Capítulo inacabado

Obrigar mulheres a levar gravidez de feto anencefálico é tortura

Autor

  • Samantha Buglione

    é professora de introdução ao direito bioética e direitos fundamentais na Univali-CESJ/SC. Foi co-autora através da ong Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero do primeiro habeas corpus encaminhado ao STF sobre a anencefalia (caso Gabriela) com a ong ANIS – Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero.

23 de outubro de 2004, 15h30

O Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quarta-feira (20/10), cassar a liminar do Ministro Marco Aurélio de Mello que permitia a antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia (sem cérebro), porém, ainda não votou o cabimento da ADPF – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que será na próxima semana. Ou seja, nada está acabado.

O pedido da ADPF é simples, apenas solicita que os artigos 124 e 125, caput, e 128 parágrafo I e II do Código Penal, que tratam do aborto, não sejam aplicados no caso de fetos anencefálicos, simplesmente pelo fato de que não se trata de aborto, pois não há feto vivo.

É importante ter em mente que o STF não estará fazendo papel de legislador positivo, mas de guardião dos preceitos constitucionais. Não se pede uma nova norma, no caso um novo permissivo para a lei penal, mas, simplesmente a aplicação do texto constitucional, seja de forma direta e imediata, seja através da re-interpretação das normas infraconstitucionais, no caso o Código Penal.

O preocupante, neste caso, é que não se trata, apenas, de fundamentos jurídicos, mas subjetivos. Ocorre que o direito pode ser usado como um instrumento para legitimar “inclinações”. Nenhuma técnica é neutra. Tampouco o seu uso é ingênuo, afinal, foi através da técnica que se promoveu estragos como os ocorridos em Hiroshima e Nagasaki.

Porém, o mais importante, neste caso, é que se está diante um dado incontestável: o fato morte. Não se trata de negar o direito à vida, mas em observar que não se pode garantir este direito para quem já está morto. Um feto anencéfalo, face à sua condição que se equipara à de uma pessoa com morte cerebral, não possui vida.

A morte cerebral não é um estado que pode ser alterado; o mesmo ocorre com a anencefalia. Ao se desligar os aparelhos de alguém com morte cerebral será possível observar um coração batendo por, talvez, 20 minutos, mas isso não se caracteriza como vida, conforme a Lei 9.434/97, que regula o transplante de órgãos no país.

A proteção à vida que está presente na Constituição Federal e no Código Civil não pode ser confundida com a proteção a uma concepção sobre o que é vida. Vida é a ausência da morte. E nestes casos, tanto a morte cerebral quanto a morte da anencefalia é o único dado irrefutável.

Por ser o direito originalmente político, ele deveria garantir um espaço de mediação para questões que dizem respeito a todas as pessoas. O desafio é que hoje, em sociedades plurais, não se sabe muito bem o que é de interesse comum. Por isso o ponto central deste caso deveria ser a tolerância e não o fundamentalismo perverso legitimado pelo Estado.

Entende-se por fundamentalismo a supremacia de uma determinada concepção de mundo sobre todas as outras, ou seja, o total desrespeito à diversidade moral e à privacidade. Isso explica a espécie de “privatização da esfera pública” que se vive hoje; nela, o que se tem em verdade, não é a conjugação de interesses comuns, mas uma arena de interesses privados.

A questão da anencefalia é emblemática quanto a isto. A sorte para muitos é que estratégias processuais são capazes de neutralizar o medo, a intolerância e o fundamentalismo. O STF terá nas mãos a possibilidade de se comprometer, não com subjetividades, mas com a legalidade, através do respeito à Constituição Federal, mais especificamente com as normas que guardam a liberdade, a saúde e a dignidade humana.

Obrigar mulheres e casais a levar a cabo uma gravidez de um feto morto é uma ação de tortura promovida pelo Estado. A ADPF objetiva garantir que as mulheres e casais possam decidir, resguardando, inclusive, o direito de escolha daqueles que quiserem levar a gestação até o final. O que se presa é o respeito à diversidade, não a manutenção de uma fé.

Caso o STF opte pelo silêncio através do não reconhecimento do cabimento da ADPF, o que talvez possa ser apreendido desta dificuldade em se posicionar é que questões dessa natureza não deveriam ocupar a esfera pública, uma vez que são de ordem privada e que dizem respeito, estritamente, às pessoas envolvidas.

Essa liberdade de decisão é que deveria ser resguardada garantindo-se, assim, o respeito à dignidade humana. Destaca-se que no caso da anencefalia não se busca, apenas, resguardar a dignidade, a saúde e a liberdade, mas evidenciar que se está diante uma situação fática que não gera conflito de direitos, dada a morte do feto.

Mesmo que se considere o feto como pessoa e como sujeito de direitos (numa tentativa de promover o diálogo, já que estas são categorias com vários significados e diferentes compreensões), mesmo assim, não se criaria nenhum limitador à antecipação terapêutica do parto porque o feto neste caso é um ser morto; e sobre ele incidem todos os direitos desta condição (a de pessoa morta). O que não se pode permitir é que a saúde e a dignidade de mulheres e casais seja preterida em nome do fundamentalismo ou do totalitarismo de moralidades individuais.

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    é professora de introdução ao direito, bioética e direitos fundamentais na Univali-CESJ/SC. Foi co-autora, através da ong Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, do primeiro habeas corpus encaminhado ao STF sobre a anencefalia (caso Gabriela) com a ong ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

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