Greve dos bancários

Bancário é indispensável mesmo com automatização de banco

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19 de outubro de 2004, 14h55

Chamava um cabreiro a suas cabras para levá-las ao estábulo.

Uma delas, ao passar por um rico pasto se deteve, e o cabreiro lhe jogou uma pedra, porém com tão má sorte que lhe quebrou um chifre. Então o cabreiro lhe suplicou que não contasse ao patrão, ao que a cabra respondeu:

– Quisera eu ficar calada, mas não poderia! Bem claro está à vista meu chifre quebrado.

Nunca negues o que bem se vê.

(Esopo)

Propõe-se singela reflexão: poder-se-ia imaginar que, em passado recente, os bancários paralisassem suas atividades por um mês, sem que o comércio, a indústria, o terceiro setor, os cidadãos, todos os usuários do sistema cumulassem irreparáveis prejuízos e o País estagnasse?? Pois, ressalvados transtornos pontuais, situações específicas contornadas e algum desconforto inicial, nada ocorreu.

Não se está a discutir a legalidade e oportunidade do movimento; a contestar a sempre procedente luta por melhores condições de vida e de ganhos.

Nunca, como hoje, uma realidade foi, tão cruamente, desnudada. A atividade bancária, de transcendente necessidade para a movimentação da máquina dos negócios que a envolvem, sofreu radical mudança de vida em decorrência da automação e do aperfeiçoamento, constante, crescente e irreversível, dos meios e procedimentos empregados para mantê-la em diuturna operação.

Ah, pensar no bancário, empertigado em seu alvo colarinho e discreta gravata, sisudo, mas atencioso, atrás de um balcão de mármore, de um guichê de bronze ou debruçado sobre alta mesa inclinada que o permitisse, de pé, com caligrafia irretocável, os punhos cobertos de plásticos presos por atilhos (proteção contra a tinta de caneta ou respingos da gelatina), a lançar em grandes livros a movimentação das contas dos correntistas; a manusear fichas-razão manuscritas, que exigiam destreza, conhecimentos contábeis e estressante atenção; a dedilhar, sem olhar para o teclado, uma registradora barulhenta, enquanto a outra mão, com agilidade circense, contava grandes maços de moeda-papel; a carimbar, heroicamente, centenas de boletos com o ajuste correto da data e do valor, para, após, rubricá-los — tudo tem o gosto nostálgico de uma página virada e de uma realidade que justificou a conquista de uma jornada de trabalho reduzida para seis horas diárias, motivando, por igual, um horário diminuto de atendimento ao público.

Agora, o povo, do mais categorizado depositante, ao mais simples dos consumidores, se auto-atende. Malgrado permaneça satisfazendo taxas de serviços, quem os presta é, pessoalmente, o correntista: faz seus próprios pagamentos (títulos, contas de consumo de energia, água, gás, condomínio, associações, impostos, encargos sociais e fiscais), retira extratos, executa operações, as mais variadas (transferências, aplicações, etc.), se abastece de cédulas de dinheiro e imprime o talonário dos seus cheques (cada vez menos utilizados). E as máquinas efetuam todos os registros eletrônicos dessas operações. Tudo isto é feito sem que se tenha qualquer contato com o bancário.

Os bancos são verdadeiras lojas de produtos, utilizadas para a venda de seguros, a colocação de empréstimos, a oferta de investimentos. Os serviços (pagamentos, saques, extratos, operações diversas) estão destinados aos postos, de freqüência exclusiva da população. De quando em vez há um vigia terceirizado, ou uma estagiária para prestar algum auxílio no manejo das máquinas.

O bancário desapareceu dos nossos olhos, deixando saudades nas moças casadoiras de então, que nele viam um bom e futuroso partido.

A greve mostrou que o banco é necessário, ainda no velho estilo, nos primeiros cinco dias úteis do mês para a satisfação de proventos de aposentadoria e de pensões; para o saque de depósitos do FGTS e de rendimentos do PIS. Esses misteres podem ser, à semelhança de outras e maiores dificuldades superadas, criativamente solucionados.

Qual a razão, portanto, para a jornada reduzida de seis horas, do horário diminuto de atendimento ao público, em desfavor de comerciários, industriários, prestadores de serviços diversos e demais atividades?? Não é hora de rever a legislação e adequá-la, isonomicamente, à realidade dos trabalhadores brasileiros??

Qual a razão de proliferarem, com sucesso, milionárias demandas trabalhistas de bancários nas quais auferem horas extras abusivas que, como viu-se, não têm amparo na realidade ??

O Judiciário, com o auxílio dos próprios bancos (preocupados, mais com números e relatórios de administração de um “passivo social”, menos com resultados, desinteressados em documentar esse retrato, agora revelado nos 30 dias de paralisação) preso à verdade dos autos que apresenta invariáveis e inverossímeis testemunhos industriados, não está atento e inserido no contexto da vida (a missão de buscar a verdade real).

Que atividades levariam um bancário de agência de pequeno porte ou de posto de atendimento (locais que mais proliferam) a ter trabalho por 10 ou mais horas diárias, quando, ao longo de 30 dias, sem qualquer labor, esse esforço não foi sentido, exigido ou reclamado ??

Nunca negues o que bem se vê. (Esopo)

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