam, menos o sistema de compensação e os salários dos servidores do Judiciário (como o paulista que esteve meses parado).

Se de um lado a greve é um movimento legítimo de reivindicação, não obstante a discussão sobre a legalidade pela ausência de regulamentação, de outro, traz à reflexão o “bom empregado que não falta ao trabalho”. A greve dos bancários, por exemplo, além de jogá-los contra a população que não entendeu ainda (nem eu) porque tem que arcar com os ônus das brigas alheias, também serve para os banqueiros. É isso mesmo. Esta greve serviu aos banqueiros, mais do que aos bancários.

Com a greve, os bancários “faltaram ao trabalho”, e os banqueiros, se tinham alguma dúvida, puderam concluir que a população realmente se vira bem com os caixas de auto-atendimento. Tudo é questão de hábito. A população só não se acostumou é com a escassez de dinheiro, e esta situação não muda com ou sem greve dos bancários; talvez mude com a dos banqueiros se protestassem palavras de ordem como “é hora de greve, chega de juro, tá todo mundo duro, chega de juro, tá todo mundo duro”. Esta sim é a greve que a população está esperando, mas, pelo jeito, esta greve está de greve. Agências fechadas, sistema de compensação funcionando, cheques caindo, contas vencendo e mesmo o mais relutante dos clientes conservadores é obrigado a usar o auto-atendimento.

A greve passa, mas não a sensação de ver o seu dinheiro caindo dentro de um envelope sem saber se ele realmente vai para sua conta. Eu mesmo fico sem dormir até o dia seguinte para conferir se depositaram o dinheiro na minha conta, e chego até a ter pesadelos com meu dinheiro sendo engolido por aquela máquina cheia de botões, e no 0800, um atendente sempre falando no gerúndio, diz que estará vendo, estará resolvendo, estará verificando, “senhor, estarei repassando a ligação…”. Caiu. O cliente, obrigado pela greve a utilizar o auto-atendimento, acaba vendo que não é tão ruim assim.

Os banqueiros percebem que na greve também não é tão ruim assim pois aquelas demissões previstas para 2010, em razão da modernização, podem perfeitamente ser antecipadas diante do hábito súbito da população em utilizar o auto-atendimento. Para os bancários também sobra um aspecto positivo: durante a greve, com o tempo vago, puderam ler os classificados de empregos. Mas se alguém foi lesado com a greve, pode buscar amparo no Judiciário. Mas este, em alguns estados, também está parado. E aqui não cabe a aplicação do ditado “bom empregado que não falta ao trabalho para não saberem que não faz falta”. Neste caso, o patrão — o povo — já vinha desconfiando há muito que o empregado estava faltando. Tanto é verdade que a greve do Judiciário, para surtir efeito, tem que ser longa, bem longa. Parar alguns dias, ou semanas, não faz diferença, o patrão já está habituado com a lentidão dos serviços. E esta greve, como a dos bancários, surte efeitos colaterais e serve para alertar o patrão — o povo — para a realidade do Judiciário que está sob um indesejável estado de greve há muitos anos.

A única solução para o problema, tanto dos bancários como do Judiciário, realmente é o auto-atendimento. Este definitivamente não faz greve. Deveria ser lei: a partir de 2005 o Judiciário passaria a ser self-service, contando com auto-atendimento judicial. Seria ótimo. À noite, antes de ir ao restaurante jantar, você poderia passar num banco, sacar um dinheiro para pagar a conta (e as custas judiciais depois), dar uma conferida no saldo da conta investimento e depois de jantar, passar rapidinho no caixa de auto-atendimento judicial e ajuizar aquele processo que estava na gaveta, pagando as custas com o dinheiro previamente sacado. Desta forma, como a greve das máquinas é uma utopia dos filmes hollywoodianos, estaríamos a salvo.

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