Ciências da vida

Respeito pela dignidade humana deve ser paradigma do Biodireito

Autor

  • João Ibaixe Júnior

    é advogado criminalista e sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. É também mestre em Filosofia do Direito. Foi coordenador da assessoria jurídica da Febem e Delegado de Polícia.

21 de outubro de 2004, 19h09

Ao tratarmos do Biodireito, adentramos em nova seara do campo do conhecimento e do pensar humanos. Assim, devemos ter em e mente a possibilidade de surgirem novos questionamentos, decorrentes de novos paradigmas que certamente nascerão. De acordo com as lições filosóficas atuais, diante de determinado tema surgem questões a serem exploradas, denominando-se a isto de problematização, da qual nascerá a exigência de buscarem-se respostas coerentes e adequadas, que explicitem a temática abordada.

Em que pese sua aparente modernidade, tendo em vista o altíssimo desenvolvimento biotecnológico da atualidade, a preocupação com o assunto, hoje denominado Biodireito, não é recente. Há exemplos na história filosófica que nos remetem a pensadores da antigüidade grega, os quais já apresentavam discussões concernentes ao tema. Apenas a título de ilustração, podemos remeter o leitor à República platônica ou à Política aristotélica, nas quais são tratadas questões relacionadas ao aborto.

Agora, nos dias de hoje, com o largo caminhar da ciência, vemo-nos diante de um quadro, não novo, mas melhor desenhado, a obrigar-nos à cuidadosa, esmerada e séria reflexão, posto que o objeto do pensar, neste momento, nada menos é do que o ser humano. Com efeito, a pessoa humana e seu relacionamento com as chamadas “ciências da vida” formam o tecido das investigações a serem perpetradas, a serem delicadamente analisadas, minuciosamente observadas.

Em face disto, neste trabalho tentaremos fazer modesta reflexão sobre a pessoa humana, com foco de visão em aspecto que entendemos crucial: sua dignidade, em relação ao Biodireito.

A expressão dignidade da pessoa humana, de certa maneira, pode ser considerada tautológica e, talvez, até mesmo redundante, pois o próprio termo pessoa, analisado em si mesmo, já sublinha formalmente a nobreza do objeto (como fim de conhecimento) daquilo que ela predica ou significa. Com efeito, na locução pessoa humana está intrínseca a noção do valor com o qual ela se apresenta. Mesmo assim, nos dias atuais, a dignidade da pessoa humana precisa ser lembrada, até mesmo como diretriz constitucional de um Estado de Direito, como o nosso pretende ser.

Inicialmente, perguntamos: por quais caminhos deve-se trilhar para chegar às raízes do significado da dignidade humana? Quais as vias especulativas dessa peculiar eminência racional? É preciso que a Lei Maior de um país lembre a todos sobre a dignidade da pessoa?

Em primeiro lugar, não em ordem cronológica, mas de abordagem, menciona-se Kant, em quem se encontra a idéia de que a humanidade mesma é uma dignidade, porque o homem não pode ser tratado nem sequer por outro homem, nem por si mesmo, como simples meio ou instrumento, porém como fim. Deste motivo decorre a obrigatoriedade da lei sempre dever respeito ao homem, mesmo quando tal não venha expresso no preceito normativo e mesmo sendo ela o orientador da conduta humana.

Não se pode deixar de falar de Tomás de Aquino, que reivindica a superioridade da pessoa humana sobre o restante da criação material pelo fato de haver sido o homem possuidor de uma vontade livre, pela qual pode dirigir-se, a si mesmo, a um caminho de perfeição, não no sentido divino, porém em seu significado aristotélico de perfeito?. Mesmo estando os dois autores citados em movimentos filosóficos e épocas diversas, coincidem eles em relacionar a dignidade da pessoa humana com a liberdade.

Do ponto de vista psicológico, a liberdade se apresenta como a capacidade de fazer ou não fazer, de realizar uma atividade ou outra. De uma perspectiva que pode ser denominada filosófica, caracteriza-se como um domínio sobre os próprios atos, como um império sobre si mesmo. Vale dizer, entre todos os seres que povoam o universo sensível, somente o homem pode dirigir-se, por si mesmo, à sua própria meta.

Por agir sempre desta maneira nas distintas circunstâncias que configuram sua existência, é possível afirmar que o homem goza de um cabal domínio sobre os atos que vão conduzi-lo a seus diversos objetivos. Ademais, além disto, seu império inclui ainda a escolha da finalidade última. Ou seja, não só pode o homem encaminhar-se ou não em direção a metas presumidamente impostas, como também tem a capacidade de determinar a direção de toda a sua existência. Aqui reside a misteriosa e fascinante grandeza da liberdade humana: cada pessoa individual e concretamente pode determinar o sentido que imprimirá à sua própria vida.

É bem verdade que muitas vezes o império humano sobre o fim não é absoluto e total e que a liberdade do homem é limitada. Tal ocorre quando ele encontra obstáculo ao seu livre arbítrio em algo fático, denominado de caso fortuito ou força maior, limitando ou restringindo sua liberdade. Porém, a restrição não é a eliminação da liberdade, mas tão-somente uma limitação em seu exercício, não impedindo o alcance do fim determinado para sua própria existência.

E esta busca do fim último, por ele querido e desejado, é que se pode qualificar como um bem ou, em outras palavras, como um valor. Via de conseqüência, o homem, qualquer que seja, se configura como um bem em si mesmo, como um valor, dotado assim de nobreza e dignidade intrínsecas.

Relacionar a dignidade humana com a liberdade equivale a colocá-la intimamente ligada à posse, em cada homem, de uma capacidade de entendimento e vontade, pertencente a ele por sua própria natureza humana, que não é somente física, mas também espiritual.

Nesse último século pelo qual passamos, pudemos ver algumas práticas execráveis que atentaram contra a dignidade: desde os horrores de duas guerras mundiais (cujas lições não foram ainda suficientes para ensinar aos governantes as tragédias decorrentes de uma guerra) até o desprezo diário pela vida humana por parte daqueles que deveriam defendê-la, configurado pela elevada taxa de homicídios ou pela prática do aborto, da eutanásia e de algumas modalidades de fecundação in vitro. O pensamento passou a dirigir-se para questões tecnológicas, deixando de lado problemas metafísicos; a racionalidade tomou o lugar da razão, o existir tomou o lugar do ser, a liberdade foi vista como uma condenação.

Na suposta intenção de ampliar a liberdade humana, acabou-se por atirá-la no mais profundo e escuro calabouço. Às práticas pelas quais em vão se tentava dar a liberdade ao homem (como se ele não a possuísse intrinsecamente) ou se tentava igualá-lo num mesmo patamar deu-se o nome de liberalismo e socialismo. A análise semântica de tais palavras já demonstra que as realidades políticas destoam do verdadeiro sentido em que elas deveriam ser empregadas. O resultado, ao invés de cultivar e fazer brotar a liberdade e a dignidade, foi o de aniquilar tais qualidades humanas pela massificação dos grupos sociais.

Quando, ao contrário, se acredita que a liberdade e a dignidade são intrínsecas à pessoa humana, presentes desde a sua concepção, verifica-se que elas não são fornecidas pela vida social ou pelas normas de conduta, mas sim pelo ato de criação do próprio homem.

É a concepção, momento derivado da criação, que já faz nascer no homem seus elementos de liberdade e dignidade. A concepção é um momento passivo do dom da liberdade. Enquanto no decurso da vida ocorre seu momento ativo, em que o homem escolhe não só seu caminho, mas também seu destino, devendo pautar-se no sentido de sua perfeição.

A dignidade humana se apresenta em três momentos: primeiramente de forma constitutiva, pela concepção; em seguida, no momento de alcance da sua perfeição, ao eleger os caminhos e destinos de sua existência, e finalmente no momento conclusivo, ao se encontrar com sua perfeição, o que somente se dá quando o homem encontra e consegue unir em suas duas naturezas, física e espiritual, a sua essência.

Em virtude de todo o exposto, podemos concluir que a dignidade da pessoa humana é inerente a cada um. Não se trata de uma qualidade derivada, mas sim intrínseca, que jamais pode ser olvidada.

Por ser esta sua essência, o respeito deve ser o prisma pelo qual devemos enxergar ou visualizar nossos semelhantes. E este será o maior desafio das normas de conduta que envolvam o ser humano, no que tange à pesquisa tecnológica desenvolvida pelas “ciências da vida”. O respeito pela dignidade inerente à condição humana, este deve ser o paradigma do Biodireito.

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    é advogado criminalista e sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. É também mestre em Filosofia do Direito. Foi coordenador da assessoria jurídica da Febem e Delegado de Polícia.

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